quarta-feira, 27 de junho de 2012

PÁGINA CULTURAL (Colaboração Dr. José Alexandre Laboreiro)


A força do Discurso

«O objecto em que se inscreve o poder, desde toda a eternidade humana, é a linguagem»
                                                                                                                          Roland Barthes

Todos os dias fazemos discursos: em casa, no trabalho, em momentos sociais; sempre que necessitamos comunicar, ou influenciar uma tomada de decisão, sempre que pretendemos que alguma coisa se transforme, discursamos (em família, entre amigos, com colegas, chefes, funcionários, autoridades  -  enfim, com todos aqueles com quem nos relacionamos no âmbito da nossa interação social). É certo que pronunciamos ou escrevemos intuitivamente, mas não vivenciamos, quase nunca, a consciência de que esses “discursos” diários, que constituem exercícios de poder, são construídos a partir das memórias que uma tradição cultural milenar gravou no nosso ADN. Este poder está presente nos mecanismos mais subtis das relações sociais. Roland Barthes detecta-os no Estado, nas classes, nos grupos, e igualmente nas modas, opiniões correntes, espectáculos, jogos, desportos, informações, relações familiares e privadas  -  e até nos impulsos libertadores que procuram contestar o poder. O poder é um exercício múltiplo e ubíquo: tudo isto diria José Manuel Diogo, no Prefácio à obra “Discursos que mudaram o Mundo”.
Porém, o discurso constitui apenas um instrumento; não o poder em si. O discurso é uma ferramenta utilizada para obter concordância relacionada com uma causa transformadora. Um discurso exemplar não reveste mais que uma forma eficiente de equacionar estrategicamente uma mensagem, em dado momento e para uma audiência específica.
Maquiavel, no tratado político “O Príncipe”, estruturou (mediante o conjunto de técnicas de conservação, manutenção e reprodução do poder) a filosofia do governo centralizado: nacionalizando os meios de conquista, manutenção e aumento do poder  -  insinuando que os fins justificam os meios.
No entanto, já no séc. XX, António Gramsci (outro filósofo político italiano) faz uma nova leitura do “poder” político: o poder é representado pelos partidos políticos e o seu objectivo  -  que é o de conseguir consolidar e perpectuar o poder  -  já não se pode afirmar solidamente no terreno, apenas com recurso a discursos retóricos ou à propaganda. É necessário que a acção política de alcance estratégico se afirme ancorada em ideias fortes e mobilizadoras e num conjunto de valores transversalmente partilhados pela sociedade.
E bastantes discursos, ao longo da História da Humanidade (pelas coordenadas lexicais, princípios, ideias, emoções, valores) arrebatariam as multidões que os escutavam ou liam  -  desde os “Discursos” do Novo Testamento da Bíblia (que despoletaria o fim do esclavagismo no Império Romano) até ao célebre discurso de afirmação de Obama (já no séc. XXI): “A democracia, a liberdade, a oportunidade e a esperança que nunca morre”  -  seriam as pedras-angulares da sua oratória  -  que termina condensada em três curtas palavras: “Sim, nós conseguiremos”.
Mas, o caminho discursivo da História do Homem é percorrido por uma imensidade de Discursos que viriam mudar a “face humana” do planeta: lembrando-nos nós dos discursos de Mao-Tse-Tung, ou de Arafat (na Ásia), de Mandela (em África), de Mussolini, de Hitler, de De Gaulle (unindo os resistentes franceses contra a ocupação da França por nazis alemães e fascistas italianos), Lenine, Dolores Ibárruri (convocando os republicanos espanhóis a barrarem o caminho à insurreição dos Franquistas: “No passaran !”  -  diria “La Passionária”), de Churchill (augurando “Sangue, suor e lágrimas” aos democratas europeus na defesa da Liberdade, perante as invasões nazis e fascistas), de Jean Monnet (na construção da União Europeia), de Simone Veil (propondo a despenalização do aborto), de João Paulo II (em Assis: durante uma celebração que reuniu mais de 200 representações confessionais  -  orando pela Paz no Mundo) -  todos eles na Europa; mas igualmente discursos de Salvador Allende (no Chile  -  Palácio de la Moneda): onde, decepcionado, denuncia a traição clara dos seus oficiais superiores  -  perante si e perante o povo chileno  -  ao encetarem um golpe militar da direita), os discursos de John Kennedy  e o discurso de Martin Luther King (em luta pela igualdade racial e social: “Digo-vos aqui e agora, meus amigos: mesmo que tenhamos de enfrentar dificuldades, hoje e amanhã, eu tenho um sonho. Um sonho profundamente enraizado no sonho americano”)  -  todos eles na América.
Em Portugal, particularmente, houve discursos marcantes no “volte face” da nossa História  -  recordando-nos do célebre discurso de Afonso Costa (Novembro de 1906, nas Cortes), onde o deputado republicano, denunciando as avultadas verbas adiantadas ao Rei D. Carlos, escândalo num país em bancarrota, pede a prisão e julgamento do Rei por roubo; marcante, igualmente, o discurso de Salazar (1928), onde o Ditador traça as coordenadas do futuro quadro administrativo, a ditadura política e o partido único  -  preparando a Constituição de 1933; sendo igualmente de recordar os discursos de Vasco Gonçalves e Mário Soares (já em regime Democrático).
Há algum tempo, Eduardo Cintra Torres escreveu (inPúblico”) uma crónica onde lamentava a ausência de Tribunos na Assembleia da República  -  onde os oradores privilegiavam uma oratória predominantemente pragmática (às vezes primando pelo insulto, ou pela abordagem humilde do entrecho da intervenção; sem a elegância da construção do léxico  -  pela força elegante da palavra, pelo arrebatador percurso dialéctico das ideias  -  que encontrávamos em António José de Almeida, Alexandre Braga, Ramada Curto, Palma Carlos ou Magalhães Godinho). Os discursos de Salazar, embora ocultassem fins anacrónicos face a uma Europa democrática em construção, eram oratórias equilibradas, e de ideias e frases tão sugestivas e tão bem construídas, que o próprio Cintra Torres confessava (na crónica referida) que, ao lê-los, receava (apesar de ser anti-salazarista) tombar nos princípios ideológicos do Ditador  -  tão sugestivos eram os discursos. E quão belos, arrebatadores, suculentos de ideias, de princípios, de apelos, a um tempo de invectivos sociais pertinentes de igual modo, são os Sermões dos igualmente nossos Padre António Vieira e Santo António: extasiando-nos de beleza estéctica, beleza ética, denunciando caminhos ínvios nas sociedades de então, com formas estéticas, a um tempo sublimes e assertivas  -  que nos ensinam a gostar da Cultura, a saber optar, a recolher princípios éticos, a saber pensar e criticar; em suma, ajudando-nos a reflectir, conduzidos por um Humanismo.

José Alexandre Laboreiro

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