«O trágico na condição do homem
moderno é a ausência de diálogo, de comunicação espiritual com os outros.»
(Filósofo
e psico-analista francês – 1909/1966)
Miguel Torga (in “Diário-VIII”) escreveu, em Fevereiro
de 1958, que «Contra o definhamento do espírito, só realmente a liberdade»:
enquanto expressão de uma paixão pelo espírito livre, traduzindo uma postura de
fidelidade a si mesmo, a uma vontade de inserção no mundo - revelando a noção do que era e ambicionava
ser: como Homem, como Português, como testemunha e participante de uma
comunidade em movimento.
Torga assistiria, felizmente, à
implementação da Liberdade no seu país
- pelo que tanto lutara. Porém, o
homem não vive só do tempo de agora, mas desloca-se pelo passado e anseia pelo
porvir -
é a dialéctica própria da condição humana, como constata Vitorino
Magalhães Godinho; daí a intenção do Homem em formar as suas gerações (enquanto
suporte cultural, político, social e económico das Democracias), no intuito de
uma vivência verdadeiramente democrática. E, a tal propósito diz-nos António
Sérgio: «O cidadão (de carácter) e de espírito crítico, que consegue dominar os
seus próprios nervos e que sabe opor aos variados poderes (pelos seus juízos)
uma resistência pacífica, obstinada, lúcida... (dá realidade a uma
democracia)». É que a verdadeira reforma da sociedade não depende só de um
remédio mecânico a ela aplicado de uma vez para sempre: tem de estribar-se
simultaneamente numa acção moral de todos os dias. O socialismo eterno e mais
profundo é o de carácter ético e idealista
- como proclamava Antero de
Quental.
E, em tal contexto, atente-se nas
sublimes recomendações de António Sérgio: «Ensine-se a ler, claríssimo está:
mas façamo-lo tão-só como mero instrumento de verdadeira obra educativa, que é
a realização da cultura crítica, da disciplina do homem pelo seu intelecto, da
concentração (do espírito) e da mesura ética, da lucidez, da objectividade, do
movimento centrípeto - em suma, da “vontade geral” - no
ânimo de cada um de nós».
E, indubitavelmente, esta postura
de Sérgio, estas ideias sublimes da construção do Homem (Pessoa, produtor,
Cidadão, eleitor) detentor de vontade, de verdades, de uma cultura cívica, de
opiniões, de balizas com vista à edificação do Futuro do País (bem como à
avaliação do seu Passado), são assumidas por António Sérgio (não como dogmas),
mas como contributos cívicos (quanto a mim, incontornáveis) com vista à
edificação de um Portugal ao nível do seu Passado maior, e ao nível de uma
Nação moderna, europeia, culta - em consonância com a Felicidade dos
Portugueses: valendo-lhe estes propósitos, a prisão, o julgamento em tribunal
político, o exílio do País que tanto defendeu
- às ordens de Salazar.
A António Sérgio, refere-se do
seguinte modo o Poeta Manuel Alegre
- em Poema que dedica a Sérgio:
«Alguns procuravam a Salvação // embebedavam-se de metafísica e de
palavras. // Tu não propunhas solução: //
interrogavas.»
Mas, se referimos Sérgio como
alicerce ideológico da Democracia, enquanto ideal político, enquanto governo
por elites naturais (democraticamente escrutinadas), criadoras de uma opinião
pública cultivada, e executantes da opinião pública: um governo de persuasão
pelo escol da inteligência - é porque Sérgio se revelou um verdadeiro
cânone, modelo, referência, numa Democracia do diálogo, da manifestação (e
audição) da multiplicidade de opiniões e ideias, de uma opinião pública que
nascia logo das Assembleias das Autarquias e do Associativismo (alfobres de
cultura cívica, de promotores do desenvolvimento, de formadores da consciência
democrática) - consciência que Sérgio nos desperta ao longo
dos seus Ensaios, é certo, mas igualmente nas suas atitudes de cidadão e na sua
literatura ficcionada (inclusivamente a que destinou às crianças - os
futuros cidadãos).
E, teremos de concordar:
Sérgio -
o formador, o democrata, o dialogante, o inspirador -
seria uma constante no âmbito do associativismo (seja das assembleias municipais,
como assinalámos, quer das colectividades de recreio, de cultura, desportivas,
cooperativistas, económicas, de solidariedade, etc. - autênticas promotoras de experiências cívicas
e formadoras da cidadania: enquanto criadoras de experiências colectivas e
solução de problemas, de organização, funcionamento e resposta colectiva às
necessidades das populações - substituindo mesmo muitas das funções do
Estado);
dentro de um espírito de
autonomia e independência, procurando a edificação dos valores humanos da
solidariedade e da partilha, buscando
- inclusivamente - de
modo generoso e desinteressado, o desenvolvimento das suas comunidades e
regiões; para além de, do mesmo modo, constituírem verdadeiras escolas de
cidadania (desenvolvendo nos seus membros competências específicas, estimulando
a assunção de responsabilidades, a rentabilização de recursos e o trabalho de
equipa). Porém, assumindo os valores da igualdade, da liberdade e
coo-responsabilidade - o associativismo assenta primordialmente na
defesa e promoção da dignidade humana.
Nascido, certamente, da
necessidade de o Homem ter de cooperar
- nos tempos do Paleolítico
- entre si na caça, e (mais tarde) na
agricultura e na pecuária, o associativismo é encontrado nas Confrarias, nas
Hansas, nas Misericórdias de finais da Idade Média; considerando que o
associativismo moderno, emergirá durante o séc. XIX (alargando-se modernamente
nos nossos dias - sobretudo após a Revolução de Abril - sob
múltiplas facetas: Associações de Bombeiros, Sociedades columbófilas, ranchos
folclóricos, grupos excursionistas, associações de moradores, associações de
agricultores, grupos de defesa do património, da natureza, do ambiente,
associações científicas, de jovens, associações de pais, de dadores de sangue,
associações recreativas, etc.). Na base da adesão associativista, estarão
múltiplos e facetados factores: desde o factor solidão até à superação das
debilidades do conhecimento, passando pelo intuito de vencer o ócio e o vazio
ou partilhar os bens materiais ou espirituais.
E termino com uma citação - que
pedi emprestada a Antero de Quental
- que, com Sérgio (assumem ambas
as personalidades o papel de grandes inspiradores da nossa cultura
contemporânea, e - como tal
- incontornáveis numa leitura assídua
dos seus textos); ora, diz-nos Antero: «Pareceu que cumpria, enquanto os povos
lutam nas revoluções, e antes que nós mesmos tomemos nelas o nosso lugar,
estudar serenamente a significação dessas ideias e a legitimidade desses
interesses; investigar como a sociedade é, como ela deve ser, como as nações
têm sido, e como se pode fazer hoje a liberdade, e, por serem elas as
formadoras do homem, estudar todas as ideias e todas as correntes do século».
Texto pertinentíssimo numa época de imposição de pensamento único, a que Antero
opõe a proposta de discussão de ideias, livre e democrática (dando a
oportunidade de, a par de ideias mais válidas, educar consciências cívicas).
Afinal, «O homem sensato é aquele que se surpreende com tudo» -
diz-nos o ensaísta francês André Gide: desta forma, oxalá nos tenham
surpreendido as figuras de Sérgio e de Antero
- ideólogos do Associativismo
político e cultural, da Democracia e das Liberdades Cívicas: centelhas das
Liberdades nestas noites escuras que se anunciam.
José Alexandre Laboreiro
Publicado in Folha de Montemor, Julho 2014 e cedido amavelmente pelo Autor.
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