Em Setembro, torna-se quase imperativo falarmos da Feira da
Luz. Já o fizemos, por diversas vezes, em Memórias anteriores.
A Feira é, desde há longuíssimos anos, um dos maiores
acontecimentos que ocorrem anualmente em Montemor. Perde-se no tempo a sua
realização. Para muitos, foi e continua a ser o grande acontecimento.
Armámo-nos em andarilhos de memórias e, de caneta e papel em
punho, fomos à cata de recordações da grande festa e de episódios que giram á
sua volta. Ouvimos relatos que são espelhos de uma época, seis ou sete décadas
atrás. Talvez um pouco mais. Registamos impressões de um mundo que já não há,
com os seus encantos e desencantos.
Desta vez tomámos nota de experiências vividas por
familiares e amigos, nascidos e criados em Patalim, a meio caminho entre
Montemor e Évora. Estivemos ali, num animado bate-papo, sentados nos portados
do velho monte, a dois passos da estrada. Enquanto conversávamos, fomos
desfrutando a branda luz do fim da tarde, a frescura do ribeiro e da água que
jorra das bicas todo o ano. De quando em vez, o nosso olhar deslizava pelos
campos em volta, de sobro e de azinho. Muitos deles já foram, em tempos, chão
que deu trigo e outras searas. Muitas daquelas árvores multisseculares ocultam
histórias feitas de alegrias e tristezas, que, juntas, dariam uma boa
tragicomédia. Quantos daqueles sobreiros e azinheiras gigantes, já abrigaram da
chuva e da torreira do sol, ranchos de trabalhadores, mas também malteses e
ciganos.
Bem! Vamos lá a caminho da feira.
Em Patalim, a Feira de Setembro fazia-se anunciar muito
antes do Domingo inaugural. Com três dias de avanço, começavam a desfilar, ao
rés do caminho alcatroado, rebanhos de vacas, ovelhas e outros animais. Há quem
tenha memória de ver passar, entre chocas e campinos, curros de touros
poderosos, deixando para trás uma densa nuvem de poeira. Se os campinos
decidiam parar, enquanto um deles ia até à venda molhar a goela e tirar um
petisco, os outros ficavam de roda do gado bravo, nas imediações do monte, à
espera de serem rendidos. Não existiam as vedações que há hoje, o que gerava
uma certa inquietação nos habitantes do lugar. Regra geral, os touros passavam
indiferentes aos gritos e gestos do pessoal que se empoleirava nas árvores e no
pontão, por cima do ribeiro.
Quando se tratava de gado manso, vaqueiros e pastores davam
uma qualquer recompensa à garotada para ficar a olhar pelos rebanhos. A malta
já estava feita áquilo. Ao longo do ano, era frequente passarem por este lugar,
animais e carroças, transportando as mais diversas mercadorias. Um número
significativo vinha das bandas de Bencatel ou das terras vizinhas, com grandes
carregos de cal. No regresso, levavam sacadas de sal grosso. Enquanto largavam
por ali, carros e bestas e iam beber um copo, os homens das carroças
necessitavam de alguém que ficasse de guarda. Era aí que a malta miúda entrava
de serviço.
Voltemos de novo à festa.
A Feira da Luz era um momento marcante para as gentes do
concelho. Para as mulheres, em particular, era atura de estrearem vestidos,
malas e sapatos. As mulheres de Patalim não fugiam à regra. Cada qual trajava o
melhor que podia, de acordo com as possibilidades de momento.
Uma das vizinhas com quem falámos lembra-se de uma vez, ter
levado à feira umas alpercatas com borlas na frente a enfeitar. Era o melhor
que tinha. A jorna era magra. Não dava para sapatos.
Apesar das dificuldades, no fim das colheitas sempre entrava
mais algum dinheiro em casa. Entre meados de Agosto e a Feira da Luz,
contratados e lavradores acertavam as contas. Em muitos casos renovavam-se os
contratos para o novo ano agrícola. Entre o deve e o haver, sobejavam uns
cobres para o pessoal se empapoilar um pouco melhor.
O fim do Verão era, por norma, um tempo de maior fartura.
Havia trabalhadores que cultivavam uns bocados de terra, que lhes eram
distribuídos pelos lavradores. No fim, consoante os casos, entregava-se aos proprietários
uma certa percentagem da produção. Acontecia, por vezes, que os donos das terras
não queriam mais do que o amanho das mesmas.
Habitualmente colhia-se uma porção de milho, de abóboras, de
grão, de feijão-frade…uma parte dos rurais fazia o seu próprio meloal. Se as
coisas corriam bem, guardavam-se melancias, melões marmelinho e outra fruta,
nem que fosse debaixo da cama.
