“Pedro Nunes
Cientista de Maior Tamanho”
III
Justificar as dúvidas com criatividade é
outra das proezas verificadas no conjunto das obras publicadas por Pedro Nunes.
Certificamo-nos disso logo na sua primeira obra impressa (1537), o
célebre Tratado da Esfera, que inclui uma tradução comentada
da obra com o mesmo título da autoria do frade John of Hollywood ou Sacrobosco
(1190- 1254) e de alguns capítulos das Novas Teóricas do Planeta, de
Purbáquio, e ainda do Livro I da Geografia de Ptolomeu.
Para além de imaginarmos como lhe deve ter
sido penoso fazer a sua estreia editorial aos 35 anos, com simples traduções de
obras elementares, Pedro Nunes incluiu, neste livro, dois pequenos tratados
orginais seus, nos quais já se revelava como um criador de primeira qualidade.
São eles o Tratado Sobre Certas Dúvidas de Navegação, e
o Tratado em Defesam da Carta de Marear - dedicatória ao
Infante D. Luís – sendo este último que apresenta pela primeira vez (1537) a
idéia das curvas que viriam a ser designadas de «loxodrómicas» e onde se
esclarece que é preciso « trazer não somente causas práticas da arte de
navegar, mas ainda partes de geometria e da parte teórica» (J. S. da Silva
Dias, p. 98).
Passados cinco anos sobre a publicação
do Tratado da Esfera, surgiu uma das suas obras
maisimportantes, o De Crepusculis Liber Unus, (1542) com
menção ao Cardeal D, Henrique. Saliente-se que, neste trabalho, o matemático
português trata à sua maneira um problema clássico da astronomia. Ou seja, o
problema da duração “do crepúsculo” em diferentes latitudes e dias do ano.
Aprofunda o estudo desta questão, elevando-a de problema geométrico qualitativo
e especulativo a problema matemático teórico, formulado de forma rigorosa e
susceptível de ser resolvido quantitativamente.
Porventura uma das obras maiores do autor,
é neste ensaio que Pedro Nunes refere o Nónio – na “Proposição III” –o famoso
instrumento teórico da subdivisão de escalas que lhe viria a dar grande
projecção cientifica. E que ainda hoje se usa. Obra sucessivamente editada em
Lisboa, na oficina de Luís Rodrigues,1542; em Coimbra. Oficina de António Mriz,
1571; em Basileia, oficina de Henrique Pedro, 1568 e 1592.
Importa, neste passo, relembrar que pouco
depois da publicação de De Crepusculos, Pedro Nunes é nomeado
Professor de Matemática na Universidade de Coimbra (1544). Precisamente nesta
altura dá ao prelo mais uma das obras polémicas que se lhe conhecem. Trata-se
do De Erratis Orontii Finac de 1546 (reeditada em 1572) onde
Pedro Nunes criticava, em pormenor, os erros de Oronce Finé (1494-1555), um
professor do Colégio Real de Paris considerado dos matemáticos mais importantes
do seu tempo.
Anota-se que o ilustre académico francês,
anunciava ter resolvido, finalmente, entre outros, os três problemas
geométricos clássicos entre os gregos – a quadratura do circulo, a trissecção
de qualquer angulo e a duplicação do cubo. Sabendo-se hoje como estes problemas
são de resolução impossível, com os meios geométricos clássicos (régua não
graduada e compasso), observamos que ao detectar os erros lógicos do raciocínio
de Oronce Finé, Pedro Nunes, afirmava-se mais uma vez como um nome maior na
matemática criativa europeia da epoca.
Até que, já em 1566, Pedro Nunes haveria
de publicar em Basileia uma colectânea dos seus trabalhos, em versão latina,
através da célebre Opera, relativa à arte de navegar. No ano
seguinte publicou em castelhano o Livro de Álgebra en Aritmética Y
Geometria editado em Anvers. Segundo se sabe pelo próprio autor
este livro fora escrito trinta anos antes em língua portuguesa. No final do
livro Pedro Nunes faz a critica aos tratadistas de Álgebra do seu tempo,
nomeadamente a Lucas Pacioli, Cardano e Tartaglia.
De acordo com Luis de Albuquerque em
verbete do Dicionário da História de Portugal ,
direcção de Joel Serrão (Vol. III, 1971), entre as várias obras de Pedro Nunes
sobre as quais existem referências mas que ficaram inéditas, uma única chegou
aos nossos dias conservada num códice na Biblioteca Nacional de Florência que
foi assinalada a Joaquim de Carvalho por Giacinto Manuppella, publicando-a o
investigador português sob o título de Defensão do Tratado da Rumação
do Globo para a Arte de Navegar (Coimbra, 1952).
IV – Pedro Nunes no pós - quinhentismo português e europeu.
Foram várias as obras de contemporâneos seus a discutirem-lhe o mérito
cientifico dos seus trabalhos.
