quinta-feira, 14 de agosto de 2014

COLABORAÇÃO DO Dr. Alexandre Laboreiro

                           O espírito e a técnica

«Um ser humano só cumpre o seu dever quando tenta aperfeiçoar os dotes que a natureza lhe deu».
 Herman Hesse
(Poeta e romancista alemão; Prémio Nobel - 1946)

É verdade que o humanismo clássico foi enriquecido, no Renascimento, pela contribuição cristã. Porém, esta, admitindo  a igualdade dos homens perante Deus, limitou-se  -  na prática  -  a alargar a concepção humanista apenas no âmbito religioso. Uma vez comparado com o estatuto do escravo romano, a situação social do servo da gleba medieval reveste um resultado demasiado magro para as esperanças dos primeiros cristãos. A escravatura nua e crua continuou, aliás, a ser praticada ao longo da Idade Média e da Idade Moderna pelos europeus contra os não-europeus. Ora, esta iniquidade do cristianismo, face à pretensão de conseguir uma expressão universalista do seu humanismo (no campo social), deveria ser meditada pelos mesmos cristãos  -  no intuito de aquilatarem a autenticidade e coerência do seu pensamento humanista.
Perante a exigência da igualdade social como essencia num humanismo social, há quem objecte que a participação nos valores do humanismo, longe de poder ser dada pela simples aquisição de um estatuto social, terá de ser sempre o prémio de uma conquista espiritual acessível unicamente a um escol intelectual de individuos superiormente dotados: ou seja, que o acesso aos valores do humanismo será sempre limitado, menos por uma diferenciação social do que por uma diferenciação intelectual. Porém, a verdade é que, se a melhoria do estatuto social não garante, automaticamente, o acesso aos valores da cultura, reveste  -  pelo menos  -  a condição mínima desse acesso. E subordinar a limitação da promoção intelectual a contingências de ordem social, equivale à aceitação duma fórmula de organização social contra a qual se ergueram as vozes mais válidas da Cultura  do nosso tempo. A indiferença de alguns outros humanistas face às revoltas e às esperanças que essas vozes representam, se não está em contradição com a sua fidelidade aos ideais do humanismo clássico, está contudo em contradição com as suas intenções universalistas. É que um humanismo dentro do qual não cabem os problemas do homem do nosso tempo não pode ser considerado um humanismo completo.
E são de incluir neste universalismo humanista, as palavras (inseridas no “Populorun Progressio”) de Paulo VI: «Delegados às instituições internacionais, homens de Estado, publicistas, educadores: todos, cada um no seu campo, sois os construtores de um mundo novo. Suplicamos a Deus Todo-Poderoso esclareça a vossa inteligência e fortifique a vossa coragem para despertardes a opinião pública e conduzirdes os povos. Educadores, compete-vos a vós estimular, desde a infância, o amor para com os povos que vivem na miséria. Publicistas, a vós pertence pôr diante dos vossos olhos os esforços realizados no sentido da ajuda mútua entre os povos, assim como o espectáculo das misérias que os homens tendem a esquecer para tranquilizar a consciência: que, ao menos, que os ricos saibam que os pobres estão à sua porta e esperam os sobejos dos festins». Aliás, já anteriormente (no âmbito de um universalismo ético), João XXIII exarara (in “Pacen in Terris”) os seguintes apelos: «A ordem que há-de vigorar na sociedade humana é de natureza espiritual. Com efeito, é uma ordem que se funda na verdade, que se realizará segundo a justiça, que se animará e se consumará no amor, que se recomporá e sempre na liberdade, mas sempre também em novo equilíbrio cada vez mais humano. Ora, essa ordem moral  –  universal, absoluta e imutável nos seus princípios  -  encontra a sua origem e o seu fundamento no verdadeiro Deus, pessoal e transcendente».
Humanismo universal pensado igualmente nestas palavras do Papa Francisco (in “A alegria do Evangelho”): «O grande risco do mundo actual, com a sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, de busca desordenada de prazeres superficiais, de consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza a doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco certo e permanente, que correm também os  crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna e plena, este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida do Espírito que jorra do coração de Cristo ressuscitado. Convido todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de o procurar dia a dia sem cessar.»
Bem como encontramos a intenção de um humanismo universal, nas seguintes alocuções de Nelson Mandela, quando ele nos verbera e adverte: «Ninguém nasce a odiar outra pessoa por causa da cor da pele, da classe social ou da religião. As pessoas são ensinadas a odiar, mas se conseguem aprender o ódio também é preciso ensinar-lhes o amor. Porque o amor é mais inerente, por natureza, ao coração humano do que o oposto. A bondade dos homens é uma chama que se pode ocultar, mas que não é possível extinguir».
Palavrs indeléveis, marcantes, pertinentíssimas e belas  -  de tolerância racial, humanismo, empatia e amor fraterno, estas de Nelson Mandela.
Humanismo ético emergente de um mundo construído e refeito, ao longo de milénios, pelo Ser Humano  -  com recurso ao cérebro e à mão, ao espírito e à técnica, à força  e à inteligência: mundo erigido pelo saber e a força humanos, ameaçado tantas vezes pelo  voluntarismo ignorante que igualmente caracterisa a espécie  -  mas sempre salvo pela virtude que inspira o coração humano: a Fraternidade (imbuída da crença do constante aperfeiçoamento do Homem).

José Alexandre Laboreiro 
 Julho 2014

Publicado no “Montemorense” e compartilhado no Al Tejo com a devida autorização do Autor.

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