terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

António Berbem, «Pedro Nunes, Cientista de Maior Tamanho» in ANAIS, Revista da Universidade Autónoma de Lisboa.

(Continuação do publicado ontem)


“Pedro Nunes

               Cientista de Maior Tamanho”
III
Justificar as dúvidas com criatividade é outra das proezas verificadas no conjunto das obras publicadas por Pedro Nunes. Certificamo-nos disso logo na sua primeira obra impressa (1537), o célebre Tratado da Esfera, que inclui uma tradução comentada da obra com o mesmo título da autoria do frade John of Hollywood ou Sacrobosco (1190- 1254) e de alguns capítulos das Novas Teóricas do Planeta, de Purbáquio, e ainda do Livro I da Geografia de Ptolomeu.
Para além de imaginarmos como lhe deve ter sido penoso fazer a sua estreia editorial aos 35 anos, com simples traduções de obras elementares, Pedro Nunes incluiu, neste livro, dois pequenos tratados orginais seus, nos quais já se revelava como um criador de primeira qualidade. São eles o Tratado Sobre Certas Dúvidas de Navegação,  e o Tratado em Defesam da Carta de Marear -  dedicatória ao Infante D. Luís – sendo este último que apresenta pela primeira vez (1537) a idéia das curvas que viriam a ser designadas de «loxodrómicas» e onde se esclarece que é preciso « trazer não somente causas práticas da arte de navegar, mas ainda partes de geometria e da parte teórica» (J. S. da Silva Dias, p. 98).
Passados cinco anos sobre a publicação do Tratado da Esfera,  surgiu uma das suas obras maisimportantes, o De Crepusculis Liber Unus, (1542) com menção ao Cardeal D, Henrique. Saliente-se que, neste trabalho, o matemático português trata à sua maneira um problema clássico da astronomia. Ou seja, o problema da duração “do crepúsculo” em diferentes latitudes e dias do ano. Aprofunda o estudo desta questão, elevando-a de problema geométrico qualitativo e especulativo a problema matemático teórico, formulado de forma rigorosa e susceptível de ser resolvido quantitativamente.
Porventura uma das obras maiores do autor, é neste ensaio que Pedro Nunes refere o Nónio – na “Proposição III” –o famoso instrumento teórico da subdivisão de escalas que lhe viria a dar grande projecção cientifica. E que ainda hoje se usa. Obra sucessivamente editada em Lisboa, na oficina de Luís Rodrigues,1542; em Coimbra. Oficina de António Mriz, 1571; em Basileia, oficina de Henrique Pedro, 1568 e 1592.
Importa, neste passo, relembrar que pouco depois da publicação de De Crepusculos, Pedro Nunes é nomeado Professor de Matemática na Universidade de Coimbra (1544). Precisamente nesta altura dá ao prelo mais uma das obras polémicas que se lhe conhecem. Trata-se do De Erratis Orontii Finac de 1546 (reeditada em 1572) onde Pedro Nunes criticava, em pormenor, os erros de Oronce Finé (1494-1555), um professor do Colégio Real de Paris considerado dos matemáticos mais importantes do seu tempo.
Anota-se que o ilustre académico francês, anunciava ter resolvido, finalmente, entre outros, os três problemas geométricos clássicos entre os gregos – a quadratura do circulo, a trissecção de qualquer angulo e a duplicação do cubo. Sabendo-se hoje como estes problemas são de resolução impossível, com os meios geométricos clássicos (régua não graduada e compasso), observamos que ao detectar os erros lógicos do raciocínio de Oronce Finé, Pedro Nunes, afirmava-se mais uma vez como um nome maior na matemática criativa europeia da epoca.
Até que, já em 1566, Pedro Nunes haveria de publicar em Basileia uma colectânea dos seus trabalhos, em versão latina, através da célebre Opera, relativa à arte de navegar. No ano seguinte publicou em castelhano o Livro de Álgebra en Aritmética Y Geometria  editado em Anvers. Segundo se sabe pelo próprio autor este livro fora escrito trinta anos antes em língua portuguesa. No final do livro Pedro Nunes faz a critica aos tratadistas de Álgebra do seu tempo, nomeadamente a Lucas Pacioli, Cardano e Tartaglia.
De acordo com Luis de Albuquerque em verbete do Dicionário da História de Portugal , direcção de Joel Serrão (Vol. III, 1971), entre as várias obras de Pedro Nunes sobre as quais existem referências mas que ficaram inéditas, uma única chegou aos nossos dias conservada num códice na Biblioteca Nacional de Florência que foi assinalada a Joaquim de Carvalho por Giacinto Manuppella, publicando-a o investigador português sob o título de Defensão do Tratado da Rumação do Globo para a Arte de Navegar (Coimbra, 1952).

