Foi castigo. Em Março, pusemo-nos a vaticinar o fim do
Inverno e, durante uns quantos dias, levámos com mais d mesmo: chuva, frio,
vento, granizo e outros acompanhamentos a que a invernosa estação dá direito.
Portanto, não arriscamos mais previsões meteorológicas, ainda assim não
fiquemos impedidos de ir para o campo comer o borreguinho.
Certo é que, apesar da mobilidade no calendário, a Páscoa
continua a ser celebrada no equinócio da Primavera, no primeiro Domingo a
seguir à lua cheia. Isto, enquanto os
homens não comandarem as fases da lua.
Rezam os livros que a palavra Páscoa deriva do hebreu
“pesah”, que significa mudança, passagem. Está relacionada com o êxodo do povo
hebraico para se libertar do jugo egípcio.
Vem desde esses tempos remotos o costume de sacrificar um
cordeiro, com cujo sangue o povo de Moisés pintava as ombreiras e o lintel da
porta da casa. Depois, comia-se a carne, acompanhada com pão ázimo e ervas
amargas. Tudo isto tinha uma grande carga simbólica, que não vamos aqui
esmiuçar.
Sabe-se também que os antigos povos pagãos da Europa
costumavam homenagear a Deusa Ostera, que se distinguia das outras divindades,
por segurar um ovo na mão. Daí, certamente, o costume de diversos povos
europeus, mais a norte, decorarem os ovos para comemorar a chegada da
Primavera. Acreditava-se que receber ovos pintados era sinónimo de fortuna,
amor, fertilidade e outras coisas consideradas positivas.
Por cá, apesar de já termos sido invadidos pela moda dos
ovos e dos coelhos achocolatados, vai prevalecendo a oferta das amêndoas, e há
mesmo quem ainda mantenha a tradição dos padrinhos.
Entre cristãos, a Páscoa é a grande celebração da
Ressurreição de Jesus Cristo, mistério que é o cerne de todo o cristianismo. A
passagem da morte para a vida é assinalada com alegria. Os sinos repicam nas
igrejas, os altares despem-se das tristonhas cores da Paixão, cobrindo-se de
luz e de flores. Aleluia! Aleluia!
Depois da austeridade da Quaresma, com os jejuns e
abstinências que isso implica, é chegado o momento de cumprir a tradição de
comer o borrego da Páscoa.
Uns preparam a mesa em casa, mas ainda há, cada vez menos,
os que preferem a segunda-feira para fazer a festa no campo e saborear o
ensopado, o assado no forno e os doces da época. É comer e beber até ficar com
os dedos e os beiços untados! Infelizmente, há cada vez mais gente para quem a
vida não passa de uma Quaresma permanente.
Mas, não nos vamos alongar a falar das tradições pascais. Em
crónicas anteriores, já lhe dedicamos largo espaço.
Estávamos nós nestas meditações, e eis que a imagem dos
ovos, dos ninhos, e das antigas amêndoas populares, pequenas e roliças, fizeram
voar o nosso pensamento para o campo, onde grande parte da passarada já começou
a nidificar. Alem disso, uma conversa à mesa do café com amigos entendidos na
matéria veio acicatar o nosso interesse pelo universo das aves.
À nossa lembrança acorreram. Entretanto, imagens
inesquecíveis dos passeios que dávamos com o avô Zé Guita, ali para os lados do
Mal Enforcado e da Quinta da Bolina. O velho abegão sabia muito de madeira, mas
era igualmente perito em passarinhada.
Se já estávamos motivados, o interesse cresceu ainda mais
numa destas manhãs, quando começamos a ouvir o palrar de uma pega
desavergonhada, que todos os dias, à mesma hora, faz questão de nos despertar.
É curioso como os animais nos dão as horas do dia, e, diz-se, também o estado
do tempo.
Á primeira vista a pega é uma ave interessante, diremos
mesmo, com uma certa beleza.
A sua plumagem faz lembrar um fato de cerimónia. A cabeça e
o dorso pretos, o abdómen branco, a cauda comprida com reflexos esverdeados
fazem dela uma das aves mais esbeltas que rondam a nossa casa. Como não há bela
sem senão, a pega tem fama de “ladra” e de necrófaga. A fama, e pelos vistos, o
proveito. Volta não volta, lá anda uma, na estrada, depenicando um animal
morto. Dizem também que é useira e vezeira em alimentar-se e alimentar suas
crias com os filhos dos outros pássaros.
Entretanto, do lado voltado para a Avenida, fomos atraídos
pelo doce cantar de uma rola que costuma poisar diariamente num dos postes de
iluminação. Pelo aspecto parece tratar-se de uma dessas rolas da cidade. Alguns
chamam-lhes rolas turcas. Diz o pessoal da caça que as rolas bravas são cada
vez mais raras. É devido à baixa produção cerealífera e consequente falta de
alimento - defendem uns. Outros alegam que as aves partiram de cá, escaldadas
de tanta perseguição. As rolas lá terão as suas razões.
