Viagem andarilha em redor da Cultura do Espírito
«Também o pensamento tem um tempo para lavrar a terra e um tempo para
fazer a colheita.»
Ludwig Wittgenstein -
filósofo judeu austríaco - primeira metade do séc. XX
(in “Tractatus” -
1925)
O progresso poderá ser entendido de variadas maneiras.
Durante a Idade Média cristã, o progresso revestia o aperfeiçoamento espiritual
do Homem, aperfeiçoamento que implicava o sacrifício, a ascese do corpo e o
desprendimento material, a humildade, a paciência, a caridade, a abnegação, a
submissão, a modéstia - consideradas qualidades próprias à perfeição
cristã (e mesmo à crença budista): deparando nós em Buda e S. Francisco de Assis,
exemplos típicos deste ideal.
Porém, também podemos entender como progresso, a libertação
do Homem em relação à Natureza - havendo, contudo, historiadores do séc. XIX a
verem na História a luta da liberdade contra a fatalidade (aparecendo mesmo, nos
finais do séc. XVIII, Condorcet a expor (in
“Quadro dos Progressos do Espírito Humano”), como qualidades positivas no ser
humano, a dissipação, a soberba, a ostentação, a obesidade).
Efectivamente, a relação do Homem com a Natureza
modifica-se: esta é forçada a uma defensiva
- tendo mesmo de defender-se face
a um consumo exacerbado e contra a evasão da indústria. Assim, o progresso já
não é aperfeiçoamento individual, mas sim sinónimo de expansão das massas (como
deduzimos do livro “A Rebelião das Massas”
- de Ortega e Gasset).
O próprio conceito de Economia alterou-se: significava,
antes, conseguir um objecto útil com o menor custo (economizar tinha conotação
de poupar), mas hoje o intuito da Economia é produzir a maior quantidade de
moeda possível (a Economia identifica-se com investimento); é que,
anteriormente, construía-se uma casa com as comodidades necessárias para nela
habitar a Família; hoje, é para vender, isto é, para a pôr a circular no
mercado financeiro. Em suma, anteriormente, pensava-se no valor útil, hoje
age-se em função do valor de troca
- aparecendo um novo tipo de
“ascetismo”: o do capitalista que se priva de comodidades para aumentar o seu
capital circulante.
António José Saraiva (in
“O que é a Cultura”) especifica que as circunstâncias históricas são, elas, uma
consequência da própria condição humana, quer dizer da própria cultura e das
condições em que ela se desenvolve. E, neste cômputo, é pertinente a alusão de
João Barrento (in “O Mundo está cheio
de deuses”) ao desvario cultural em que estamos mergulhados: formando-nos e
divertindo-nos nos joguinhos de uma “play station” à escala planetária que
algum cérebro japonês ou americano concebeu à medida das novas formas de
imaginação virtual e da nossa miséria real
- e simbólica (tendo à nossa
disposição, quase instantaneamente, todas as gavetinhas do saber - mas
que não sabemos o que fazer com elas, ou seja, desaprendemos o pensar e vamos
deixando de saber ler); preconizando mesmo o Ensaísta que «todo o Estado e todo
o país que se prezem deviam aspirar a este estado de sítio, dinâmico e
regenerador: contra algumas teorias, não são as guerras que regeneram, é a
desobediência civil. Deviam estimular os seus cidadãos a compreender e aceitar
a ideia subjacente ao apelo e ao desafio um dia lançado por uma escritora de
língua alemã, Christa Wolf: «imagina que havia uma guerra e ninguém lá ía!»...
É disso que estamos precisados. De guerras a que ninguém vá, de eleições em que
ninguém vote, de Bruxelas a que ninguém ligue, de corrupção que ninguém
alimente, de escolas (afectadas pelo raquitismo da imaginação) que ninguém
frequente, de programas políticos (coisa rara hoje em dia) em que ninguém
aposte, de publicidade (enganadora) em que ninguém acredite, de iniciativas
demagógicas a que todos voltem costas. É a única maneira de sair da crise, esta
máquina que mantém vivo por mais algum tempo o morto-vivo, o doente terminal
que é esta civilização».
