« Sai uma “bica”... ! »
«Em Creta, com o Minotauro,
// sem versos e sem vida, // sem
pátrias e sem espírito, // sem nada, sem
ninguém, // que não o dedo sujo, // hei-de de tomar em paz o meu café.»
Jorge de Sena
(in “Em Creta, com o Minotauro”)
Não
são conhecidas, com a certeza histórica, as circunstâncias em que foi
descoberta a planta do café - que permitiria a milagrosa infusão, que tanto
nos estimula o espírito na conversa de “Café”, como nos desanuvia a alma -
criando-nos predisposição à leitura de um livro num melhor ambiente de
fruição. Narra-nos a tradição, sim, que na Arábia, há muitos séculos, um pastor
notaria que as cabras, que apascentava, se revelavam agitadas, eufóricas
(cabriolando) - sempre que comiam umas
determinadas bagas de certo arbusto: era o cafezeiro.
Sendo
a relação entre os portugueses e o café um percurso de paixão e sedução, não
poderia ter começado doutra forma a história dessa relação: constatando-se que,
em 1727, Francisco de Mello Palheta (um militar luso-brasileiro) fora enviado à
Guiana francesa com duas missões - sendo uma delas restabelecer a fronteira
fixada pelo Tratado de Utreque, e a outra conseguir obter as sementes do café
(um verdadeiro segredo). Porém, Palheta terá seduzido a mulher do governador
(que, de início, se terá recusado a entregar os grãos); porém, esta rendida aos
encantos do militar, entregou-lhe uma planta de café, possibilitando aos
portugueses - passado pouco tempo -
darem início à plantação do café no Pará e Maranhão. Ora, a chegada do
café à corte portuguesa foi uma questão de breve lapso de tempo: e o que se
seguiu, foram séculos de enraizamento de um hábito de tomar café, frequentar os
“Cafés”, criando convívios de amizade e cultura em redor da fruição de uma
chávena de café - hábito a que não escaparam Bocage, Alexandre Herculano, Almeida Garrett,
Fernando Pessoa, Almada Negreiros: que nos deixaria espaços de referência como
o “Martinho da Arcada”, o “Nicola”, o Marrare”, o “Gelo”, ou a “Brasileira”;
entre outros - sendo alguns passíveis de obras de arte, como
a “Brasileira” de Pessoa - pintado pelo Almada, e o “Grupo do Leão”,
quadro de Columbano.
E,
sem dúvida, viveu-se em certos “Cafés” um ambiente de identidade com a
Cultura - mercê das tertúlias literárias, artísticas,
políticas que aí reuniam para convívios e debates sobre literatura, política,
pintura, música, jornalismo; lembrando-nos nós do “Nicola” (em Coimbra) onde
pontificavam José Régio, Gaspar Simões, Afonso Duarte, Branquinho da Fonseca,
Edmundo Bettencourt, Miguel Torga, Albano Nogueira, Paulo Quintela, Martins de
Carvalho, António Ramos Rosa, João José Cochefel, Políbio Gomes dos Santos,
Fernando Namora, Sílvio Lima, Carlos Oliveira, etc. (que frequentariam
igualmente o “Central” e o “Arcádia”). Em Coimbra, em momentos mais recentes,
encontramos o “Mandarim” como o local de convívio, de tertúlia cultural e de
conspiração cifrada, durante as movimentações estudantis democráticas (nos anos
60 do passado século): revolta estudantil que alastraria ao Porto (como o
comprova a vigilância cerrada do “Âncora de Ouro” pela PIDE, visto ser o “Café”
de eleição dos estudantes de esquerda); ou o apertado controle policial dos
estudantes das Belas-Artes (que procuravam o “Café” do Jardim de S. Lázaro -
Porto) - onde imensos estudantes foram detidos por
pensarem de forma diferente, e sonharem a Democracia através da Cultura.
Em
Évora, nos anos 50 o “Arcada” era local de Tertúlias em torno de Virgílio
Ferreira e do pintor Reis Pereira, ou do poeta António Gancho e do grafista
Espiga Pinto.
E
porque não falar das tertúlias dos jornalistas, noite dentro, nos “Cafés” do
Bairro Alto (zona dos jornais lisboetas), onde dialogavam, pensavam e
escreviam, “entrelinhas”, os artigos de opinião conspirativos à Ditadura?
É
certo que os Cafés se espalharam por cidades, vilas e aldeias de norte a sul do
País -
fazendo de Portugal uma comunidade de hábitos de café torrado. E, embora
algo esteja a mudar (com o aparecimento das máquinas de café de pastilhas e
cápsulas, o que - aliado ao forte individualismo social - vem
quebrando a institucionalização da tertúlia) o saudável hábito de frequência do
“Café”, continua a verificar-se, a par da cultura da frequência deste espaço
como hábito social, numa relação cultural entre o pensamento intelectual e a
ambiência do “Café” - como o encontramos na leitura pública de
poemas e excertos de livros de contos e romances no seio dos “Cafés”, ou no
ainda recente momento cultural no “Martinho da Arcada” (para além de concertos
de música erudita que ainda é hábito assistir em “Cafés”).
Não
pretendo, qual D. Quixote, a loucura de investir alucinantemente contra os
moinhos de vento; mas afinal, como dizia Miguel Torga , «Livre não sou, mas quero a
liberdade, // trago-a dentro de mim como um destino.»
E gostaria que regressasse o hábito das Tertúlias de “Café” -
lugares, como dissemos, onde
- convivendo - se
permutavam opiniões, ideias, conhecimentos, aprendizagens, projectos: no fundo,
se contribuía para “inventar o mundo”. E
tudo, em redor de uma mesa de cafés. A propósito: «Sai uma “bica” ...?»
José Alexandre
Laboreiro
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