A propósito do livro “A Malta das Trincheiras” - de André Brun
(in “Portugal e a
Grande Guerra”)
Vivenciamos um período que perfaz cem anos sobre a eclosão
da Primeira Grande Guerra: conflito em que Portugal foi obrigado a
participar - já por razões de defesa das colónias africanas
(que corriam o risco de ocupação pelos alemães ou pelas potências aliadas -
fosse qual fosse o vencedor do conflito), ou numa atitude de afirmação
na defesa das ideias democráticas (lembrando-nos que vivíamos no regime democrático da I República). Custou-nos a
nossa participação na guerra, a mobilização de cem mil homens, e a perda (por
morte na batalha ou desaparecimento) de cerca de dez mil soldados.
É certo que o Padre António Vieira, num dos seus “Sermões”,
a certa altura pertinentemente acentua: «É a guerra aquela calamidade composta de
todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça ou não se
tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico
não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem
segura a sua honra, o eclesiástico não tem segura a sua imunidade, o religioso
não tem segura a sua cela, e até Deus nos templos e nos sacrários não está
seguro.» Também é certo que Pedro Mexia (no “Expresso”) se refere à Primeira
Grande Guerra, do seguinte modo: «A guerra trouxe mortandade, genocídios,
desesperança, desumanidade. Houve soldados forçados a carregar estupidamente
sobre o inimigo, caso contrário seriam abatidos pelos seus superiores. E a paz
não acabou com todas as guerras, gerou apenas construções sofisticadas e
ineficazes chamadas Tratado de Versalhes, República de Weimar ou Sociedade das
Nações. (...) O historiador Norman Stone conta que um oficial superior do
estado-maior, ao visitar o atoleiro de um campo de batalha, não conteve as
lágrimas e perguntou: “Foi para ali que enviámos os homens?” »
Ora, é nesta mesma linha de pensamento que Paulo VI (in “Populorum Progressio”) se dirige às
grandes potências mundiais, exortando: «Homens de Estado: incumbe-vos mobilizar
as vossas comunidades para uma solidariedade mundial mais eficaz e, sobretudo,
levá-las a aceitar os impostos necessários sobre o luxo e o supérfluo, a fim de
promoverem o desenvolvimento e salvarem a paz. Delegados às organizações
internacionais, de vós depende que perigosas e estéreis oposições de forças
dêem lugar à colaboração amiga, pacífica e desinteressada, a favor de um
desenvolvimento solidário da humanidade, onde todos os homens possam
realizar-se (...) Seguindo o exemplo de Cristo, ousamos pedir-vos: “buscai e
encontrareis”. Abri os caminhos que levam, pelo auxílio mútuo, a um
aprofundamento do saber, a ter um coração grande, a uma vida mais fraterna numa
comunidade humana verdadeiramente universal.»
Ora, quanto a nós, a promoção social (a concepção de todo o
Homem enquanto Pessoa) só será realidade quando em todo o mundo os seres
humanos forem na íntegra reconhecidos como Pessoas -
mediante uma verdadeira Democratização, um autêntico Desenvolvimento e
uma credível Descolonização (atendendo a que assistimos a um Presente Histórico
que pouco augura de inversão política, económica, cultural e social num Futuro,
que desejaríamos promissor): e a prova está na aflição (a todos os níveis) das
Redes Sociais ao longo do Planeta.
O Ser Humano deve ver no outro de sua espécie, alguém com
direitos e deveres semelhantes aos seus, na medida em que (no âmbito do
Cristianismo) todos os Homens são Irmãos em Cristo: ou não invocasse a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, que todos os Homens nascem livres e
iguais em direitos (e dignidade - acrescentamos nós).
Ora, no tecer da História, descobrimos os despoletadores da
guerra e as vítimas da violência do inimigo que abriu o conflito: e Portugal,
de 1914 a 1918, foi obrigado a defender a integridade física, política,
económica e identitária do País, como compreendemos numa endopatia histórica
(isto é, situando-nos na época). E a prova mais saliente dessa compreensão da
política dos estadistas republicanos, da altura, está na edificação dos
Monumentos aos Mortos da Grande Guerra (ao longo do País), e na edição recente
de uma série de Estudos Históricos alusivos à Primeira Grande Guerra e à
participação portuguesa no conflito mundial, de verdadeira pertinência se
atendermos à escassez de obras de referência histórica ao primeiro conflito de
repercussão planetária.
