Guilhotinar a Cultura
«Um livro autêntico lê-nos a nós.»
E é indesmentível o valor do livro - para
o amante da leitura: atendendo ao carinho que este deposita no acto de retirar
o livro da estante, afagá-lo, folheá-lo, fruí-lo avidamente, sublinhá-lo,
anotá-lo, repensá-lo durante um tempo por vezes infindo, e recolocá-lo com o
mesmo amor no seu lugar na sua Biblioteca. É certo que H. J. Martin nos deixou
a constatação de que «O livro já não exerce o mesmo poder que tinha
anteriormente, deixou de ser o mestre dos nossos raciocínios ou dos nossos
sentimentos face aos novos meios de informação e de comunicação de que hoje
dispomos». Porém, qual o instrumento cultural que poderá substituir uma leitura
reflexiva, verdadeiramente interiorizada, autenticamente disponível, num ritual
de virar a página, relendo, tirando notas, comentando à margem ou em rodapé,
consultando - se necessário for -
outros livros: em suma, fruindo, “bebendo” os ensinamentos, o estilo, a
palavra, comparando com o que se já leu, tirando prazer com o maravilhoso da
“novidade” que a leitura nos oferece?
Almada Negreiros deixou-nos escrito, a propósito das suas
leituras, o seguinte: «Ora eu que tive por destino e por rebeldia a sorte de
não ter tido mestre, não eu era quem iria propor a outros essa subordinação.
Mestres, claro está, tive eu e os melhores, porque busquei-os eu próprio para
mim, mas tive o sentido de seguir-lhes as suas acções evitando-lhes os seus
tiques pessoais. E é o que proponho a quantos se dirijam no seu próprio
caminho: ao procurar os seus directores, mestres ou chefes, faça cada qual o
possível por se ir distanciando deles no tempo, a ponto de que o próprio tempo
lhos vá mostrando todos, porque apenas de entre todos se podem escolher os que
forem melhores para cada um de nós. Isto que proponho a cada qual não é
conselho, mas eu assim o fiz». E quanto o livro constitui um esteio na formação
pessoal, qual “mestre”, de cada ser humano que se promova pela leitura ...!?
No que se refere aos interesses concretos de cada indivíduo,
pode dizer-se que se encontram hierarquizados, correspondendo aos gostos e
preferências manifestadas - sendo verdade que os interesses individuais
desempenham um papel a ter em conta perante um texto específico. Mesmo que um
sujeito não tenha grande apetência pela leitura, comportar-se-á de uma maneira
diferente conforme o assunto do texto seja de seu agrado ou, pelo contrário,
não lhe desperte interesse; para fomentar o gosto pela leitura, contribuirá
bastante a capacidade dos que com ele se relacionam, ao irem ao encontro dos
interesses do leitor principiante - indo ao encontro de materiais que para ele
sejam significativos e que provoquem um envolvimento afectivo entre leitor e
texto.
Diz-nos Modesto Navarro que o acesso à Cultura e ao
crescimento, à liberdade de expressão e de reunião, foram objectivos claros da
intelectualidade portuguesa que fez opção pela mudança da situação política e
das mentalidades, colocando-se ao lado da classe operária, dos trabalhadores, e
das populações mais desfavorecidas. É que, como acentua, a actividade cultural,
social e desportiva das colectividades, bandas de música, bibliotecas
populares, teatro amador, a acção de intelectuais (Bento de Jesus Caraça,
Fernando Lopes Graça, Universidades Populares, Biblioteca Cosmos, Academia de
Amadores de Música, intelectuais - em suma, que resistiram ao Estado Novo)
criaram acesso ao mais amplo e fraterno valor da Cultura, ao conhecimento e à
intervenção libertadora e organizada das classes sociais exploradas e
oprimidas - enfrentando a repressão do regime, a censura,
a proibição e apreensão de livros, obras de arte e outro património - que
continua a ser repositório inestimável e valioso de todos nós. E neste contexto assume, enquanto obra do Ser
Humano e destinada à Sociedade Humana, lugar imprescindível o livro. Livro,
peça por excelência das sociedades através dos tempos, testemunho reconhecido
da memória social, autêntico tesouro que testemunha a inteligência humana - que
constitui algo imprescindível na teia formadora da aculturação das sociedades,
e que possibilita - enquanto instrumento primordial - a
construção cultural do Ser Humano (mesmo na contemporaneidade).
Aliás, referindo-se à Cultura do Homem e da Sociedade, ou do
Homem na Sociedade, diz-nos Bento de Jesus Caraça (in “Cultura e Emancipação”):
«O seu grau de cultura mede-se pelo conceito que ele forma do que seja a vida e
da facilidade que ao indivíduo se deve dar para viver, pelo modo como nele se
compreende e proporciona o consumo; pela maneira e fins para que são utilizados
os progressos da ciência; pelo modo como entende a organização das relações
sociais e pelo lugar que nela ocupa o “homem”.»
E mais adiante, acrescenta: «Mas o que não deve nem pode ser
monopólio de uma elite, é a Cultura; essa tem de reivindicar-se para a
colectividade inteira, porque só com ela pode a humanidade tomar consciência de
si própria, ditando a todo o momento a tonalidade geral da orientação às elites
parciais.»
No livro “A ordem dos livros”, diz-nos Roger Chartier:
«Ainda nesse tempo, o fim dos livros, significará a perda dos gestos e das
representações indissoluvelmente ligados ao livro tal como nós o conhecemos».
Serão tempos, de certeza, radicalmente diferentes. Duvido que a “Civilização do
Espectáculo”, que agora se desenha, consiga desempenhar o papel actual do livro
na promoção da Cultura e da Democracia.
José Alexandre Laboreiro
Publicado in "O Montemorense" edição de Janeiro 2015 -transcrição devidamente autorizada pelo Autor
Sem comentários:
Enviar um comentário