Citam-se as edições raras como a da Astronomiae
Instauratae Mechanica, do astrónomo dinamarquês Tycho Brahe
(1546-1601), e a Opera Mathematica , do jesuíta Cristóvão
Clávio (1538-1612), obras onde os dois autores discutem o Nónio, assim como
a Tiphys Batavus, do matemático holandês Willebrord Snell
(1580-1626).
Neste contexto e em tópicos muito breves,
para se “duvidar do justificado” através da obra feita por Pedro Nunes, o
melhor é trazer à liça deste texto a análise e as opiniões de J.J. da Silva
Dias sobre “Os Descobrimentos e a Problemática do Século XVI” (Universidade de
Coimbra, 1973). Diz-nos o especialista do quinhentismo português que o
testemunho de Pedro Nunes no Tratado em Defesam da Carta de Marear,
é, decerto, o mais determinante de quantos se produziram nesta época.
Veja-se este extracto « Não há dúvidas que
as navegações deste reino, de cem anos a esta parte, são as maiores, mais
maravilhosas, de mais altas e mais discretas conjecturas, que as de nenhuma
outra gente no mundo». Lê-se a seguir: « Os portugueses (…) descobriram novas
ilhas, novas terras, novos mares, novos povos, e, o que mais é, novo céu e
novas estrelas.
Ao falar da geração composta por Pedro
Nunes, Amato Lusitano, Garcia da Horta e D. João de Castro, recorda-nos Silva
Dias que as ideias de Pedro Nunes foram expressas fundamentalmente entre 1537 e
1546, destacando-se no meio português e europeu por apontarem para a
necessidade de fixar rigorosamente o objecto do conhecimento e de aliar a
teorização à observação no domínio da ciência.
Cita-se de Pedro Nunes: « Nos últimos
dias, teve o Infante D. Henrique a curiosidade de saber a extensão dos
crepúsculos nos diferentes climas (…). Vendo eu entretanto que apenas se
respondia com coisas muito sabidas e gastas e por ninguém, que eu saiba, até
agora demonstradas, seduziu-me o intento de explicar claramente este assunto
mediante os princípios certíssimos e evidentíssimos da matemática» (
«Dedicatória» do De Crepusculos, 1542).
Em suma: não há duvida que o pensamento de
Pedro Nunes fez avançar e suplantou, por exemplo, as concepções de um Duarte
Pacheco Pereira (da geração anterior à sua), aproximando a ciência e a teoria,
a observação e a teorização, Teve ainda, segundo Silva Dias, a «fortuna de se
ver aprofundado e desenvolvido, em mais largo horizonte metodológico, por D.
João de Castro».
Dito isto, faltará reconhecer um pouco das
consequências e dos lados menos conhecido dos ensaios científicos de Pedro
Nunes analisados por Silva Dias, no Capitulo VII, no qual se debruça sobre a
chamada «Frustação Cultural da Expansão».
Quanto aos «ensaios teóricos-praticos de
Pacheco, Nunes, Castro, Orta…» diz-nos que não lograram porém eco significativo
no país. E acrescenta (em nota de rodapé, p. 341): «E os de Nunes caíram no
esquecimento, com o próprio ensino das matemáticas na Universidade» sobretudo
desde o processo inquisitorial, movido contra André de Avelar, seu sucessor na
cátedra de Matemática na Universidade de Coimbra.
Relativamente aos esforços de teorização
científica «dos Pachecos, Nunes, Castro e Orta não afectaram, metódica e
metodologicamente, a massa de pessoas ilustradas». Personalidades da
envergadura de um António Luís, Jerónimo Cardoso, do frade Francisco de Cristo
ou de Pedro da Fonseca, mantiveram-se pouco menos que indiferentes. Ou seja,
tornou-se uma evidência na realidade cultural portuguesa, desde os alvores da
época sebástica, o novo poder maciço dos dissuasores externos e da alienação interna.
Esse poder – lembra Silva Dias -
«prolongou-se, acentuando o seu monopólio ideológico e politico no seculo XVII.
O seu nome é Censura, Inquisição, Contra-Reforma».
Em síntese, por este conjunto de situações
percebe-se que os esforços de Pedro Nunes e de diversos nomes grandes da
ciência portuguesa já citados, não se reflectiram significativamente na
Universidade coimbrã. E muito menos na elite dos sapientes portugueses
dominantes na época.
O nosso problema, de ontem como de hoje, é
que os horizontes de contexto português da inteligência e da docência deixaram
de conseguir articular-se com os progressos do contexto eropeu, quer a nível da
prática cultural, quer no plano da Ciência. Numa palavra: do saber ao pensar
faltou-nos um novo empenhamento sério nas relações com a Europa pós-copernicana
que, Pedro Nunes, mostrara ainda no seu tempo: conhecer, acompanhar, discutir e
inovar.
(Amanhã: Ilações Finais)
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