IV – Pedro Nunes no pós - quinhentismo português e europeu.
Foram várias as obras de contemporâneos seus a discutirem-lhe o mérito cientifico dos seus trabalhos.
Citam-se as edições raras como a da Astronomiae Instauratae Mechanica,  do astrónomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), e a Opera Mathematica , do jesuíta Cristóvão Clávio (1538-1612), obras onde os dois autores discutem o Nónio, assim como a Tiphys Batavus, do matemático holandês Willebrord Snell (1580-1626).
Neste contexto e em tópicos muito breves, para se “duvidar do justificado” através da obra feita por Pedro Nunes, o melhor é trazer à liça deste texto a análise e as opiniões de J.J. da Silva Dias sobre “Os Descobrimentos e a Problemática do Século XVI” (Universidade de Coimbra, 1973). Diz-nos o especialista do quinhentismo português que o testemunho de Pedro Nunes no Tratado em Defesam da Carta de Marear, é, decerto, o mais determinante de quantos se produziram nesta época.
Veja-se este extracto « Não há dúvidas que as navegações deste reino, de cem anos a esta parte, são as maiores, mais maravilhosas, de mais altas e mais discretas conjecturas, que as de nenhuma outra gente no mundo». Lê-se a seguir: « Os portugueses (…) descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos, e, o que mais é, novo céu e novas estrelas.
Ao falar da geração composta por Pedro Nunes, Amato Lusitano, Garcia da Horta e D. João de Castro, recorda-nos Silva Dias que as ideias de Pedro Nunes foram expressas fundamentalmente entre 1537 e 1546, destacando-se no meio português e europeu por apontarem para a necessidade de fixar rigorosamente o objecto do conhecimento e de aliar a teorização à observação no domínio da ciência.
Cita-se de Pedro Nunes: « Nos últimos dias, teve o Infante D. Henrique a curiosidade de saber a extensão dos crepúsculos nos diferentes climas (…). Vendo eu entretanto que apenas se respondia com coisas muito sabidas e gastas e por ninguém, que eu saiba, até agora demonstradas, seduziu-me o intento de explicar claramente este assunto mediante os princípios certíssimos e evidentíssimos da matemática» ( «Dedicatória» do De Crepusculos, 1542).
Em suma: não há duvida que o pensamento de Pedro Nunes fez avançar e suplantou, por exemplo, as concepções de um Duarte Pacheco Pereira (da geração anterior à sua), aproximando a ciência e a teoria, a observação e a teorização, Teve ainda, segundo Silva Dias, a «fortuna de se ver aprofundado e desenvolvido, em mais largo horizonte metodológico, por D. João de Castro».
Dito isto, faltará reconhecer um pouco das consequências e dos lados menos conhecido dos ensaios científicos de Pedro Nunes analisados por Silva Dias, no Capitulo VII, no qual se debruça sobre a chamada «Frustação Cultural da Expansão».
Quanto aos «ensaios teóricos-praticos de Pacheco, Nunes, Castro, Orta…» diz-nos que não lograram porém eco significativo no país. E acrescenta (em nota de rodapé, p. 341): «E os de Nunes caíram no esquecimento, com o próprio ensino das matemáticas na Universidade» sobretudo desde o processo inquisitorial, movido contra André de Avelar, seu sucessor na cátedra de Matemática na Universidade de Coimbra.
Relativamente aos esforços de teorização científica «dos Pachecos, Nunes, Castro e Orta não afectaram, metódica e metodologicamente, a massa de pessoas ilustradas». Personalidades da envergadura de um António Luís, Jerónimo Cardoso, do frade Francisco de Cristo ou de Pedro da Fonseca, mantiveram-se pouco menos que indiferentes. Ou seja, tornou-se uma evidência na realidade cultural portuguesa, desde os alvores da época sebástica, o novo poder maciço dos dissuasores externos e da alienação interna.
Esse poder – lembra Silva Dias - «prolongou-se, acentuando o seu monopólio ideológico e politico no seculo XVII. O seu nome é Censura, Inquisição, Contra-Reforma».
Em síntese, por este conjunto de situações percebe-se que os esforços de Pedro Nunes e de diversos nomes grandes da ciência portuguesa já citados, não se reflectiram significativamente na Universidade coimbrã. E muito menos na elite dos sapientes portugueses dominantes na época.
O nosso problema, de ontem como de hoje, é que os horizontes de contexto português da inteligência e da docência deixaram de conseguir articular-se com os progressos do contexto eropeu, quer a nível da prática cultural, quer no plano da Ciência. Numa palavra: do saber ao pensar faltou-nos um novo empenhamento sério nas relações com a Europa pós-copernicana que, Pedro Nunes, mostrara ainda no seu tempo: conhecer, acompanhar, discutir e inovar.

(Amanhã: Ilações Finais)

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