E o livro “A Malta das Trincheiras” - de
André Brun - tem como fundo temático, precisamente a participação
portuguesa na guerra (sobretudo, na Flandres
- norte de França) - obra
de fina objectividade, com uma linguagem escorreita, de raro conhecimento do
humano, de invulgar capacidade de apreensão dos factos, das sociedades, das
mentalidades, do significado das operações militares; porém, a faceta do livro
que mais me “agarrou”, foi a beleza estética da escrita - ou
André Brun não nos deixasse igualmente (noutro campo temático, claro!) obras de
teatro e argumentos de filmes como a “Maluquinha de Arroios” e a “Vizinha do
Lado”.
Diga-se, porém, que André Brun participou na I Grande Guerra
(integrado no Corpo Expedicionário Português), com a patente de Major - a
comandar o Batalhão de Infantaria 23
- manifestando o propósito de (no
cumprimento do dever cívico, patriótico e operacional) considerar cada soldado
um amigo: situação que os soldados sentiam, vendo nele um chefe que sabia ser
companheiro de armas. Incutia nos soldados patriotismo democrático,
responsabilidade, civismo, heroísmo, companheirismo, garbo - e
afirme-se que André Brun regressou a Portugal (após longas lutas, dificuldades,
trabalho nas trincheiras, operações de “raids” em campo inimigo, respostas de
tiro em casos de pressão inimiga) sem uma única baixa no seu batalhão;
registe-se que o batalhão de André Brun esteve quase toda a missão militar, na
vanguarda: porém, ele contava com a solidariedade, a amizade, o “profissionalismo”,
o espírito de responsabilidade dos seus companheiros.
E André Brun designava os seus soldados (oriundos do
português da província, da clase popular, na maioria analfabetos, mas dotados
de espírito desenrascado e inteligente
- a toda a prova) por “Folgadinho”.
Era assim o “Folgadinho” - o típico soldado nosso - como
Brun o designava. Soldado que cativava as raparigas francesas (que fingiam
evitar as suas alarvices, com um discreto “esteja quieto!”, em português mal
entoado).
André Brun também era altamente considerado na população
francesa: ao ponto de uma senhora de idade que, na altura de despedida, chorava
copiosamente (com a sinceridade da atitude de senhora em reservar uma
fotografia da filha de André Brun, numa redoma de vidro, junto a um crucifixo).
Brun, na “Malta das Trincheiras” não deixaria de registar a
atitude dos seus soldados - ao chegarem a uma cidadezinha francesa
devastada pela artilharia alemã - de designarem uma imagem da Virgem Maria
encontrada intacta nos destroços da igreja da pequena cidade, após a colocarem
em lugar digno, por “Nossa Senhora das Trinchas” -
colocando aos seus pés, enquanto ali permaneceram, implorando protecção,
imensos ramos de flores.
No Prefácio do livro (que nos oferece cerca de trinta curtas
histórias vividas pelos nossos soldados durante o conflito) José Jorge Letria
anota: «O maior mérito de “A Malta das Trincheiras” reside talvez no facto de
não estarmos em presença de uma narrativa épica onde o sofrimento e a morte
foram a regra trágica de cada dia, mas sim de uma humaníssima abordagem do
comportamento humano feita com raros humor, sensibilidade e respeito pela dor e
pela dignidade do ser humano. Poucas narrativas de guerra, nos países em que
viveram o trágico conflito, têm estas características. Isso deve-se ao facto de
André Brun (...) ser um talentoso
cronista do quotidiano pequeno-burguês e não um dramaturgo dos grandes temas da
vida e da morte como foram Paul Claudel ou Jean Anouilh.»
Edição da “Guerra e Paz”, adiantamos nós.
José Alexandre Laboreiro
1 comentário:
OBs.
Enquanto visitante do Al tejo, sinto
todo o orgulho e respeito pela
qualidade e pela densidade desta
abordagem critica, à obra de André
Brun sobre"Malta das Trincheiras".
da autoria de JALaboreiro.
De facto, e tanto quanto sabemos,
trata-se de uma narrativa especial
e única com "uma elevada carga de
sensibilidade humana
e mística" relatando partes muito
belas da nossa participação na I
Guerra Mundial.
Tanto mais que a incursão
portuguesa na guerra, teve tudo
para nos correr mal. E, de certa
maneira, assim aconteceu, excepção
feita, ao entendimento,descrição e
leitura que Andre Brun entendeu
deixar-nos da qualidade e da
sensibilidade do Homem Português e
dos soldados portugueses que
souberam estar à altura dos mais
diversos confrontos, extremamente
desiguais que fomos travando em
defesa da nossa Pátria.
Na condição humana de cidadãos de
um Mundo que andava a fazer a
guerra sem cuidar que aquilo que os
seres humanos mais querem é a paz e
a solidariedade permanentes.
Bem haja,JAL
Melhores saudações
ANBerbem
aos demais portugueses que souberam
estar com ele
Enviar um comentário