O aproximar do 100º aniversário do Grupo União Sport e
desaparecimento quase consecutivo de antigos jogadores, que são referências
desportivas, fizeram com que a nossa lembrança apontasse, como chuto certeiro,
em direcção ao Estádio 1º de Maio.
Em poucos meses ou semanas, fomos surpreendidos com as
mortes do Quim, do João Lalinho, do Raul Pascoal e, em Évora, do Dinis Vital.
Alem de terem sidi grandes atletas, eram pessoas por quem nutríamos estima,
que, aliás, era reciproca.
Não vamos ocupar-nos da biografia destes jogadores da velha
guarda, nem tão pouco fazer o historial do União. Outros montemorenses se têm
encarregado dessa tarefa, de forma bem documentada e com afã. Procurámos, tão-somente,
ir à procura de personagens, lugares e episódios que nos marcaram, e que não
são mas que fragmentos da vida.
A recordação mais longínqua que guardamos do clube da terra
remonta aos anos 50. Provem de uma peça de teatro revisteiro, a que assistimos
no Rádio-Cine, nos nossos verdes anos. As imagens visuais chegam-nos
imprecisas, difusas, mas as impressões sonoras permanecem bem gravadas.
Se bem nos lembramos, um grupo de jovens, envergando
camisolas alvinegras, circulava em palco, entoando uns versos musicados.
Boa finta de Cordeiro
Bom centro de
Pascoal,
E o Bravo muito
ligeiro,
Marca um golo colossal.
Cá fora, a malta
Dá pulos, salta
De animação.
Grita, está louca
Pelo União!
União, toda a vida
campeão
Da 2ª divisão!
Entretanto, na escola, tivemos o privilégio de ter como
mestre o professor Manuel Balbino, um homem de teatro e, simultaneamente
jogador do União de Montemor.
Alem de nos ter ensinado as primeiras letras e os primeiros
algarismos, o professor conseguiu transmitir-nos o gosto pela arte de
representar. Foi igualmente pela sua mão que pisámos pela primeira vez, o
rectângulo de jogo do Estádio 1º de Maio. Não ficámos futebolisticamente
contagiados, mas não podemos esconder o nosso deslumbramento, ao entrar em
campo, pontapeando bolas a sério, apontadas a balizas de verdade. A mor das
vezes, utilizava-se apenas metade do terreno, já que a rapaziada não tinha
canetas para o campo inteiro.
Embora, no que nos toca, não fossemos muito dotados para
jogar à bola, da nossa turma saiu uma mão cheia de rapaziada, que viria a
integrar, mais tarde, a equipa unionista. Destacamos, por exemplo o Julio Maia,
o Américo Romeiras, entre outros. O Quim (filho), com quem jogamos muitas vezes
a brincar, tornou-se um dos nossos maiores ídolos desportivos.
Nas ruas, nas praças, onde quer que fosse, a malta passava
horas esquecidas a cabecear bolas contra a parede ou a dar pequenos toques com
os pés, a ver quem contabilizava mais. Até cansava só de os ver!
Havia também exímios executantes entre os adultos. O António
Catatão, por exemplo, apesar de nunca se ter evidenciado como jogador
excepcional, era um artista a dominar o esférico. Em termos de malabarismo
faria inveja a um qualquer Cristiano Ronaldo.
Ainda na década de 50, quis o destino que fossemos morar
para a Carreira de São Francisco, no primeiro prédio construído em frente do
portão do Estádio. Bastava atravessar a rua, e aí estávamos nós, no recinto
desportivo, onde passámos uma boa parte da nossa infância. Assistíamos aos
treinos, apanhávamos bolas e, em última análise, jogávamos com as laranjas que
caiam das árvores junto às bancadas. Passávamos tempo sem fim a ver o guarda do
campo, que nessa altura era o amigo Gastão, alisando e marcando, a preceito, o
terreno pelado.
O lugar onde morávamos permitia ver grande parte do
rectângulo do jogo e acompanhar a actividade que fervilhava dentro e fora das
instalações desportivas. Aos Domingos, depois de almoço, formavam-se longas
filas junto às bilheteiras. No passeio, em frente, sentavam-se vendedeiras de castanhas, pevides, tremoços,
amendoins e também dos populares cavalinhos.
