A força do Discurso
«O objecto em que se inscreve o poder, desde toda a eternidade humana,
é a linguagem»
Todos os dias
fazemos discursos: em casa, no trabalho, em momentos sociais; sempre que
necessitamos comunicar, ou influenciar uma tomada de decisão, sempre que
pretendemos que alguma coisa se transforme, discursamos (em família, entre
amigos, com colegas, chefes, funcionários, autoridades -
enfim, com todos aqueles com quem nos relacionamos no âmbito da nossa
interação social). É certo que pronunciamos ou escrevemos intuitivamente, mas
não vivenciamos, quase nunca, a consciência de que esses “discursos” diários, que constituem exercícios de poder, são
construídos a partir das memórias que uma tradição cultural milenar gravou no
nosso ADN. Este poder está presente nos mecanismos mais subtis das relações
sociais. Roland Barthes detecta-os no Estado, nas classes, nos grupos, e
igualmente nas modas, opiniões correntes, espectáculos, jogos, desportos,
informações, relações familiares e privadas
- e até nos impulsos libertadores
que procuram contestar o poder. O poder é um exercício múltiplo e ubíquo: tudo
isto diria José Manuel Diogo, no Prefácio à obra “Discursos que mudaram o Mundo”.
Porém, o
discurso constitui apenas um instrumento; não o poder em si. O discurso é uma
ferramenta utilizada para obter concordância relacionada com uma causa
transformadora. Um discurso exemplar não reveste mais que uma forma eficiente
de equacionar estrategicamente uma mensagem, em dado momento e para uma audiência
específica.
Maquiavel, no tratado político “O Príncipe”, estruturou (mediante o
conjunto de técnicas de conservação, manutenção e reprodução do poder) a
filosofia do governo centralizado: nacionalizando os meios de conquista,
manutenção e aumento do poder - insinuando que os fins justificam os meios.
No entanto, já no séc. XX,
António Gramsci (outro filósofo político italiano) faz uma nova leitura do “poder” político: o poder é representado
pelos partidos políticos e o seu objectivo
- que é o de conseguir consolidar
e perpectuar o poder - já não se pode afirmar solidamente no
terreno, apenas com recurso a discursos retóricos ou à propaganda. É necessário
que a acção política de alcance estratégico se afirme ancorada em ideias fortes
e mobilizadoras e num conjunto de valores transversalmente partilhados pela
sociedade.
E bastantes discursos, ao longo
da História da Humanidade (pelas coordenadas lexicais, princípios, ideias,
emoções, valores) arrebatariam as multidões que os escutavam ou liam - desde os “Discursos”
do Novo Testamento da Bíblia (que despoletaria o fim do esclavagismo no Império
Romano) até ao célebre discurso de afirmação de Obama (já no séc. XXI): “A democracia, a liberdade, a oportunidade e
a esperança que nunca morre” - seriam as pedras-angulares da sua
oratória - que termina condensada em três curtas
palavras: “Sim, nós conseguiremos”.
Mas, o caminho discursivo da
História do Homem é percorrido por uma imensidade de Discursos que viriam mudar
a “face humana” do planeta: lembrando-nos
nós dos discursos de Mao-Tse-Tung, ou de Arafat (na Ásia), de Mandela (em
África), de Mussolini, de Hitler, de De Gaulle (unindo os resistentes franceses
contra a ocupação da França por nazis alemães e fascistas italianos), Lenine,
Dolores Ibárruri (convocando os republicanos espanhóis a barrarem o caminho à
insurreição dos Franquistas: “No passaran
!” -
diria “La Passionária ”), de
Churchill (augurando “Sangue, suor e
lágrimas” aos democratas europeus na defesa da Liberdade, perante as
invasões nazis e fascistas), de Jean Monnet (na construção da União Europeia),
de Simone Veil (propondo a despenalização do aborto), de João Paulo II (em
Assis: durante uma celebração que reuniu mais de 200 representações
confessionais - orando pela Paz no Mundo) - todos eles na Europa; mas igualmente
discursos de Salvador Allende (no Chile
- Palácio de la Moneda ): onde,
decepcionado, denuncia a traição clara dos seus oficiais superiores -
perante si e perante o povo chileno
- ao encetarem um golpe militar
da direita), os discursos de John Kennedy
e o discurso de Martin Luther King (em luta pela igualdade racial e
social: “Digo-vos aqui e agora, meus
amigos: mesmo que tenhamos de enfrentar dificuldades, hoje e amanhã, eu tenho
um sonho. Um sonho profundamente enraizado no sonho americano”) -
todos eles na América.
Em Portugal, particularmente,
houve discursos marcantes no “volte face”
da nossa História - recordando-nos do célebre discurso de Afonso
Costa (Novembro de 1906, nas Cortes), onde o deputado republicano, denunciando
as avultadas verbas adiantadas ao Rei D. Carlos, escândalo num país em
bancarrota, pede a prisão e julgamento do Rei por roubo; marcante, igualmente,
o discurso de Salazar (1928), onde o Ditador traça as coordenadas do futuro quadro
administrativo, a ditadura política e o partido único -
preparando a Constituição de 1933; sendo igualmente de recordar os
discursos de Vasco Gonçalves e Mário Soares (já em regime Democrático ).
Há algum tempo, Eduardo Cintra
Torres escreveu (in “Público”) uma crónica onde lamentava a
ausência de Tribunos na Assembleia da República
- onde os oradores privilegiavam
uma oratória predominantemente pragmática (às vezes primando pelo insulto, ou
pela abordagem humilde do entrecho da intervenção; sem a elegância da
construção do léxico - pela força elegante da palavra, pelo
arrebatador percurso dialéctico das ideias
- que encontrávamos em António José de
Almeida, Alexandre Braga, Ramada Curto, Palma Carlos ou Magalhães Godinho). Os
discursos de Salazar, embora ocultassem fins anacrónicos face a uma Europa
democrática em construção, eram oratórias equilibradas, e de ideias e frases
tão sugestivas e tão bem construídas, que o próprio Cintra Torres confessava
(na crónica referida) que, ao lê-los, receava (apesar de ser anti-salazarista)
tombar nos princípios ideológicos do Ditador
- tão sugestivos eram os
discursos. E quão belos, arrebatadores, suculentos de ideias, de princípios, de
apelos, a um tempo de invectivos sociais pertinentes de igual modo, são os
Sermões dos igualmente nossos Padre António Vieira e Santo António:
extasiando-nos de beleza estéctica, beleza ética, denunciando caminhos ínvios
nas sociedades de então, com formas estéticas, a um tempo sublimes e assertivas - que
nos ensinam a gostar da Cultura, a saber optar, a recolher princípios éticos, a
saber pensar e criticar; em suma, ajudando-nos a reflectir, conduzidos por um
Humanismo.
José Alexandre
Laboreiro
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