O Neo-realismo: literatura de combate
«Foi a maçã da ciência // O fruto que Deus proibiu; // Só
se pagou com a morte: // Bem cara a
todos saiu.»
António Maria Eusébio (Poeta Popular – 1820/1911)
(in “Para a
história da literatura popular portuguesa”)
São vários os casos míticos, em que os mortais desafiam o
poder divino, no intuito de obter saberes, que trariam melhores condições de
existência à Humanidade: lembrando-nos nós dos mitos de Ícaro e Prometeu (da
mitologia grega) e da desobediência de Adão (da mitologia cristã). Porém, a
História/Ciência permite-nos o conhecimento de inúmeros casos de persecução de
intelectuais (obrigando assim ao atavismo da Ciência e impedindo o clarear da
Verdade), como foram o julgamento (pela Inquisição) de Galileu ou o célebre
“Processo” a que se refere Kafka - pondo como alvo de admiração por parte da
Humanidade, os Homens que se sacrificam na conquista dos saberes e do
conhecimento (enquanto progresso social verdadeiramente democrático). A esta
circunstância, se referia Sören Kierkegaard do seguinte modo: «Fala-se da coragem necessária para
sacrificar a sua vida ao serviço da verdade; expõe-se a todos os perigos;
faz-se recuar de temor a maior parte da gente; só o homem corajoso se lança no
perigo que acarreta por fim a sua perda; admiram-no e -
ámen!»
Quando foi extinta (em sequência da Revolução de Abril) a
Comissão de Censura, constatou-se constituírem, na ordem dos milhares, os
títulos de obras literárias proibidas por lei de serem divulgadas - para
além de os seus autores (muitas vezes) serem igualmente perseguidos, vigiados,
mesmo presos e julgados, por delito de opinião (a qual consistiria na análise
social da comunidade portuguesa (conteúdo referencial por excelência do
Neo-realismo português), atitude de denúncia a um tempo em que, doutro modo,
igualmente nos oferece personagens literárias que, para além de encarnarem os
valores humanos (o heroísmo, o amor filial, a solidariedade, a justiça, o
espírito de luta, a identificação democrática, a fraternidade, etc.) constituem
igualmente belas peças literárias tão bem esteticamente esculpidas). E pelo
romance (e pela poesia) neo-realistas, perpassam estivadores, marinheiros,
pescadores, operários, meninos abandonados que roubam para comer, trabalhadores
rurais, pequenos comerciantes, burgueses, latifundiários, democratas e
conservadores.
O Neo-realismo português eclodiria nos inícios da década de
1930: encontrando-se a presente geração, não só no nosso país como em toda a
parte, num período de crise, em plena confusão de valores e de termos, frente a
uma problemática complexa de cuja solução depende inclusivamente o seu direito
a viver.
É porque o seu destino se joga, que a sua atitude perante a
vida é essencialmente intervencionista, e portanto de conquista - conquista de condições que lhe permitam
solucionar os seus problemas vitais. A esta oposição perante a vida corresponde
em literatura a necessidade duma arte realista e social.
Diz-nos Joaquim Namorado: «Só as forças ascendentes amam a realidade e a verdade, exactamente
porque são de conquista; os que defendem um equilíbrio estabelecido, temendo as
consequências do seu conhecimento, refugiam-se nas mentiras nefelibatas, ou no
intelectualismo puro e estéril».
Esta necessidade de realidade gerou um vasto movimento
neo-realista que cresce em todos os continentes e se pode julgar iniciado em
Gorki e na linha de certo realismo e naturalismo francês (embora se devam
afirmar diferenças profundas).
O romance e a poesia neo-realistas, são profundamente de
denúncias sociais (“A todos os homens que nunca foram crianças” -
dedica Soeiro Pereira Gomes o seu livro “Engrenagem”), e não nos
admiremos da prosa social de Aquilino, Redol, Soeiro Pereira Gomes, Namora,
José Gomes Ferreira, Vergílio Ferreira, Abel Botelho, Antunes da Silva, Manuel
da Fonseca, Stau-Monteiro, Mário Ventura, bem como de Joaquim Namorado e
Alexandre Pinheiro Torres, e a poesia de Régio, Gomes Ferreira, Manuel Alegre,
José Carlos de Vasconcelos, etc., ser igualmente social: é que - como
nos lembram António José Saraiva - a cultura é condicionada pelas condicionantes
económicas, sociais e políticas da sua época
- e vivíamos uma ditadura de má
memória; daí, gerar-se uma literatura, logicamente de denúncia, aliadas - ao
que se supõe - à contaminação (no processo de escrita) do
neo-realismo francês (Malreaux, por exemplo), e brasileiro (Jorge Amado, Erico
Veríssimo, Graciliano Ramos, Amando Fontes ou José Lins do Rêgo).
E esta apetência pela denúncia social, que atravessava a
esmagadora maioria dos escritores neo-realistas portugueses, teria forte
impacto na atribuição do Prémio Literário da Sociedade Portuguesa de Escritores
(1965) ao escritor angolano Luandino Vieira (face ao seu livro “Luuanda”):
atitude que desagradaria ao escritor salazarista Joaquim Paço d’Arcos e a
alguns poucos - que motivaria a sua demissão da Associação de
escritores. E porque desagradou do mesmo modo a Salazar, este determinou o
encerramento da Sociedade de Escritores: atitude da ditadura que provocou o
estreitamento, a união, a unidade da quase totalidade dos escritores (todos da
Oposição) - que denunciaram na Imprensa internacional o
grande escândalo da atitude do ditador, e por arrastamento acarretaria a onda
de protestos dos escritores estrangeiros do Ocidente (da Alemanha até ao Brasil
e Estados Unidos); bem como a reprovação de figuras (não abertamente da
Oposição) como David Mourão-Ferreira e Maria de Lurdes Belchior. Tudo isto
levando Marcelo Caetano, passado curto tempo (1973) a reabrir a Sociedade de
Escritores (agora denominada Associação Portuguesa de Escritores) - em
cuja cerimónia inaugural, Sofia de Mello Breynner (na presença de Marcelo
Caetano) faria questão de acentuar que a reaberta Associação Portuguesa de
Escritores - em continuação da Sociedade
Portuguesa de Escritores - teria sempre como princípio, a determinação
da defesa da liberdade de consciência e a defesa da responsabilidade de
escrever. E no fim de contas, quem duvida que
«sem cultura (neste caso, o livro,
o artigo de opinião, o comentário) o homem não adquire a compreensão dos
fenómenos que observa, quer se verifiquem no mundo natural ou no mundo social;
não adquire aquela consciência de si próprio que, realçando as suas qualidades
individuais, melhor o integra no conjunto social em que vive mergulhado? Não
pode, portanto, ter uma consciência esclarecida dos seus direitos e dos seus
deveres; e, em consequência, está, ao
menos potencialmente, feudalizado, dependente das direcções a que outros o sujeitem? É um vassalo, não um
cidadão»? Estas palavras de interrogação são de Victor de Sá e, quanto a
mim, pertinentes para justificar a Cultura e o
imprescindível papel social do Escritor.
José Alexandre Laboreiro
Publicado in Folha de
Montemor –Junho 2014 e transcrito com a devida autorização do Autor
2 comentários:
Mais uma vez o Dr. José Alexandre
Laboreiro nos brinda com um Brilhante Texto.
óptimo texto!
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