quarta-feira, 30 de abril de 2014

MEMÓRIAS CURTAS - Rubrica mensal a cargo do Prof Vitor Guita

Foi castigo. Em Março, pusemo-nos a vaticinar o fim do Inverno e, durante uns quantos dias, levámos com mais d mesmo: chuva, frio, vento, granizo e outros acompanhamentos a que a invernosa estação dá direito. Portanto, não arriscamos mais previsões meteorológicas, ainda assim não fiquemos impedidos de ir para o campo comer o borreguinho.
Certo é que, apesar da mobilidade no calendário, a Páscoa continua a ser celebrada no equinócio da Primavera, no primeiro Domingo a seguir à lua cheia. Isto,  enquanto os homens não comandarem as fases da lua.
Rezam os livros que a palavra Páscoa deriva do hebreu “pesah”, que significa mudança, passagem. Está relacionada com o êxodo do povo hebraico para se libertar do jugo egípcio.
Vem desde esses tempos remotos o costume de sacrificar um cordeiro, com cujo sangue o povo de Moisés pintava as ombreiras e o lintel da porta da casa. Depois, comia-se a carne, acompanhada com pão ázimo e ervas amargas. Tudo isto tinha uma grande carga simbólica, que não vamos aqui esmiuçar.
Sabe-se também que os antigos povos pagãos da Europa costumavam homenagear a Deusa Ostera, que se distinguia das outras divindades, por segurar um ovo na mão. Daí, certamente, o costume de diversos povos europeus, mais a norte, decorarem os ovos para comemorar a chegada da Primavera. Acreditava-se que receber ovos pintados era sinónimo de fortuna, amor, fertilidade e outras coisas consideradas positivas.
Por cá, apesar de já termos sido invadidos pela moda dos ovos e dos coelhos achocolatados, vai prevalecendo a oferta das amêndoas, e há mesmo quem ainda mantenha a tradição dos padrinhos.
Entre cristãos, a Páscoa é a grande celebração da Ressurreição de Jesus Cristo, mistério que é o cerne de todo o cristianismo. A passagem da morte para a vida é assinalada com alegria. Os sinos repicam nas igrejas, os altares despem-se das tristonhas cores da Paixão, cobrindo-se de luz e de flores. Aleluia! Aleluia!
Depois da austeridade da Quaresma, com os jejuns e abstinências que isso implica, é chegado o momento de cumprir a tradição de comer o borrego da Páscoa.
Uns preparam a mesa em casa, mas ainda há, cada vez menos, os que preferem a segunda-feira para fazer a festa no campo e saborear o ensopado, o assado no forno e os doces da época. É comer e beber até ficar com os dedos e os beiços untados! Infelizmente, há cada vez mais gente para quem a vida não passa de uma Quaresma permanente.
Mas, não nos vamos alongar a falar das tradições pascais. Em crónicas anteriores, já lhe dedicamos largo espaço.
Estávamos nós nestas meditações, e eis que a imagem dos ovos, dos ninhos, e das antigas amêndoas populares, pequenas e roliças, fizeram voar o nosso pensamento para o campo, onde grande parte da passarada já começou a nidificar. Alem disso, uma conversa à mesa do café com amigos entendidos na matéria veio acicatar o nosso interesse pelo universo das aves.
À nossa lembrança acorreram. Entretanto, imagens inesquecíveis dos passeios que dávamos com o avô Zé Guita, ali para os lados do Mal Enforcado e da Quinta da Bolina. O velho abegão sabia muito de madeira, mas era igualmente perito em passarinhada.
Se já estávamos motivados, o interesse cresceu ainda mais numa destas manhãs, quando começamos a ouvir o palrar de uma pega desavergonhada, que todos os dias, à mesma hora, faz questão de nos despertar. É curioso como os animais nos dão as horas do dia, e, diz-se, também o estado do tempo.
Á primeira vista a pega é uma ave interessante, diremos mesmo, com uma certa beleza.
A sua plumagem faz lembrar um fato de cerimónia. A cabeça e o dorso pretos, o abdómen branco, a cauda comprida com reflexos esverdeados fazem dela uma das aves mais esbeltas que rondam a nossa casa. Como não há bela sem senão, a pega tem fama de “ladra” e de necrófaga. A fama, e pelos vistos, o proveito. Volta não volta, lá anda uma, na estrada, depenicando um animal morto. Dizem também que é useira e vezeira em alimentar-se e alimentar suas crias com os filhos dos outros pássaros.
