quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

TRANSCRIÇÃO DA HABITUAL CRONICA DE OPINIÃO DIARIAMENTE EMITIDA NA RÁDIO DIANA/FM

             As Palavras - Não são neutras
Há um discurso no ar que atravessa quase todas as actividades, reuniões, apresentações, foruns, propostas de protocolos.
Um discurso composto de palavras que têm a pretensão da universalidade, da neutralidade e da frieza da tecnocracia.
Passamos o tempo a ouvir falar em “hub’s”, “players”, “stackholders”, “core business” e outros termos em discursos produzidos supostamente em potuguês.
É uma espécie de cassete reproduzida por uma nova geração de velhos tecnocratas que pretendem demonstrar a neutralidade de uma linguagem supostamente técnica.
Em português, a substituição de palavras que todos entendemos e às quais damos conotações muito precisas e negativas tem feito exactamente o mesmo caminho.
Poderia aqui dar inúmeros exemplos de como através da mudança da llinguagem se reproduz a ideia de um mundo mais leve, limpo e supostamente ideologicamente neutro, mas vou apenas referir um que me deixou espantado.
Decorria o forum social promovido pela Câmara de Évora, quando foi feita uma apresentação de um estudo académico sobre as pessoas em situação de “insegurança alimentar”.
Pensarão provavelmente que se tratou de alguma análise sobre o prazo de validade de alimentos ou outros riscos associados. Nada disso. Falava-se de pessoas que se encontravam em situação de não conseguirem garantir a alimentação suficiente para si e para as suas famílias.
Poderiamos dizer que se falou de dados estatísticos sobre os que não têm meios para suprir as necessidades alimentares e estaríamos a reflectir o que se passou, mas ainda assim estaríamos a utilizar uma linguagem distante e sem qualquer carga emocional. Ou poderiamos usar um termo que todos compreendemos e, sendo apenas uma palavra, contém lá dentro um mundo inteiro negro e pesado.
De facto falou-se de fome. Como devem imaginar é diferente dizer-se que um determinado grupo está em “situação de insegurança alimentar severa” do que dizer-se que os indivíduos que compõem esse mesmo grupo passam fome.
Quando se fala em “situação de insegurança alimentar severa” a coisa parece menos grave, mais limpinha, cria a distância necessária para que as emoções fiquem de fora, em particular a raiva, a indignação, a vontade de destruir o mundo que atira para a fome milhões de pessoas, para que alguns não percam os seus privilégios.
Esta sociedade já tinha deixxado de poduzir pobres para passar a produzir “carenciados”, já tinha deixado de produzir “sem abrigo” para passar a produzir “cidadãos com necessidades quantitativas de habitação”, agora parece que os que passam fome são cidadãos em “situação de insegurança alimentar severa” e os que têm de recorrer à rede familiar para poderem ter uma refeição são cidadãos em “situação de insegurança alimentar moderada”.
É apenas uma questão de terminologia dirão alguns ingénuos. Não, não é. É a linguagem a produzir ideologia, a obrigar-nos a usar as suas válvulas de escape.
Mas bem podem dizer que a “economia de mercado” atira para a “situação de insegurança alimentar severa” os “colaboradores” colocados em situação de procura de “novas oportunidades de desenvolvimento profissional”, que haverá sempre quem use as palavras certas para dizer que o sistema capitalista, pela sua natureza, atira para a fome os trabalhadores que pagam as suas crises estruturais.
Até para a semana
Eduardo Luciano

Sem comentários: