quinta-feira, 13 de março de 2014

COLABORAÇÃO DO Dr. ALEXANDRE LABOREIRO

                     Viagem andarilha em redor da Cultura do Espírito

«Também o pensamento tem um tempo para lavrar a terra e um tempo para fazer a colheita.»

Ludwig Wittgenstein - filósofo judeu austríaco  -  primeira metade do séc. XX
                                                                   (in “Tractatus”  -  1925)

O progresso poderá ser entendido de variadas maneiras. Durante a Idade Média cristã, o progresso revestia o aperfeiçoamento espiritual do Homem, aperfeiçoamento que implicava o sacrifício, a ascese do corpo e o desprendimento material, a humildade, a paciência, a caridade, a abnegação, a submissão, a modéstia  -  consideradas qualidades próprias à perfeição cristã (e mesmo à crença budista): deparando nós em Buda e S. Francisco de Assis, exemplos típicos deste ideal.
Porém, também podemos entender como progresso, a libertação do Homem em relação à Natureza  -  havendo, contudo, historiadores do séc. XIX a verem na História a luta da liberdade contra a fatalidade (aparecendo mesmo, nos finais do séc. XVIII, Condorcet a expor (in “Quadro dos Progressos do Espírito Humano”), como qualidades positivas no ser humano, a dissipação, a soberba, a ostentação, a obesidade).
Efectivamente, a relação do Homem com a Natureza modifica-se: esta é forçada a uma defensiva  -  tendo mesmo de defender-se face a um consumo exacerbado e contra a evasão da indústria. Assim, o progresso já não é aperfeiçoamento individual, mas sim sinónimo de expansão das massas (como deduzimos do livro “A Rebelião das Massas”  -  de Ortega e Gasset).
O próprio conceito de Economia alterou-se: significava, antes, conseguir um objecto útil com o menor custo (economizar tinha conotação de poupar), mas hoje o intuito da Economia é produzir a maior quantidade de moeda possível (a Economia identifica-se com investimento); é que, anteriormente, construía-se uma casa com as comodidades necessárias para nela habitar a Família; hoje, é para vender, isto é, para a pôr a circular no mercado financeiro. Em suma, anteriormente, pensava-se no valor útil, hoje age-se em função do valor de troca  -  aparecendo um novo tipo de “ascetismo”: o do capitalista que se priva de comodidades para aumentar o seu capital circulante.
António José Saraiva (in “O que é a Cultura”) especifica que as circunstâncias históricas são, elas, uma consequência da própria condição humana, quer dizer da própria cultura e das condições em que ela se desenvolve. E, neste cômputo, é pertinente a alusão de João Barrento (in “O Mundo está cheio de deuses”) ao desvario cultural em que estamos mergulhados: formando-nos e divertindo-nos nos joguinhos de uma “play station” à escala planetária que algum cérebro japonês ou americano concebeu à medida das novas formas de imaginação virtual e da nossa miséria real  -  e simbólica (tendo à nossa disposição, quase instantaneamente, todas as gavetinhas do saber  -  mas que não sabemos o que fazer com elas, ou seja, desaprendemos o pensar e vamos deixando de saber ler); preconizando mesmo o Ensaísta que «todo o Estado e todo o país que se prezem deviam aspirar a este estado de sítio, dinâmico e regenerador: contra algumas teorias, não são as guerras que regeneram, é a desobediência civil. Deviam estimular os seus cidadãos a compreender e aceitar a ideia subjacente ao apelo e ao desafio um dia lançado por uma escritora de língua alemã, Christa Wolf: «imagina que havia uma guerra e ninguém lá ía!»... É disso que estamos precisados. De guerras a que ninguém vá, de eleições em que ninguém vote, de Bruxelas a que ninguém ligue, de corrupção que ninguém alimente, de escolas (afectadas pelo raquitismo da imaginação) que ninguém frequente, de programas políticos (coisa rara hoje em dia) em que ninguém aposte, de publicidade (enganadora) em que ninguém acredite, de iniciativas demagógicas a que todos voltem costas. É a única maneira de sair da crise, esta máquina que mantém vivo por mais algum tempo o morto-vivo, o doente terminal que é esta civilização».
