domingo, 22 de setembro de 2013

COLABORAÇÃO DR. LABOREIRO

Os escritores e o salazarismo

«A violência preventiva era um esteio essencial da segurança e da durabilidade do regime. Na desmobilização, no medo, na interiorização da obediência, numa sociedade onde o peso social e cultural da ruralidade se prolongou bem para além do seu peso económico, ou seja, na eficácia real dessa violência preventiva assentou em larga medida o “saber durar” salazarista.»

Fernando Rosas
(in “Salazar e o poder”)

            Joaquim Namorado (in “Do Neo-Realismo. Amando Fontes”) escreveria: «Só as forças ascendentes amam a realidade e a verdade, exactamente porque são de conquista; os que defendem um equilíbrio estabelecido, temendo as consequências do seu conhecimento, refugiam-se nas mentiras nefelibatas ou no intelectualismo puro e estéril: são os de “Trahison des clercs” e de certos “ismos” da arte contemporânea». Eram estes os parâmetros do Neo-Realismo: aberto ao mundo, deixando-se contagiar pela sociedade onde submerge (transportando para o texto essas influências, através de denúncias sociais  -  que inserem tramas literárias tão ricas, que revestem autênticas obras-primas). E o Neo-Realismo, que encontramos já com ampla visibilidade nos anos 30 (do século passado), haveria ainda de dominar a tendência literária, social e política da Sociedade Portuguesa de Escritores, aquando do seu encerramento compulsivo (1965) em cumprimento das ordens salazaristas: em sequência da atribuição do Prémio Literário da Sociedade Portuguesa de Escritores a Luandino Vieira (escritor angolano preso no Tarrafal), mais propriamente ao seu livro «Luuanda» (ao que consta, a melhor obra literária proposta a concurso). Segundo João Pedro George, a atribuição do Prémio a Luandino Vieira, não seria apenas em função dum visível valor estético: funcionaria como uma cilada ao regime  -  despoletando um separar de águas interno (obrigando os escritores situacionistas a definirem-se), levando a sociedade civil a opinar sobre o mais que esperado encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores (conduzindo à exposição pública dos verdadeiros fascistas, levando-os a tirarem a máscara); além do mais, assistimos à consecução de um dos seus primordiais objectivos: implicar a literatura nos movimentos de contestação política e ideológica do salazarismo; propósitos já abertamente assumidos em 1962, quando assistimos ao Manifesto de Apoio às Lutas Estudantis de Lisboa e Coimbra, e assinado por escritores como Álvaro Salema, Alves Redol, António Ramos Rosa, Aquilino Ribeiro, Augusto Abelaira, Fernando Namora, Francisco de Sousa Tavares, João Gaspar Simões, Joaquim Namorado, José Cardoso Pires, José Cutileiro, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, José Régio, José Saramago, Luís Francisco Rebelo, Luís de Sttau-Monteiro, Mário Sacramento, Mário Soares, Raúl Rego, Sofia de Mello Breynner, Urbano Tavares Rodrigues. Porém, o encerramento da Sede da Sociedade Portuguesa de Escritores constituiria um abalo nas consciências adormecidas em resultado do enfraquecimento da Oposição (fortemente atingida com o desfecho da Revolta de Beja, a frustração do assalto ao Santa Maria, com o assassinato do General Humberto Delgado, o envio compulsivo de jovens para a guerra colonial, a forte repressão às actividades clandestinas do PCP).
            E a cilada Neo-Realista preparada ao regime redundaria, não só no fim da ambiguidade no convívio entre os escritores afectos e opositores ao regime  -  anote-se na posição do salazarista Joaquim Paço d’Arcos que, para além de se demitir do cargo que tinha na Sociedade de Escritores, diria: «Quando cem mil famílias portuguesas tinham filhos em África a combater ... a Sociedade de Escritores não podia premiar a obra de um condenado por actos de terrorismo em Angola»: obrigaria mesmo o governo salazarista a pronunciar-se  - vejamos César Moreira Baptista, Secretário de Estado da Informação, a proferir «Alguns ... tentaram, clara ou disfarçadamente, atingir diferentes e até criminosos objectivos ... não sendo novidade para ninguém que certos prémios só eram concedidos aos que serviam fins que nada tinham a ver com a Arte e a Literatura». A provocação Neo-Realista despoletaria, dizíamos nós, ainda  -  a par das palavras de alheamento aos factos de Azeredo Perdigão (a “Gulbenkian” financiaria o Prémio atribuído a Luandino Vieira) -  posições de nítido repúdio por parte de personalidades, apesar de conservadoras, face ao encerramento da Sociedade de Escritores: David Mourão-Ferreira demitiu-se da RTP (onde era responsável pelos programas literários) ao recusar a incumbência de ir realizar um programa cultural favorável ao Governo; e Maria de Lurdes Belchior apresentaria a demissão de Adida Cultural da Embaixada Portuguesa no Brasil, como forma de protesto pela proibição governamental portuguesa, de os Professores Orlando Vitorino e Lindley-Cintra irem ao Rio de Janeiro participar num congresso sobre História. É que tanto Orlando Vitorino, como Lindley-Cintra haviam assinado, juntamente com outros duzentos intelectuais, um documento de protesto ao Ministro da Educação pelo encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores.
            Mas, no âmbito internacional, o encerramento, pelo Governo, da Sociedade de Escritores teria forte impacto  -  mercê do facto insólito, por anticultural, da parte do regime – mercê da revolta dos intelectuais portugueses exilados. E, mercê da descoberta recente (nos Arquivos da PIDE) de inúmeros telegramas enviados por intelectuais estrangeiros, manifestos, panfletos que circulavam além-fronteiras, artigos de protesto (em jornais portugueses no estrangeiro, como o “Diário de Notícias” – de New Bedford; o “Portugal Democrático” - de S. Paulo; o “Imigrante Democrático”  -  de Paris); e até por uma carta enviada do Brasil por Jorge de Sena a Vergílio Ferreira  -  se deduz a onda de protesto na intelectualidade internacional face a esta Associação de Cultura, vítima do desejo de controle das consciências por parte do regime de Salazar.
            É que os escritores, na sua forte maioria, livres no pensamento (e, como tal, não tolerando peias nas consciências), sentiam o peso da censura, a ameaça da prisão, o espectro dos tribunais plenários  -  do controle da palavra (a absurda antítese do acto criativo). Daí, aquando (já em 1973  -  finais do Estado Novo) surgir a Associação Portuguesa de Escritores (Marcelo Caetano fazia questão de não admitir o ressurgimento da anterior designação), no acto de posse da Direcção da ressurgida Associação de Cultura, Sofia de Mello Breynner referir, no seu discurso, que «em todos os momentos da sua carreira a Associação Portuguesa de Escritores, como a Sociedade Portuguesa de Escritores, exista para a defesa da liberdade de consciência e para a defesa da responsabilidade de escrever». Afinal, como constata o Poema de Manuel Alegre, “não há machado que corte a raiz ao pensamento”.

José Alexandre Laboreiro



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