Quanto ao ninho, diz quem sabe, o da rola é um tanto ou
quanto improvisado, sem grandes primores: meia dúzia de paus secos em cima de
uma pernada e já está. A uma ave de arribação, que se tem de andar de um lado
para o outro, de malas aviada, também não se pode exigir muito mais.
Cucurru! Cocurru – arrolhava a ave, aparentemente tímida e
desconfiada, como se lançasse o seu lamento a quem circulava na rotunda da
avenida. Estivemos quase a deixar-nos embalar na cantiga.
Passado algum tempo. A rolita lançou-se num voo rápido, em
direcção a uns quintalões, ali para os lados da Horta das Bacias.
Observador de pássaros, de dentro de casa, é entusiasmante,
mas, em contacto com a natureza, redobra a emoção. Fomos até Patalim, um dos
nossos paradeiros habituais. Sentámo-nos debaixo de uma frondente mimosa, junto
à estrada. Entretanto chegaram o nosso sogro e um vizinho, ambos nascidos e
criados ali, á beira do ribeiro. Não há talouco nem ramo de árvore que eles não
conheçam.
Estivemos ali os três, em amena cavaqueira, observando o
esvoaçar dos pássaros, a ouvi-los cantar, a tentar interpretar os seus
comportamentos. De facto, observar as aves, no seu meio natural, é bem mais
aliciante.
Um dos primeiros pássaros a dar nas vistas foi um chapim ou
cachapim, como também por aqui lhe chamam. Julga-se que tem o ninho no tronco
de uma velha nogueira. O barrete preto e as diversas maneiras de cantar
pareciam não deixar duvidas. Era por certo um chapim. Em pouco tempo
ouvimos-lhe várias vocalizações, como se estivesse a ensaiar diferentes árias
de ópera. É pássaro seguramente, com vasto reportório musical.
Olhámos, depois, para a nespereira á nossa frente. Segundo
nos contaram, foi, durante anos, o local escolhido pelos melros para ali
fazerem o ninho. Tentámos espreitar por entre as largas e resistentes folhas.
Nada. Parece que os melros decidiram emigrar.
Um dos nossos companheiros de conversa alertou-nos para o
facto de que, no que toca a ninhos, ás vezes pode haver surpresas. Vai-se á
espera de encontrar uma coisa e sai de lá outra. Aconteceu assim com um ninho
de melro ocupado por um cuco. Consta que o cuco gosta muito deste tipo de
intrusão. Come os ovos dos ninhos dos outros pássaros e põe lá os dele, a ver
se lhe criam os filhos. Está mais que visto. Parasitas, há-os por todo o lado.
Se há pássaros que são acusados de chicos-espertos, outros gozam de fama de patetas. É o que se
passa com o pisco. Afiançara-nos que é o pássaro mais parvo para cair numa
armadilha. Quem já fez, em tempo essa experiência, assegurou-nos que mal armava
a ratoeira, era só virar costas e já cantava mais um. Também com os homens é
assim. Há quem se deixe cair mais facilmente em tentação.
Por fim. Apontámos o nosso olhar para o lado oposto do
ribeiro. Num pedaço de terra recentemente mexida, viam-se autenticas
esquadrilhas de andorinhas em voo rasante, como se andassem à babugem, com os
olhos postos num insecto ou noutro qualquer bicharoco.
Confessou-nos um velho amigo, que em gaiato, lhe ensinaram
que as andorinhas são as galinhas de Nossa Senhora. Se acontecia matar uma
daquelas avezinhas, era certa a noite de pesadelo.
Bem! Vamos ter que voltar, um dia destes, ao mundo da
passarada. O tema é fértil.
Foram vários aqueles que escreveram acerca das aves,
qualificando-as de alegres, espertas, atrevidas, inocentes, tentando despertar
nos leitores, a mor das vezes um sentimento de simpatia.
Nos seus poemas, nas suas fábulas e noutro tipo de
narrativas houve, muitas vezes, a tentativa de aproximar as aves do ser humano.
Despedimo-nos com uns cândidos versos do Poeta Afonso Lopes
Vieira, inspirado nos passarinhos:
Que bonitos, que engraçados,
que pequenos coitadinhos
os estouvados
dos passarinhos !
A sua vida é cantar,
voar
brincar pelo ar;
e alegrar;
com seus chilreios
tão cheios
de graça e boa alegria,
a luz do dia !
Vítor Guita
Abril 2014
Publicado no jornal o
Montemorense – Edição de Abril 2014 - e
copiado com autorização do Autor
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