Os escritores e o salazarismo
«A violência preventiva era um esteio essencial da segurança e da
durabilidade do regime. Na desmobilização, no medo, na interiorização da
obediência, numa sociedade onde o peso social e cultural da ruralidade se
prolongou bem para além do seu peso económico, ou seja, na eficácia real dessa
violência preventiva assentou em larga medida o “saber durar” salazarista.»
Fernando Rosas
(in “Salazar e o poder”)
Joaquim
Namorado (in “Do Neo-Realismo. Amando
Fontes”) escreveria: «Só as forças
ascendentes amam a realidade e a verdade, exactamente porque são de conquista;
os que defendem um equilíbrio estabelecido, temendo as consequências do seu
conhecimento, refugiam-se nas mentiras nefelibatas ou no intelectualismo puro e
estéril: são os de “Trahison des clercs” e de certos “ismos” da arte
contemporânea». Eram estes os parâmetros do Neo-Realismo: aberto ao mundo,
deixando-se contagiar pela sociedade onde submerge (transportando para o texto
essas influências, através de denúncias sociais
- que inserem tramas literárias
tão ricas, que revestem autênticas obras-primas). E o Neo-Realismo, que
encontramos já com ampla visibilidade nos anos 30 (do século passado), haveria
ainda de dominar a tendência literária, social e política da Sociedade
Portuguesa de Escritores, aquando do seu encerramento compulsivo (1965) em
cumprimento das ordens salazaristas: em sequência da atribuição do Prémio
Literário da Sociedade Portuguesa de Escritores a Luandino Vieira (escritor
angolano preso no Tarrafal), mais propriamente ao seu livro «Luuanda» (ao que
consta, a melhor obra literária proposta a concurso). Segundo João Pedro
George, a atribuição do Prémio a Luandino Vieira, não seria apenas em função
dum visível valor estético: funcionaria como uma cilada ao regime -
despoletando um separar de águas interno (obrigando os escritores
situacionistas a definirem-se), levando a sociedade civil a opinar sobre o mais
que esperado encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores (conduzindo à
exposição pública dos verdadeiros fascistas, levando-os a tirarem a máscara);
além do mais, assistimos à consecução de um dos seus primordiais objectivos:
implicar a literatura nos movimentos de contestação política e ideológica do
salazarismo; propósitos já abertamente assumidos em 1962, quando assistimos ao
Manifesto de Apoio às Lutas Estudantis de Lisboa e Coimbra, e assinado por
escritores como Álvaro Salema, Alves Redol, António Ramos Rosa, Aquilino
Ribeiro, Augusto Abelaira, Fernando Namora, Francisco de Sousa Tavares, João
Gaspar Simões, Joaquim Namorado, José Cardoso Pires, José Cutileiro, Carlos de
Oliveira, José Gomes Ferreira, José Régio, José Saramago, Luís Francisco
Rebelo, Luís de Sttau-Monteiro, Mário Sacramento, Mário Soares, Raúl Rego,
Sofia de Mello Breynner, Urbano Tavares Rodrigues. Porém, o encerramento da
Sede da Sociedade Portuguesa de Escritores constituiria um abalo nas
consciências adormecidas em resultado do enfraquecimento da Oposição
(fortemente atingida com o desfecho da Revolta de Beja, a frustração do assalto
ao Santa Maria, com o assassinato do General Humberto Delgado, o envio
compulsivo de jovens para a guerra colonial, a forte repressão às actividades
clandestinas do PCP).
E
a cilada Neo-Realista preparada ao regime redundaria, não só no fim da
ambiguidade no convívio entre os escritores afectos e opositores ao regime -
anote-se na posição do salazarista Joaquim Paço d’Arcos que, para além
de se demitir do cargo que tinha na Sociedade de Escritores, diria: «Quando cem mil famílias portuguesas tinham
filhos em África a combater ... a Sociedade de Escritores não podia premiar a
obra de um condenado por actos de terrorismo em Angola»: obrigaria mesmo o
governo salazarista a pronunciar-se -
vejamos César Moreira Baptista, Secretário de Estado da Informação, a proferir «Alguns ... tentaram, clara ou
disfarçadamente, atingir diferentes e até criminosos objectivos ... não sendo
novidade para ninguém que certos prémios só eram concedidos aos que serviam
fins que nada tinham a ver com a Arte e a Literatura». A provocação
Neo-Realista despoletaria, dizíamos nós, ainda
- a par das palavras de
alheamento aos factos de Azeredo Perdigão (a “Gulbenkian” financiaria o Prémio
atribuído a Luandino Vieira) - posições
de nítido repúdio por parte de personalidades, apesar de conservadoras, face ao
encerramento da Sociedade de Escritores: David Mourão-Ferreira demitiu-se da
RTP (onde era responsável pelos programas literários) ao recusar a incumbência
de ir realizar um programa cultural favorável ao Governo; e Maria de Lurdes
Belchior apresentaria a demissão de Adida Cultural da Embaixada Portuguesa no
Brasil, como forma de protesto pela proibição governamental portuguesa, de os
Professores Orlando Vitorino e Lindley-Cintra irem ao Rio de Janeiro participar
num congresso sobre História. É que tanto Orlando Vitorino, como Lindley-Cintra
haviam assinado, juntamente com outros duzentos intelectuais, um documento de
protesto ao Ministro da Educação pelo encerramento da Sociedade Portuguesa de
Escritores.
Mas,
no âmbito internacional, o encerramento, pelo Governo, da Sociedade de
Escritores teria forte impacto - mercê do facto insólito, por anticultural, da
parte do regime – mercê da revolta dos intelectuais portugueses exilados. E,
mercê da descoberta recente (nos Arquivos da PIDE) de inúmeros telegramas
enviados por intelectuais estrangeiros, manifestos, panfletos que circulavam
além-fronteiras, artigos de protesto (em jornais portugueses no estrangeiro,
como o “Diário de Notícias” – de New Bedford; o “Portugal Democrático” - de S.
Paulo; o “Imigrante Democrático” - de Paris); e até por uma carta enviada do
Brasil por Jorge de Sena a Vergílio Ferreira
- se deduz a onda de protesto na
intelectualidade internacional face a esta Associação de Cultura, vítima do desejo
de controle das consciências por parte do regime de Salazar.
É
que os escritores, na sua forte maioria, livres no pensamento (e, como tal, não
tolerando peias nas consciências), sentiam o peso da censura, a ameaça da
prisão, o espectro dos tribunais plenários
- do controle da palavra (a
absurda antítese do acto criativo). Daí, aquando (já em 1973 -
finais do Estado Novo) surgir a Associação Portuguesa de Escritores
(Marcelo Caetano fazia questão de não admitir o ressurgimento da anterior
designação), no acto de posse da Direcção da ressurgida Associação de Cultura,
Sofia de Mello Breynner referir, no seu discurso, que «em todos os momentos da sua carreira a Associação Portuguesa de
Escritores, como a Sociedade Portuguesa de Escritores, exista para a defesa da
liberdade de consciência e para a defesa da responsabilidade de escrever».
Afinal, como constata o Poema de Manuel Alegre, “não há machado que corte a raiz ao pensamento”.
José Alexandre
Laboreiro
Sem comentários:
Enviar um comentário