Trajectórias pelo universo do “Zé
Povinho”
«O mundo da arte e o mundo da
política mantêm assim relações de grande ambivalência e volubilidade, sobredeterminadas
pelas oscilações da conjuntura político-ideológica e sobretudo pelas
prioridades e fixações ideológicas conjunturais da opinião pública e do governo».
Alexandre Melo
(in “O que é Arte”)
Há breves
meses, o Arquivo Municipal de Montemor-o-Novo teve a pertinente ideia de
oferecer ao público da Cidade, uma Exposição referente à arte interventora de Rafael Bordalo Pinheiro
- sobretudo no domínio da caricatura
- a qual se revelou a um grande
patriotismo (visando regenerar a sociedade, a economia, a política, a cultura
da sua Pátria), ombreando com a sinfonia “A Pátria” de Viana da Mota, com a
poesia de Antero e Guerra Junqueiro, ou com o Hino “A Portuguesa” - de
Alfredo Keil e Lopes de Mendonça (obras que
- num intuito de protesto,
impregnado de Estética, procuraram fazer acordar os corações adormecidos deste
“reino cadaveroso”: como o denominaria
António Sérgio).
A 19 de Junho
de 1875, em “A Lanterna Mágica”, Rafael Bordalo Pinheiro fez nascer a figura caricaturada do “Zé
Povinho” - que ele cultivaria sobretudo no “cartoon”;
mas que teria igual êxito na cerâmica: “vindo
ao mundo das artes já de barba na cara, homem maduro, já dobrado ao peso das
albardas que o carregam, ar atormentado de pagador de impostos, promessas,
bulas e outras alcavalas religiosas e profanas, já vestido com a paciência e a
disposição precisas para aturar os que o oprimem dizendo-o “soberano” e os que
nas dificuldades maiores o armam em “Salvador da Pátria”, até um dia ...”
(como descreve Joaquim Namorado, in
“Vértice”, o “Zé Povinho”).
O “cartoon” do
“Zé Povinho” despertaria algumas dissonâncias nas vozes, como são as opiniões
de Ramalho, Junqueiro, Guilherme de Azevedo ou João Chagas -
entre outros.
Ramalho, por
exemplo, lamenta: “Sempre que atribui
ideias a “Zé Povinho”, Bordalo cai na banalidade e na ênfase retórica
...” Vejamos, porém: quando folheamos
“As Farpas” (de Ramalho), “Os Gatos” (de Fialho), ou os romances de Eça, onde
emerge o processo da vida nacional da época, encontramos os pontos de vista de
uma elite burguesa esclarecida, ferida de ressentimento e descrença, a quem
essa realidade repugnava pela sua mediocridade, na medida em que era incapaz de
realizar a obra que colocasse Portugal ao lado dos países progressivos como a
Inglaterra, a Holanda ou a França. Para Ramalho, Eça ou Fialho, o povo não
conta: ignorante e ignorado, sem interferência efectiva na vida nacional, sem
cultura, reduzido a mero pagador de impostos
- merecendo apenas uma triste
piedade, uma humanitária atenção. Neles, não aparece a força política, a
capacidade de acção, o profundo bom senso, o espírito de sacrifício e de
independência populares, o sangue e nervos na luta em defesa da Pátria; ora, em
contrapartida, esse povo está na Obra de Bordalo Pinheiro, especialmente
incarnado no “Zé Povinho”: sacrificado, humilhado, ofendido, mas generoso,
paciente e digno, bondoso, são e forte, senhor de uma força de que começa a
suspeitar - suporta toda a espécie de albardas, dorme um
sono pesado de narcóticos, mas - a certa altura -
esboça o espreguiçamento de quem acorda, e atira com a albarda ao ar (e
com a albarda, atira ao ar todos os que a montam: aqueles que o exploram e
abusam da sua confiança e bondade). Rafael Bordalo Pinheiro exprime, na sua
arte, os sentimentos e a opinião da multidão. Aliás, João Chagas denunciaria
que as opiniões de seus críticos ficavam acanhadas face à imagem do “Zé
Povinho”. E mudando o País (na passagem para o século XX), nessa altura o “Zé
Povinho” revela-se outro: de barrete frígio enterrado até às orelhas (de
“chancela” republicana), com um perfil que se viria desenhado nas eloquentes
palavras de António José de Almeida, pronunciadas à beira da campa de Rafael
Bordalo Pinheiro (1905).
Ora, essa
figura (do “Zé Povinho”) que durante anos arremessou contra o mundo de tiranias
e preconceitos, granadas de sarcasmo e ridículo, que foi na cidadela da troça,
o soldado da gargalhada, que seria sempre a figura de guerreiro e patriota, que
sempre seguraria nos braços a Pátria ferida e ultrajada (amparando-a de
encontro ao peito) – essa figura do “Zé Povinho” não seria enterrada com o seu
génio criador: perduraria com Leal da Câmara (na I República), com o desenho
firme de Valença (nos primeiros anos da Ditadura), com João Abel Manta (nos
alvores do “Portugal de Abril”); e assim outros artistas inspirados na matriz
de Bordalo Pinheiro, multiplicaram no espelho do tempo a sua imagem, e
deram-lhe nas horas supremas da vida do nosso Povo, carácter e significação.
José Alexandre Laboreiro
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