Por sua vez, John Keane (in
“A Democracia e os Media”) queixava-se de que os especialistas em filosofia-politica
discutem em termos abstractos o significado de conceitos como justiça,
liberdade, comunidade e democracia, convencidos de que os media ou são
irrelevantes para as suas inquietações, ineficazes e trivializantes, ou se
destinam apenas a ser fruídos e debatidos fora das horas de serviço. Os
sociólogos e especialistas em comunicação social analisam as reacções das
audiências, a criação de estilos, os efeitos ideológicos dos media privados e o
impacto cultural das novas tecnologias de informação. Os intelectuais
excêntricos prevêem o desaparecimento do gosto pela leitura e o controle da
vida contemporânea pelos charlatões da comunicação social que vendem cultura em
pastilhas e de digestão fácil. Entretanto, os jornalistas entregam notícias aos
editores, e os produtores negoceiam com editores nomeados para o efeito. Os
“disc-jockeys” despejam música. Os políticos concentram-se nas quotas dos
programas, nas questões de propriedade de vários tipos de media e no controle
de transmissão por cabo e por satélite. No entanto, quase ninguém levanta
questões elementares acerca da relação entre as instituições, os ideais
democráticos e os media contemporâneos. Apesar do centralismo crescente dos
sistemas de comunicação nas democracias ocidentais - o
facto de eles substituírem em parte as igrejas, e os partidos políticos e os
sindicatos na formação e na representação de opiniões - , as
questões ligadas ao significado de liberdade e à igualdade de comunicação não
conseguem quebrar o gelo. Parecem ridículas e antiquadas.
Estas denúncias levam-nos a lembrar as sátiras de Eça de
Queirós à sociedade do seu tempo, face ás mazelas sociais que igualmente
revoltavam Herculano, Junqueiro, Antero ou Oliveira Martins - que
clamavam por uma aculturação social (criando uma elite autêntica). Não é
impunemente que Nelson Mandela nos lembrou que a melhor arma para regenerar o
Homem é a Educação e a Cultura. Ora, referindo precisamente o papel da Cultura
e da Educação na sublimação do espírito do Homem, encontramos Pedro Santos Maia
(in Revista “Vértice”) a assinalar o
seguinte: «Sem Cultura e sem Arte há um viver empobrecido, um achatamento do
mundo, uma perigosa deriva para a grande noite em que todos os gatos são
pardos, da qual, sabemos é difícil desprender e remover o olhar que tudo achata
e neutraliza. Ora “não é o mundo que é chato; o que acontece é que há olhares
que irremediavelmente o achatam” - diz-nos Barata Moura. Com um misto de mágoa e
pesar, ressentimento e impotência, reconhecemos nesse olhar o de muitos dos
nossos alunos. Quando, com toda a espontaneidade deste mundo, uma aluna nos
interpelava recentemente “se posso ver, porque hei-de ler?”, estava, e com
muita probabilidade, sem o saber, a achatar irremediavelmente o mundo. E neste
processo de achatamento está inconscientemente a achatar-se a si próprio, quer
dizer, a retirar complexidade e subtileza, a anular vitalidade, a diminuir
qualidade ao próprio viver, a ser objecto de uma formatação homogeneizadora de
uma sociedade supostamente democrática e transparente.»
Como que peugada do que agora transcrevemos, encontramos um
breve comentário de Dietrich Schwanitz (in
“Cultura”); diz-nos ele: «aqueles de entre nós cujo tempo de escola foi marcado
por experiências semelhantes, muitas vezes apenas descobrem a riqueza da nossa
Cultura muito mais tarde, e então esfregam os olhos. Como é possível não lhes
ter ocorrido mais cedo que apenas o estudo da História torna compreensível a
sociedade em que nos encontramos inseridos e, qual mentol mental, desperta o
sentido para a sua suma improbalidade? Que a grande Literatura não é uma árida
matéria de cultura geral, mas uma forma de magia que nos permite participarmos
em experiências e observá-las ao mesmo tempo? Quem nunca viveu a experiência de
como um pensamento que antigamente nada lhes dizia de repente se ilumina como
uma estrela em explosão?» Afinal, como nos diz (in “A Sociedade da Informação”) Maria da Conceição P. Pinto, «o
Homem está feito para saber».
José Alexandre
Laboreiro – Fev 2014
Sem comentários:
Enviar um comentário