Entretanto, do lado voltado para a Avenida, fomos atraídos pelo doce cantar de uma rola que costuma poisar diariamente num dos postes de iluminação. Pelo aspecto parece tratar-se de uma dessas rolas da cidade. Alguns chamam-lhes rolas turcas. Diz o pessoal da caça que as rolas bravas são cada vez mais raras. É devido à baixa produção cerealífera e consequente falta de alimento - defendem uns. Outros alegam que as aves partiram de cá, escaldadas de tanta perseguição. As rolas lá terão as suas razões.
Quanto ao ninho, diz quem sabe, o da rola é um tanto ou quanto improvisado, sem grandes primores: meia dúzia de paus secos em cima de uma pernada e já está. A uma ave de arribação, que se tem de andar de um lado para o outro, de malas aviada, também não se pode exigir muito mais.
Cucurru! Cocurru – arrolhava a ave, aparentemente tímida e desconfiada, como se lançasse o seu lamento a quem circulava na rotunda da avenida. Estivemos quase a deixar-nos embalar na cantiga.
Passado algum tempo. A rolita lançou-se num voo rápido, em direcção a uns quintalões, ali para os lados da Horta das Bacias.
Observador de pássaros, de dentro de casa, é entusiasmante, mas, em contacto com a natureza, redobra a emoção. Fomos até Patalim, um dos nossos paradeiros habituais. Sentámo-nos debaixo de uma frondente mimosa, junto à estrada. Entretanto chegaram o nosso sogro e um vizinho, ambos nascidos e criados ali, á beira do ribeiro. Não há talouco nem ramo de árvore que eles não conheçam.
Estivemos ali os três, em amena cavaqueira, observando o esvoaçar dos pássaros, a ouvi-los cantar, a tentar interpretar os seus comportamentos. De facto, observar as aves, no seu meio natural, é bem mais aliciante.
Um dos primeiros pássaros a dar nas vistas foi um chapim ou cachapim, como também por aqui lhe chamam. Julga-se que tem o ninho no tronco de uma velha nogueira. O barrete preto e as diversas maneiras de cantar pareciam não deixar duvidas. Era por certo um chapim. Em pouco tempo ouvimos-lhe várias vocalizações, como se estivesse a ensaiar diferentes árias de ópera. É pássaro seguramente, com vasto reportório musical.
Olhámos, depois, para a nespereira á nossa frente. Segundo nos contaram, foi, durante anos, o local escolhido pelos melros para ali fazerem o ninho. Tentámos espreitar por entre as largas e resistentes folhas. Nada. Parece que os melros decidiram emigrar.
Um dos nossos companheiros de conversa alertou-nos para o facto de que, no que toca a ninhos, ás vezes pode haver surpresas. Vai-se á espera de encontrar uma coisa e sai de lá outra. Aconteceu assim com um ninho de melro ocupado por um cuco. Consta que o cuco gosta muito deste tipo de intrusão. Come os ovos dos ninhos dos outros pássaros e põe lá os dele, a ver se lhe criam os filhos. Está mais que visto. Parasitas, há-os por todo o lado.
Se há pássaros que são acusados de chicos-espertos,  outros gozam de fama de patetas. É o que se passa com o pisco. Afiançara-nos que é o pássaro mais parvo para cair numa armadilha. Quem já fez, em tempo essa experiência, assegurou-nos que mal armava a ratoeira, era só virar costas e já cantava mais um. Também com os homens é assim. Há quem se deixe cair mais facilmente em tentação.
Por fim. Apontámos o nosso olhar para o lado oposto do ribeiro. Num pedaço de terra recentemente mexida, viam-se autenticas esquadrilhas de andorinhas em voo rasante, como se andassem à babugem, com os olhos postos num insecto ou noutro qualquer bicharoco.
Confessou-nos um velho amigo, que em gaiato, lhe ensinaram que as andorinhas são as galinhas de Nossa Senhora. Se acontecia matar uma daquelas avezinhas, era certa a noite de pesadelo.
Bem! Vamos ter que voltar, um dia destes, ao mundo da passarada. O tema é fértil.
Foram vários aqueles que escreveram acerca das aves, qualificando-as de alegres, espertas, atrevidas, inocentes, tentando despertar nos leitores, a mor das vezes um sentimento de simpatia.
Nos seus poemas, nas suas fábulas e noutro tipo de narrativas houve, muitas vezes, a tentativa de aproximar as aves do ser humano.
Despedimo-nos com uns cândidos versos do Poeta Afonso Lopes Vieira, inspirado nos passarinhos:

Que bonitos, que engraçados,
que pequenos coitadinhos
os estouvados
dos passarinhos !

A sua vida é cantar,
voar
brincar pelo ar;
e alegrar;
com seus chilreios
tão cheios
de graça e boa alegria,
a luz do dia !

Vítor Guita
Abril 2014

Publicado no jornal o Montemorense – Edição de Abril 2014 -  e copiado com autorização do Autor



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