« A PRAIA »
Quando se começa a falar sobre cinema nunca se sabe como a
conversa vai acabar. E isto porque o mundo do cinema é tão vasto que permite
todas as divagações. Desde logo porque engloba, praticamente, todas as outras
artes. A música, a literatura, o teatro, o bailado, por exemplo, estão
presentes nesta nova arte. E até a pintura e a escultura marcam alguns dos
filmes de que todos nos lembramos. Pinturas e esculturas fingidas,
naturalmente. Aquelas magníficas colunas e palácios que admirámos em filmes
como “Ben-Hur”, “Os Dez Mandamentos” e outros, eram feitos de esferovite. O
cinema é uma arte de fingir, de simulação, de sonhar. E até as actrizes e
actores não eram (não são) tão perfeitos e bonitos como nos são apresentados. A
celulite também faz estragos naquelas moças lindas que nos mostram como sendo
donas de peles perfeitas. O Rock Hudson, por exemplo, que sempre fez papéis de
galã másculo e “muito homem”, na realidade era homossexual. E morreu com sida.
Greta Garbo, um ícone à beleza da mulher, um mito que ainda vinha do tempo do
cinema mudo, era lésbica. Que ninguém, um dia, se estas palavras forem lidas,
entenda o que estou a dizer, como crítica ou má língua. Eu sou de opinião que
cada um deve libertar a sua sexualidade da forma que entender, desde que não
prejudique terceiros. E ponto final.
Por aqui se vê que, falando de cinema, se podem trazer à
baila outras questões.
Pois eu desculpo-me com o cinema para falar dum escritor. Um
escritor que escreveu muito para cinema, é verdade, mas que nunca fez do cinema
o seu ganha-pão. Era italiano, de seu nome Cesare Pavese.
Nasceu em 1908 e
suicidou-se em Turim, em 1950, quando tinha quarenta e dois anos. Durante a sua
curta vida não se entendeu com Mussolini, e ainda passou pelas cadeias do
fascismo italiano. Começou a escrever para cinema quando conheceu a actriz
norte-americana Constance Dowling, com a qual teve uma intensa relação
sentimental, sendo por essa altura que rabiscou dezenas de argumentos
cinematográficos, a maioria dos quais nunca chegaram a ser filmados. Ocupou
grande parte da sua vida literária a traduzir para italiano grandes autores de
língua inglesa, desde Herman Melville passando por John dos Passos e John
Steinbeck, entre outros. Chegou ainda a desempenhar as funções, durante alguns
anos, de editor principal da prestigiada editora italiana “Einaudi”. Não
obstante toda esta actividade, ainda teve tempo para escrever cerca de uma
dezena de romances e vários contos.
O filme com que quero fazer a ligação ao cinema deste
escritor tem o título de “A Praia”, e baseia-se num romance com o mesmo nome. A
adaptação ao cinema é do próprio Cesare Pavese. A realização do filme esteve a
cargo de Sean O’Flaherty, nome que não voltei a encontrar nas incessantes
buscas a que me dediquei depois de ter visto esta fita, daí que pense ser o
pseudónimo de outra pessoa. O filme, confesso, é um verdadeiro enigma, pese
embora a sua grande qualidade. Suponho que nunca chegou a ser exibido
comercialmente em
Portugal. Eu tive ocasião de vê-lo durante uma férias que
passei na Itália.
Os interpretes também não são conhecidos. E não voltei a encontrá-los em qualquer outro
filme.
« A PRAIA »
Título Original: “Spiaggia”
Produção: Italo-Americana
Realização: Sean O’Flaherty
Argumento: Cesare Pavese e Sean O’Flaherty
Elenco: Orson W. Calabrese, Amadeus Saraband, Eveline
Sambraz....
Não é uma praia de hoje em dia. Não é uma praia de
mil nudezas. Não é uma praia de biquinis exíguos e bronzes arrancados à força
de óleos mágicos. O que nos aparece no ecrã é a praia de um tempo em que os
homens ainda passeiam pela areal com fato completo e chapéu de palhinha, com a
corrente do relógio no bolso do colete, consultando as horas com frequência,
controlando o tempo que as suas crianças podem permanecer dentro de água. E
estas, contrariadas, lá saem do mar à primeira chamada, com os fatos de marujo
colados ao corpo. As senhoras, com vestidos leves e finos, é certo, mas até aos
pés, circulam pelas passadeiras de madeira, junto às barracas de pano listado
de azul e branco, rodando as sombrinhas coloridas.
Assim descrito, até se pode pensar que é um filme de verão.
Que é um filme de diversão. Que é um filme que apenas servirá para passar o
tempo. Mas não é! É um filme de inquietações à flor da pele. Mesmo que essa
pele esteja coberta, porque os costumes da época assim mandavam que fosse. Um
filme em que os sentimentos (e os sentidos)
são contraditórios e ambíguos.
Gostaria de discutir esta obra com alguém que soubesse
explicar o que ali se passa. Alguém que tivesse capacidades muito superiores às
minhas. Alguém que, tendo estudado Freud, estivesse disposto a aturar também as
minhas inquietações. Como sei que isso não é possível, consolo-me a pensar que
tudo aquilo é apenas cinema. É apenas a fingir.
2 comentários:
A propósito do romance "La Spiaggia" de Cesare Pavese, passado ao cinema por Sean O'Flaherty:
Clélia é interpretada por Eveline Sambraz, como é óbvio.
Orson W. Calabrese interpreta Doro e Amadeus Saraband é o professor, marido de Clélia. Acertei?
Uma mulher fascinante que põe dois amigos com "inquietações à flor da pele". Sem dúvida, um caso para acabar no consultório do Dr. Freud.
Caro Rufino, desconhecia esta realização do Sean O'Flaherty, com o referido elenco.
É sempre bom vir ler o Cine Clube Domingos Maria Peças.
Cumprimentos.
AC
Cesare Pavese conta-se entre os três escritores italianos que mais admiro.
Os outros dois são Alberto Moravia e Vasco Pratolini.
Tanto quanto sei, todos trabalharam como argumentistas de cinema, mas nunca tive oportunidade de ver qualquer filme com argumento de Cesare Pavese. Dos outros dois vi vários.
No entanto, tive oportunidade de ler o romance que deu origem ao filme aqui referido. E se o filme fizer justiça ao romance, é sem dúvida um caso para acabar no consultório do Dr. Freud, como diz o comentador AC.
Raramente, em cerca de cem páginas, se encontram tantas inquietudes e tantos conflitos íntimos.
cinéfilo
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