Por sua vez, John Keane (in “A Democracia e os Media”) queixava-se de que os especialistas em filosofia-politica discutem em termos abstractos o significado de conceitos como justiça, liberdade, comunidade e democracia, convencidos de que os media ou são irrelevantes para as suas inquietações, ineficazes e trivializantes, ou se destinam apenas a ser fruídos e debatidos fora das horas de serviço. Os sociólogos e especialistas em comunicação social analisam as reacções das audiências, a criação de estilos, os efeitos ideológicos dos media privados e o impacto cultural das novas tecnologias de informação. Os intelectuais excêntricos prevêem o desaparecimento do gosto pela leitura e o controle da vida contemporânea pelos charlatões da comunicação social que vendem cultura em pastilhas e de digestão fácil. Entretanto, os jornalistas entregam notícias aos editores, e os produtores negoceiam com editores nomeados para o efeito. Os “disc-jockeys” despejam música. Os políticos concentram-se nas quotas dos programas, nas questões de propriedade de vários tipos de media e no controle de transmissão por cabo e por satélite. No entanto, quase ninguém levanta questões elementares acerca da relação entre as instituições, os ideais democráticos e os media contemporâneos. Apesar do centralismo crescente dos sistemas de comunicação nas democracias ocidentais  -  o facto de eles substituírem em parte as igrejas, e os partidos políticos e os sindicatos na formação e na representação de opiniões  -  , as questões ligadas ao significado de liberdade e à igualdade de comunicação não conseguem quebrar o gelo. Parecem ridículas e antiquadas.
Estas denúncias levam-nos a lembrar as sátiras de Eça de Queirós à sociedade do seu tempo, face ás mazelas sociais que igualmente revoltavam Herculano, Junqueiro, Antero ou Oliveira Martins  -  que clamavam por uma aculturação social (criando uma elite autêntica). Não é impunemente que Nelson Mandela nos lembrou que a melhor arma para regenerar o Homem é a Educação e a Cultura. Ora, referindo precisamente o papel da Cultura e da Educação na sublimação do espírito do Homem, encontramos Pedro Santos Maia (in Revista “Vértice”) a assinalar o seguinte: «Sem Cultura e sem Arte há um viver empobrecido, um achatamento do mundo, uma perigosa deriva para a grande noite em que todos os gatos são pardos, da qual, sabemos é difícil desprender e remover o olhar que tudo achata e neutraliza. Ora “não é o mundo que é chato; o que acontece é que há olhares que irremediavelmente o achatam”  -  diz-nos Barata Moura. Com um misto de mágoa e pesar, ressentimento e impotência, reconhecemos nesse olhar o de muitos dos nossos alunos. Quando, com toda a espontaneidade deste mundo, uma aluna nos interpelava recentemente “se posso ver, porque hei-de ler?”, estava, e com muita probabilidade, sem o saber, a achatar irremediavelmente o mundo. E neste processo de achatamento está inconscientemente a achatar-se a si próprio, quer dizer, a retirar complexidade e subtileza, a anular vitalidade, a diminuir qualidade ao próprio viver, a ser objecto de uma formatação homogeneizadora de uma sociedade supostamente democrática e transparente.»
Como que peugada do que agora transcrevemos, encontramos um breve comentário de Dietrich Schwanitz (in “Cultura”); diz-nos ele: «aqueles de entre nós cujo tempo de escola foi marcado por experiências semelhantes, muitas vezes apenas descobrem a riqueza da nossa Cultura muito mais tarde, e então esfregam os olhos. Como é possível não lhes ter ocorrido mais cedo que apenas o estudo da História torna compreensível a sociedade em que nos encontramos inseridos e, qual mentol mental, desperta o sentido para a sua suma improbalidade? Que a grande Literatura não é uma árida matéria de cultura geral, mas uma forma de magia que nos permite participarmos em experiências e observá-las ao mesmo tempo? Quem nunca viveu a experiência de como um pensamento que antigamente nada lhes dizia de repente se ilumina como uma estrela em explosão?» Afinal, como nos diz (in “A Sociedade da Informação”) Maria da Conceição P. Pinto, «o Homem está feito para saber».

José Alexandre Laboreiro – Fev 2014


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