quarta-feira, 25 de junho de 2014

COLABORAÇÃO DO DR. JOSÉ ALEXANDRE LABOREIRO

                                O Neo-realismo: literatura de combate

«Foi a maçã da ciência  //  O fruto que Deus proibiu;  //  Só se pagou com a morte: //  Bem cara a todos saiu.»
António Maria Eusébio (Poeta Popular – 1820/1911)
(in “Para a história da literatura popular portuguesa”)

São vários os casos míticos, em que os mortais desafiam o poder divino, no intuito de obter saberes, que trariam melhores condições de existência à Humanidade: lembrando-nos nós dos mitos de Ícaro e Prometeu (da mitologia grega) e da desobediência de Adão (da mitologia cristã). Porém, a História/Ciência permite-nos o conhecimento de inúmeros casos de persecução de intelectuais (obrigando assim ao atavismo da Ciência e impedindo o clarear da Verdade), como foram o julgamento (pela Inquisição) de Galileu ou o célebre “Processo” a que se refere Kafka  -  pondo como alvo de admiração por parte da Humanidade, os Homens que se sacrificam na conquista dos saberes e do conhecimento (enquanto progresso social verdadeiramente democrático). A esta circunstância, se referia Sören Kierkegaard do seguinte modo: «Fala-se da coragem necessária para sacrificar a sua vida ao serviço da verdade; expõe-se a todos os perigos; faz-se recuar de temor a maior parte da gente; só o homem corajoso se lança no perigo que acarreta por fim a sua perda; admiram-no e  -  ámen!»
Quando foi extinta (em sequência da Revolução de Abril) a Comissão de Censura, constatou-se constituírem, na ordem dos milhares, os títulos de obras literárias proibidas por lei de serem divulgadas  -  para além de os seus autores (muitas vezes) serem igualmente perseguidos, vigiados, mesmo presos e julgados, por delito de opinião (a qual consistiria na análise social da comunidade portuguesa (conteúdo referencial por excelência do Neo-realismo português), atitude de denúncia a um tempo em que, doutro modo, igualmente nos oferece personagens literárias que, para além de encarnarem os valores humanos (o heroísmo, o amor filial, a solidariedade, a justiça, o espírito de luta, a identificação democrática, a fraternidade, etc.) constituem igualmente belas peças literárias tão bem esteticamente esculpidas). E pelo romance (e pela poesia) neo-realistas, perpassam estivadores, marinheiros, pescadores, operários, meninos abandonados que roubam para comer, trabalhadores rurais, pequenos comerciantes, burgueses, latifundiários, democratas e conservadores.
O Neo-realismo português eclodiria nos inícios da década de 1930: encontrando-se a presente geração, não só no nosso país como em toda a parte, num período de crise, em plena confusão de valores e de termos, frente a uma problemática complexa de cuja solução depende inclusivamente o seu direito a viver.
É porque o seu destino se joga, que a sua atitude perante a vida é essencialmente intervencionista, e portanto de conquista  -  conquista de condições que lhe permitam solucionar os seus problemas vitais. A esta oposição perante a vida corresponde em literatura a necessidade duma arte realista e social.
Diz-nos Joaquim Namorado: «Só as forças ascendentes amam a realidade e a verdade, exactamente porque são de conquista; os que defendem um equilíbrio estabelecido, temendo as consequências do seu conhecimento, refugiam-se nas mentiras nefelibatas, ou no intelectualismo puro e estéril».
Esta necessidade de realidade gerou um vasto movimento neo-realista que cresce em todos os continentes e se pode julgar iniciado em Gorki e na linha de certo realismo e naturalismo francês (embora se devam afirmar diferenças profundas).
O romance e a poesia neo-realistas, são profundamente de denúncias sociais (“A todos os homens que nunca foram crianças”  -  dedica Soeiro Pereira Gomes o seu livro “Engrenagem”), e não nos admiremos da prosa social de Aquilino, Redol, Soeiro Pereira Gomes, Namora, José Gomes Ferreira, Vergílio Ferreira, Abel Botelho, Antunes da Silva, Manuel da Fonseca, Stau-Monteiro, Mário Ventura, bem como de Joaquim Namorado e Alexandre Pinheiro Torres, e a poesia de Régio, Gomes Ferreira, Manuel Alegre, José Carlos de Vasconcelos, etc., ser igualmente social: é que  -  como nos lembram António José Saraiva  -  a cultura é condicionada pelas condicionantes económicas, sociais e políticas da sua época  -  e vivíamos uma ditadura de má memória; daí, gerar-se uma literatura, logicamente de denúncia, aliadas  -  ao que se supõe  -  à contaminação (no processo de escrita) do neo-realismo francês (Malreaux, por exemplo), e brasileiro (Jorge Amado, Erico Veríssimo, Graciliano Ramos, Amando Fontes ou José Lins do Rêgo).
E esta apetência pela denúncia social, que atravessava a esmagadora maioria dos escritores neo-realistas portugueses, teria forte impacto na atribuição do Prémio Literário da Sociedade Portuguesa de Escritores (1965) ao escritor angolano Luandino Vieira (face ao seu livro “Luuanda”): atitude que desagradaria ao escritor salazarista Joaquim Paço d’Arcos e a alguns poucos  -  que motivaria a sua demissão da Associação de escritores. E porque desagradou do mesmo modo a Salazar, este determinou o encerramento da Sociedade de Escritores: atitude da ditadura que provocou o estreitamento, a união, a unidade da quase totalidade dos escritores (todos da Oposição)  -  que denunciaram na Imprensa internacional o grande escândalo da atitude do ditador, e por arrastamento acarretaria a onda de protestos dos escritores estrangeiros do Ocidente (da Alemanha até ao Brasil e Estados Unidos); bem como a reprovação de figuras (não abertamente da Oposição) como David Mourão-Ferreira e Maria de Lurdes Belchior. Tudo isto levando Marcelo Caetano, passado curto tempo (1973) a reabrir a Sociedade de Escritores (agora denominada Associação Portuguesa de Escritores)  -  em cuja cerimónia inaugural, Sofia de Mello Breynner (na presença de Marcelo Caetano) faria questão de acentuar que a reaberta Associação Portuguesa de Escritores -  em continuação da Sociedade Portuguesa de Escritores  -  teria sempre como princípio, a determinação da defesa da liberdade de consciência e a defesa da responsabilidade de escrever. E no fim de contas, quem duvida que  «sem cultura (neste caso, o livro, o artigo de opinião, o comentário) o homem não adquire a compreensão dos fenómenos que observa, quer se verifiquem no mundo natural ou no mundo social; não adquire aquela consciência de si próprio que, realçando as suas qualidades individuais, melhor o integra no conjunto social em que vive mergulhado? Não pode, portanto, ter uma consciência esclarecida dos seus direitos e dos seus deveres; e, em  consequência, está, ao menos potencialmente, feudalizado, dependente das direcções a  que outros o sujeitem? É um vassalo, não um cidadão»? Estas palavras de interrogação são de Victor de Sá e, quanto a mim, pertinentes para justificar a Cultura e o  imprescindível papel social do Escritor.

José Alexandre Laboreiro
Publicado in Folha de Montemor –Junho 2014 e transcrito com a devida autorização do Autor



2 comentários:

Anónimo disse...


Mais uma vez o Dr. José Alexandre
Laboreiro nos brinda com um Brilhante Texto.

Anónimo disse...

óptimo texto!