quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

COLABORAÇÃO DO DR. LABOREIRO

                             Guilhotinar a Cultura

«Um livro autêntico lê-nos a nós.»
 W. H. Auden

 Em 1933, a Alemanha nazi empreendeu  -  em várias dezenas de cidades  -  a queima pública de livros (no seu conceito “não alemães”)  -  escritos por intelectuais alemães (judaicos e de genealogia ariana). A queima dos livros teve origem no projecto de “sincronização cultural” de Goebles (visando a “limpeza” da cultura alemã). Com este projecto do proeminente (na cúpula nazi) colaborador de Hitler, foram atirados ao fogo  -  na presença de multidões ululantes e acometidas de pleno gáudio (de braço estendido)  -  obras autênticas do património cultural do Mundo  -  como livros de Thomas Mann, Walter Benjamin, Brecht, Musil, Heine, Freud, Einstein, entre muitos outros. Hoje já não se acendem fogueiras  -  embora os portugueses (escritores e amantes da leitura) tivessem tido e sentido experiências um tanto semelhantes: usam-se hoje guilhotinas (não num intuito de uma “limpeza cultural”, mas de uma “limpeza”, desta vez comercial  - descambando numa “sincronização cultural”  -  agora com os padrões de lucro a qualquer preço  -  mesmo que seja  ao preço da própria cultura: pois o preço do livro (e a sua divulgação) condicionam a promoção da Cultura e o hábito da leitura); atendam-se aos “intelectuais” sacrificados nesta guilhotinagem (em resultado de um não fácil  escoamento comercial) -  numa editora portuguesa: Almeida Garrett, Fernão Lopes, Eduardo Lourenço, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, Ramos Rosa, Goethe, Holderlin, etc.,etc. Acto de lesa-cultura (que as Bibliotecas carenciadas menos perdoam)  -  cometido, não num intuito de ordem ideológica, mas sim perpassado por uma mera ganância.
E é indesmentível o valor do livro  -  para o amante da leitura: atendendo ao carinho que este deposita no acto de retirar o livro da estante, afagá-lo, folheá-lo, fruí-lo avidamente, sublinhá-lo, anotá-lo, repensá-lo durante um tempo por vezes infindo, e recolocá-lo com o mesmo amor no seu lugar na sua Biblioteca. É certo que H. J. Martin nos deixou a constatação de que «O livro já não exerce o mesmo poder que tinha anteriormente, deixou de ser o mestre dos nossos raciocínios ou dos nossos sentimentos face aos novos meios de informação e de comunicação de que hoje dispomos». Porém, qual o instrumento cultural que poderá substituir uma leitura reflexiva, verdadeiramente interiorizada, autenticamente disponível, num ritual de virar a página, relendo, tirando notas, comentando à margem ou em rodapé, consultando  -  se necessário for  -  outros livros: em suma, fruindo, “bebendo” os ensinamentos, o estilo, a palavra, comparando com o que se já leu, tirando prazer com o maravilhoso da “novidade” que a leitura nos oferece?
Almada Negreiros deixou-nos escrito, a propósito das suas leituras, o seguinte: «Ora eu que tive por destino e por rebeldia a sorte de não ter tido mestre, não eu era quem iria propor a outros essa subordinação. Mestres, claro está, tive eu e os melhores, porque busquei-os eu próprio para mim, mas tive o sentido de seguir-lhes as suas acções evitando-lhes os seus tiques pessoais. E é o que proponho a quantos se dirijam no seu próprio caminho: ao procurar os seus directores, mestres ou chefes, faça cada qual o possível por se ir distanciando deles no tempo, a ponto de que o próprio tempo lhos vá mostrando todos, porque apenas de entre todos se podem escolher os que forem melhores para cada um de nós. Isto que proponho a cada qual não é conselho, mas eu assim o fiz». E quanto o livro constitui um esteio na formação pessoal, qual “mestre”, de cada ser humano que se promova pela leitura ...!?
No que se refere aos interesses concretos de cada indivíduo, pode dizer-se que se encontram hierarquizados, correspondendo aos gostos e preferências manifestadas  -  sendo verdade que os interesses individuais desempenham um papel a ter em conta perante um texto específico. Mesmo que um sujeito não tenha grande apetência pela leitura, comportar-se-á de uma maneira diferente conforme o assunto do texto seja de seu agrado ou, pelo contrário, não lhe desperte interesse; para fomentar o gosto pela leitura, contribuirá bastante a capacidade dos que com ele se relacionam, ao irem ao encontro dos interesses do leitor principiante  -  indo ao encontro de materiais que para ele sejam significativos e que provoquem um envolvimento afectivo entre leitor e texto.
Diz-nos Modesto Navarro que o acesso à Cultura e ao crescimento, à liberdade de expressão e de reunião, foram objectivos claros da intelectualidade portuguesa que fez opção pela mudança da situação política e das mentalidades, colocando-se ao lado da classe operária, dos trabalhadores, e das populações mais desfavorecidas. É que, como acentua, a actividade cultural, social e desportiva das colectividades, bandas de música, bibliotecas populares, teatro amador, a acção de intelectuais (Bento de Jesus Caraça, Fernando Lopes Graça, Universidades Populares, Biblioteca Cosmos, Academia de Amadores de Música, intelectuais  -  em suma, que resistiram ao Estado Novo) criaram acesso ao mais amplo e fraterno valor da Cultura, ao conhecimento e à intervenção libertadora e organizada das classes sociais exploradas e oprimidas  -  enfrentando a repressão do regime, a censura, a proibição e apreensão de livros, obras de arte e outro património  -  que continua a ser repositório inestimável e valioso de todos nós.  E neste contexto assume, enquanto obra do Ser Humano e destinada à Sociedade Humana, lugar imprescindível o livro. Livro, peça por excelência das sociedades através dos tempos, testemunho reconhecido da memória social, autêntico tesouro que testemunha a inteligência humana  -  que constitui algo imprescindível na teia formadora da aculturação das sociedades, e que possibilita  -  enquanto instrumento primordial  -  a construção cultural do Ser Humano (mesmo na contemporaneidade).
Aliás, referindo-se à Cultura do Homem e da Sociedade, ou do Homem na Sociedade, diz-nos Bento de Jesus Caraça (in “Cultura e Emancipação”): «O seu grau de cultura mede-se pelo conceito que ele forma do que seja a vida e da facilidade que ao indivíduo se deve dar para viver, pelo modo como nele se compreende e proporciona o consumo; pela maneira e fins para que são utilizados os progressos da ciência; pelo modo como entende a organização das relações sociais e pelo lugar que nela ocupa o “homem”.»
E mais adiante, acrescenta: «Mas o que não deve nem pode ser monopólio de uma elite, é a Cultura; essa tem de reivindicar-se para a colectividade inteira, porque só com ela pode a humanidade tomar consciência de si própria, ditando a todo o momento a tonalidade geral da orientação às elites parciais.»
No livro “A ordem dos livros”, diz-nos Roger Chartier: «Ainda nesse tempo, o fim dos livros, significará a perda dos gestos e das representações indissoluvelmente ligados ao livro tal como nós o conhecemos». Serão tempos, de certeza, radicalmente diferentes. Duvido que a “Civilização do Espectáculo”, que agora se desenha, consiga desempenhar o papel actual do livro na promoção da Cultura e da Democracia.

José Alexandre Laboreiro

Publicado in "O Montemorense" edição de Janeiro 2015 -transcrição devidamente autorizada pelo Autor            
 
                                                                                        


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