O malvado do dinheiro é que era pouco e não faltavam dívidas
na mercearia e na taberna para pagar. Alem disso, era preciso acertar contas
com o Manel do Cântaro, os Abílios e outros vendedores ambulantes. Na volta, lá
se ia parte do grão e do feijão.
A propósito de dívidas e pagamentos, um dos nossos
familiares recorda-se de ter comprado um relógio de pulso ao José Luís, um
conhecido ourives que andava de monte em monte a vender artigos de relojoaria e
ourivesaria. Vinte e cinco tostões por semana era quanto o Serranito tinha de
por de lado para pagar o Actuel em segunda mão. O relógio custou-lhe oitenta e
cinco escudos.
Alguns dos vendedores ambulantes negociavam,entre outras
mercadorias, fato feito, linhas, botões, tecidos a metro (chitas, riscados,
gorgorinas…). A costura fazia parte dos hábitos femininos. Ainda o sol não era
nascido já havia mulheres lançadas a costurar, antes de enregarem na lida do
campo. Algumas em vez da sesta, no intervalo do trabalho, aproveitavam para
fazer renda e dar mais uns pontos.
Era preciso aproveitar tempo e dinheiro. Andar ao rabisco da
cortiça ou do carvão era uma das formas de se ganhar mais algum. Contaram-nos
situações em que o dinheiro do rabisco ajudou a pagar o enxoval.
Trabalhos e sacrifícios á parte, em dias de feira, por volta
do meio-dia, o pessoal de Patalim estava na estrada, pronto para embarcar na
camioneta até Montemor. “ Uma bela hora para se ir para a feira, não haja
duvida” – ironizou uma das nossas parceiras de conversa, enquanto outra
comentava – “Àquela hora estava um calor parvo para andar de carrossel e
passear no meio da poeirada!”.
Na paragem do Patalim, juntava-se um magote de populares, em
grande parte mulheres, que dava para encher uma camioneta. Alem do pessoal do
lugar, vinha gente do Monte da Parreira, da Azinheira e de outros montes em
redor. Tudo estava previamente acordado com o Senhor Agostinho da Setubalense,
que já sabia qual o número de passageiros e a hora a que tinha que os vir
buscar. À noite, à hora combinada, acontecia o movimento inverso.
As compras na feira, passavam frequentemente pela aquisição
de umas cadeiras empalhadas, artigos de palma, louça de barro, roupa…Havia quem
levasse para casa bonecas de papelão.
A dado momento, a conversa degenerou em galhofa, quando alguém
se lembrou de ter ficado sem boneca logo a seguir à feira. O brinquedo de
papelão não resistiu ao primeiro banho a valer.
Quanto aos homens, iam à procura de mantas, gabões, chapéus,
samarras, safões…Os amantes das touradas não dispensavam uma boa corrida,
debaixo de um sol inclemente. Era a oportunidade de verem os cavaleiros João
Nuncio e Simão da Veiga, a Conchita Cintron, os forcados da terra. Para muitos,
a festa dos touros e o circo eram dos raros espectáculos a que tinham direito
durante o ano inteiro.
Vamos ficar por aqui. Em vez de andarmos a rebuscar mais
fotografias antigas para compor a nossa página, lembramo-nos de juntar os versos
de um grande poeta de Montemor, que tão bem soube retratar a nossa terra.
Deixamo-lo estimado leitor, com a Feira da Luz, de Manuel Justino Fereira:
Amêndoas, cestas de figos
E carradas de melão!
Capotes, trajos antigos
E barracas de torrão!
Vinham de longe feirantes
Vinham ganhões e pastores…
E das herdades distantes
Vinham patões e feitores!
Fruta, cebolas e alhos,
Alfarroba e ervilhanas…
Guizeiras, molins, chocalhos
E mantas alentejanas!
Por toda a parte se via
Barracas…divertimentos
E uma libra valia
Apenas quatro e quinhentos!
De todo o lado chegavam
Trens, carroças, churriões…
E os miúdos compravam
Brinquedos a dez tostões!
Quando um toiro bravo fugia
Para as bandas da Estalagem,
Era sempre uma razia
Nos burros da ciganagem!
Depois da besta ferrada,
Um almoço alentejano!
De tarde ia-se à tourada
E à noite ao Circo Mariano!
Feira antiga, podes crer,
Mesmo longe…na distância…
Tu continuas a ser
A Feira da minha infância!
Manuel Justino
Artigo de Vitor Guita publicado in “o
Montemorense de Setembro 2014 e transcrito após autorização do Autor
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