segunda-feira, 6 de agosto de 2012

PÁGINA DE CULTURA ( A cargo do Dr Laboreiro)


Trajectórias pelo universo do “Zé Povinho”

«O mundo da arte e o mundo da política mantêm assim relações de grande ambivalência e volubilidade, sobredeterminadas pelas oscilações da conjuntura político-ideológica e sobretudo pelas prioridades e fixações ideológicas conjunturais da opinião pública e do governo».

Alexandre Melo
(in “O que é Arte”)

Há breves meses, o Arquivo Municipal de Montemor-o-Novo teve a pertinente ideia de oferecer ao público da Cidade, uma Exposição referente à  arte interventora de Rafael Bordalo  Pinheiro  - sobretudo no domínio da caricatura  -  a qual se revelou a um grande patriotismo (visando regenerar a sociedade, a economia, a política, a cultura da sua Pátria), ombreando com a sinfonia “A Pátria” de Viana da Mota, com a poesia de Antero e Guerra Junqueiro, ou com o Hino “A Portuguesa”  -  de Alfredo Keil e Lopes de Mendonça (obras que  -  num intuito de protesto, impregnado de Estética, procuraram fazer acordar os corações adormecidos deste “reino cadaveroso”: como o denominaria António Sérgio).
A 19 de Junho de 1875, em “A Lanterna Mágica”, Rafael Bordalo Pinheiro  fez nascer a figura caricaturada do “Zé Povinho”  -  que ele cultivaria sobretudo no “cartoon”; mas que teria igual êxito na cerâmica: “vindo ao mundo das artes já de barba na cara, homem maduro, já dobrado ao peso das albardas que o carregam, ar atormentado de pagador de impostos, promessas, bulas e outras alcavalas religiosas e profanas, já vestido com a paciência e a disposição precisas para aturar os que o oprimem dizendo-o “soberano” e os que nas dificuldades maiores o armam em “Salvador da Pátria”, até um dia ...” (como descreve Joaquim Namorado, in “Vértice”, o “Zé Povinho”).
O “cartoon” do “Zé Povinho” despertaria algumas dissonâncias nas vozes, como são as opiniões de Ramalho, Junqueiro, Guilherme de Azevedo ou João Chagas  -  entre outros.
Ramalho, por exemplo, lamenta: “Sempre que atribui ideias a “Zé Povinho”, Bordalo cai na banalidade e na ênfase retórica ...”  Vejamos, porém: quando folheamos “As Farpas” (de Ramalho), “Os Gatos” (de Fialho), ou os romances de Eça, onde emerge o processo da vida nacional da época, encontramos os pontos de vista de uma elite burguesa esclarecida, ferida de ressentimento e descrença, a quem essa realidade repugnava pela sua mediocridade, na medida em que era incapaz de realizar a obra que colocasse Portugal ao lado dos países progressivos como a Inglaterra, a Holanda ou a França. Para Ramalho, Eça ou Fialho, o povo não conta: ignorante e ignorado, sem interferência efectiva na vida nacional, sem cultura, reduzido a mero pagador de impostos  -  merecendo apenas uma triste piedade, uma humanitária atenção. Neles, não aparece a força política, a capacidade de acção, o profundo bom senso, o espírito de sacrifício e de independência populares, o sangue e nervos na luta em defesa da Pátria; ora, em contrapartida, esse povo está na Obra de Bordalo Pinheiro, especialmente incarnado no “Zé Povinho”: sacrificado, humilhado, ofendido, mas generoso, paciente e digno, bondoso, são e forte, senhor de uma força de que começa a suspeitar  -  suporta toda a espécie de albardas, dorme um sono pesado de narcóticos, mas  -  a certa altura  -  esboça o espreguiçamento de quem acorda, e atira com a albarda ao ar (e com a albarda, atira ao ar todos os que a montam: aqueles que o exploram e abusam da sua confiança e bondade). Rafael Bordalo Pinheiro exprime, na sua arte, os sentimentos e a opinião da multidão. Aliás, João Chagas denunciaria que as opiniões de seus críticos ficavam acanhadas face à imagem do “Zé Povinho”. E mudando o País (na passagem para o século XX), nessa altura o “Zé Povinho” revela-se outro: de barrete frígio enterrado até às orelhas (de “chancela” republicana), com um perfil que se viria desenhado nas eloquentes palavras de António José de Almeida, pronunciadas à beira da campa de Rafael Bordalo Pinheiro (1905).
Ora, essa figura (do “Zé Povinho”) que durante anos arremessou contra o mundo de tiranias e preconceitos, granadas de sarcasmo e ridículo, que foi na cidadela da troça, o soldado da gargalhada, que seria sempre a figura de guerreiro e patriota, que sempre seguraria nos braços a Pátria ferida e ultrajada (amparando-a de encontro ao peito) – essa figura do “Zé Povinho” não seria enterrada com o seu génio criador: perduraria com Leal da Câmara (na I República), com o desenho firme de Valença (nos primeiros anos da Ditadura), com João Abel Manta (nos alvores do “Portugal de Abril”); e assim outros artistas inspirados na matriz de Bordalo Pinheiro, multiplicaram no espelho do tempo a sua imagem, e deram-lhe nas horas supremas da vida do nosso Povo, carácter e significação.

José Alexandre Laboreiro        

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