Inesquecíveis os suspiros do amigo Reinata. De caixa a
tiracolo, O Reinata vendia os melhores suspiros que alguma vez comemos:
grandes, corados, cremosos por dentro. Dois suspiros 5 tostões. E lá se ia a
nossa semanada.
Lá de cima, do primeiro andar, conseguíamos ouvir os gritos
sonoros do amigo Ivo, que ecoavam no estádio. Vai Rita! Vamos embora União!
Sempre que o jogo descaía para o lado da bancada, alguns
sócios VIP do clube e um pequeno grupo de senhoras, de pé, nos camarotes,
cortavam-nos parcialmente o campo de visão. Era preciso puxar pelo poder
imaginativo e tentar adivinhar o que se passava dentro das quatro linhas.
Regulávamo-nos pelos silêncios, ou pela euforia ruidosa dos espectadores. Se o
estádio mergulhava numa modorra, era sinal de jogo frouxo, sonolento, ou então
de que se estava a construir uma jogada menos interessante. Quando o barulho
ensurdecia, isso significava aproximação à baliza, terminando, não raras vezes,
com uma explosão de alegria: Gooooolo! União, União, União!
Em dias de invernia, assistíamos lá de casa, aos grandes
derbies, de pés enxutos. Que mais queríamos nós?!... era possível acompanhar os
movimentos do Pélé, o eterno apanha bolas, e ver o capacete do
guarda-republicano, montado a cavalo, que vigiava atrás do muro, do lado da
avenida. Se as coisas corriam para o torto, desembainhavam-se as espadas e
intimidavam-se com as montadas, os adeptos mais assanhados, que se aglomeravam
à saída.
Enquanto matutávamos nestas e noutras recordações,
cruzámo-nos casualmente com o Américo Romeiras, numa das esquinas da avenida. A
conversa fluiu de tal maneira, que mereceu sentarmo-nos à mesa de um café.
Viajámos até aos tempos da escola. Evocamos grandes professores como Carlos
Cebola, Manuel Balbino, o recém falecido professor Oleiro, entre outros.
Tentamos redesenhar o retrato físico do professor Balbino. Se o quiséssemos
caricaturar, bastava o seu perfil elegante e a proeminente maçã-de-adão. Relembramos
depois as segundas-feiras. Sempre que o professor jogava ao domingo, era quase
certa a folga. Algumas vezes tínhamos que lhe ir bater à porta. Em troca,
Manuel Balbino dava-nos o seu saber, a sua energia, o seu entusiasmo. Nos
intervalos organizava umas futeboladas. Se, à hora de tocar a sineta, o jogo
permanecia empatado, o professor chamava o Américo para meter o decisivo golo
de cabeça.
Enquanto aluno, o Romeiras era aquilo que se chama, em gíria
estudantil, um gazeteiro. Sempre que podia fugia das aulas para ir jogar. Fosse
como fosse, levou a sua avante. Aos dezasseis anos fazia parte dos escalões
mais jovens do União e, mais tarde, passou à equipa senior. Sempre com a mesma
atração pela baliza. O mister espanhol, Miguel Vinueza, e um outro jogador/treinador,
o José Espanhol, diziam que o lugar do Américo era atrás, no centro do terreno.
Eram dois “espanhóis” a dizer a mesma coisa.
A conversa foi decorrendo, entusiasmada e entusiasmante. A
chuva que caia na avenida trouxe-nos à lembrança o campo enlameado, as bolas de
couro molhadas e pesadas que nem chumbo, as botas envoltas em lama, que só o
guarda do campo conseguia destrinçar. Botas ruins, já se vê. Umas vezes os pés
dançavam lá dentro; outras vezes, os pregos que seguravam as travessas martirizavam
dedos e calcanhares.
Enquanto capitão de equipa, o Américo escolhia sempre jogar
para baixo, especialmente na 2ª parte. Quantas vezes, no fim do jogo, era
preciso “carregar a burra” para cima da baliza. Jogar para o lado do Rossio parecia ter as suas vantagens.
Ficaríamos aqui, tempo sem conto, a repescar memórias
relacionadas com o União. Vamos ter de terminar. Quase em vésperas de
aniversário, antecipamos os nossos votos sinceros: Parabéns, União Sport, pelos
100 anos de vida!
Vitor Guita
Extraído do mensário “O
Montemorense”- edição Outubro 2014
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