O espírito e a técnica
«Um ser humano só cumpre o seu dever quando tenta
aperfeiçoar os dotes que a natureza lhe deu».
(Poeta e romancista alemão; Prémio Nobel - 1946)
É verdade que o humanismo clássico foi enriquecido, no
Renascimento, pela contribuição cristã. Porém, esta, admitindo a igualdade dos homens perante Deus,
limitou-se - na prática
- a alargar a concepção humanista
apenas no âmbito religioso. Uma vez comparado com o estatuto do escravo romano,
a situação social do servo da gleba medieval reveste um resultado demasiado
magro para as esperanças dos primeiros cristãos. A escravatura nua e crua
continuou, aliás, a ser praticada ao longo da Idade Média e da Idade Moderna
pelos europeus contra os não-europeus. Ora, esta iniquidade do cristianismo,
face à pretensão de conseguir uma expressão universalista do seu humanismo (no
campo social), deveria ser meditada pelos mesmos cristãos - no
intuito de aquilatarem a autenticidade e coerência do seu pensamento humanista.
Perante a exigência da igualdade social como essencia num
humanismo social, há quem objecte que a participação nos valores do humanismo,
longe de poder ser dada pela simples aquisição de um estatuto social, terá de
ser sempre o prémio de uma conquista espiritual acessível unicamente a um escol
intelectual de individuos superiormente dotados: ou seja, que o acesso aos
valores do humanismo será sempre limitado, menos por uma diferenciação social
do que por uma diferenciação intelectual. Porém, a verdade é que, se a melhoria
do estatuto social não garante, automaticamente, o acesso aos valores da
cultura, reveste - pelo menos
- a condição mínima desse acesso.
E subordinar a limitação da promoção intelectual a contingências de ordem
social, equivale à aceitação duma fórmula de organização social contra a qual
se ergueram as vozes mais válidas da Cultura
do nosso tempo. A indiferença de alguns outros humanistas face às
revoltas e às esperanças que essas vozes representam, se não está em
contradição com a sua fidelidade aos ideais do humanismo clássico, está contudo
em contradição com as suas intenções universalistas. É que um humanismo dentro
do qual não cabem os problemas do homem do nosso tempo não pode ser considerado
um humanismo completo.
E são de incluir neste universalismo humanista, as palavras
(inseridas no “Populorun Progressio”) de Paulo VI: «Delegados às instituições
internacionais, homens de Estado, publicistas, educadores: todos, cada um no
seu campo, sois os construtores de um mundo novo. Suplicamos a Deus
Todo-Poderoso esclareça a vossa inteligência e fortifique a vossa coragem para
despertardes a opinião pública e conduzirdes os povos. Educadores, compete-vos
a vós estimular, desde a infância, o amor para com os povos que vivem na
miséria. Publicistas, a vós pertence pôr diante dos vossos olhos os esforços
realizados no sentido da ajuda mútua entre os povos, assim como o espectáculo
das misérias que os homens tendem a esquecer para tranquilizar a consciência:
que, ao menos, que os ricos saibam que os pobres estão à sua porta e esperam os
sobejos dos festins». Aliás, já anteriormente (no âmbito de um universalismo
ético), João XXIII exarara (in “Pacen in Terris”) os seguintes apelos: «A ordem
que há-de vigorar na sociedade humana é de natureza espiritual. Com efeito, é
uma ordem que se funda na verdade, que se realizará segundo a justiça, que se
animará e se consumará no amor, que se recomporá e sempre na liberdade, mas
sempre também em novo equilíbrio cada vez mais humano. Ora, essa ordem
moral –
universal, absoluta e imutável nos seus princípios -
encontra a sua origem e o seu fundamento no verdadeiro Deus, pessoal e
transcendente».
Humanismo universal pensado igualmente nestas palavras do
Papa Francisco (in “A alegria do Evangelho”): «O grande risco do mundo actual,
com a sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza
individualista que brota do coração comodista e mesquinho, de busca desordenada
de prazeres superficiais, de consciência isolada. Quando a vida interior se
fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não
entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza a doce alegria
do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco certo e
permanente, que correm também os
crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas ressentidas,
queixosas, sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna e plena, este não é o
desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida do Espírito que jorra do
coração de Cristo ressuscitado. Convido todo o cristão, em qualquer lugar e
situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus
Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de o
procurar dia a dia sem cessar.»
Bem como encontramos a intenção de um humanismo universal,
nas seguintes alocuções de Nelson Mandela, quando ele nos verbera e adverte:
«Ninguém nasce a odiar outra pessoa por causa da cor da pele, da classe social
ou da religião. As pessoas são ensinadas a odiar, mas se conseguem aprender o
ódio também é preciso ensinar-lhes o amor. Porque o amor é mais inerente, por
natureza, ao coração humano do que o oposto. A bondade dos homens é uma chama
que se pode ocultar, mas que não é possível extinguir».
Palavrs indeléveis, marcantes, pertinentíssimas e belas - de
tolerância racial, humanismo, empatia e amor fraterno, estas de Nelson Mandela.
Humanismo ético emergente de um mundo construído e refeito,
ao longo de milénios, pelo Ser Humano
- com recurso ao cérebro e à mão,
ao espírito e à técnica, à força e à
inteligência: mundo erigido pelo saber e a força humanos, ameaçado tantas vezes
pelo voluntarismo ignorante que
igualmente caracterisa a espécie - mas sempre salvo pela virtude que inspira o
coração humano: a Fraternidade (imbuída da crença do constante aperfeiçoamento
do Homem).
José Alexandre Laboreiro
Julho 2014
Publicado no “Montemorense” e compartilhado no Al Tejo com a
devida autorização do Autor.
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