segunda-feira, 14 de novembro de 2011

MEMÓRIAS DO PASSADO – HOJE A “MEMÓRIA” É DO HELDER SALGADO

A última tourada no Castelo de Terena

O redondel era, como sempre na época, formado de carros de parelha e de varais na falta daqueles e situava-se à direita de quem entra no Castelo. E para que nada faltasse tinha curros. E tinha música, a banda do Alandroal.
Os músicos ocupavam um espaço da muralha, junto à torre de Menagem e o cimo das escadas que lhe dão acesso.
Peço-vos para idealizarem as dificuldades que o mestre da música deveria ter para dirigir a banda, porque eu por mais voltas que dei ao cérebro, não o consigo posicionar de frente para toda a banda.
Como introdução ao espectáculo, esta toca um passo doble.
Os atrasados e já pingados apressam-se com um passo de dança e uns sonantes olés.
Os já instalados nos carros voltam-se e cotovelo contra cotovelo, ombro contra ombro, ensaia passos de dança e entoam mais olés.
O espectáculo começara antes do seu início.
Não sei se eu dancei ou se também gritei olé, mas uma certeza vos digo, é que até hoje guardei na minha memória esta cena, para hoje, aqui a poder relatar.
E o gado?
Lá estavam as vacas do velho Godinho.
Alguém observou e reflectiu sobre o estado de instinto deste gado antes das touradas?
O seu olhar denunciador e interrogativo permitia ver a qualquer observador, que lhe dedicasse um minuto de atenção, o que lhe ia no seu interior.
Ali estavam encerradas à espera que judiassem com elas, elas que sempre generosamente ofereciam o seu trabalho na criação da riqueza dos donos.
Ali estavam à espera de um tourejo, de uma pedrada ou de uma picadela ou de algumas serem agarradas e assim vexadas na sua dignidade animal.
Uma ingratidão humana.
Finalmente a banda pára de tocar.
Tudo e todos acomodados para a festa.
Soa o som do cornetim e saia a primeira vaca.
O velho Godinho olhou de relanço para o animal, quase o ignorou. Ao invés o Seabra mirou e remirou a vaca. Era a mais nova das vacas. Quase uma bezerrinha. Acomodara-se junto ao que pensara ser uma saída e não se enganara. Um carro cujos varais foram metidos dentro de outro até à rabicha convidou-a a sair.

O som do cornetim ferira-lhe os ouvidos. Nunca tinha tido semelhante dor, nem em pequenina, quando a mãe devido à sua rabugice, se viu forçada a deitar-lhe leite para os ouvidos. Parecia atordoada com aquele ambiente. Duas fortes aguilhadas, que se não fossem as suas costelas, ter-lhe-iam furado os pulmões. Partiu a correr na esperança de encontrar saída. Viu pessoas a fugirem, a gesticularem numa gritaria que ela, vaca não conseguia perceber, nem porque estava ali encerrada sem conseguir fugir.
Ah se pudesse ninguém a agarraria, nem o dono.
E tinha medo.
Medo daquela multidão, daquela gritaria infernal, das corridas desnorteadas em que se atropelavam uns aos outros. As multidões sem norte são temíveis e ela tremia de medo.
Procurou um canto par se proteger.
Uma forte pedrada fê-la estremecer. Ouviu um sem fim de gargalhadas.
Um homem empertigado, altivo, que parecia não ter medo veio ao seu encontro
- Eh vaca brava. - gritou.
- Brava? - pensou o pobre animal.
 Nunca fizera mal a ninguém, sempre fora obediente mesmo quando aprendera a puxar a  charrua e o arado ou até a carreta, cuja canga de madeira sem encosto, tanta dor lhe
fazia no cachaço, até a ferira e agora era assim ofendida.
- Eh vaca brava - tornou o valentão.
Ali encerrada e a sofrer injúrias atrás de injúrias, o animal não teve outro remédio senão defender-se.
Deu dois passos para trás e um para a frente e um forte sopro. O valentão virou-se, fugiu e caiu. Mais gargalhadas.
O ritual de tourejo e pedradas repetiu-se durante algum tempo.
Um autêntico vexame para a jovem vaca.
De repente a algazarra parou e vozes de admiração soaram, como se surgisse uma surpresa ou outra distracção se levantasse.
A oferta.
O Zé Seabra numa caninha de foguete, que antes estourara e ainda cheirava a fumo, meteu uma nota de cem escudos e olhou desafiando o velho Godinho.
A vaca estranhou o silêncio e pensou desejando ir embora - Terá acabado a festa?
Duzentos escudos gritou o dono das vacas.
O animal, no seu instinto apercebera-se que estava a ser alvo de negócio e uma imensa tristeza, acrescida por reconhecer a voz do dono, apoderou-se dela.
Divertimento e negócio, a ganharem dinheiro com o seu sofrimento.
Um estranho forcado
Aproveitando a pequena pausa da multidão devido à discussão da oferta, um vulto de pequena estatura, dissimulando-se entre as maravilhas e as malvas, que ainda estavam erectas, qual felino rastejante aproximando-se o mais perto possível da presa, para depois de um salto, eficaz e certeiro, se apoderar dela, surge o padre Sardinheiro.
- Duzentos escudos, - tinha fixado a ideia no dinheiro e dispôs-se a apanhar a vaca.
A ceifa desse ano, só lhe rendera setecentos e cinquenta escudos e ali, com um pequeno esforço ganharia duzentos.
O vinho não o deixava pensar em mais nada senão no dinheiro.
O Chico Rijo, adivinhando, seguia-o de perto. Já conhecia o hábito do padre Sardinheiro, pois já o tinha socorrido algumas vezes e tinha a certeza, se ele apanhasse a vaca tinha o jantarinho garantido.
A grande surpresa foi a do velho Godinho, ao ver o padre Sardinheiro.
Tentou ainda que o Seabra superasse o lance, mas este, matreiro, fechou-se e não subiu o montante.
Se o Sardinheiro apanhasse a vaca era a terceira vez que o velho Godinho se enganava, pois tinha a certeza que só um homem encharcado em álcool é que faria frente a um animal com as qualidades daquela bezerra, que ele tão bem conhecia.
E mais uma vez perderia o duelo com o Seabra.
Um uivo, semelhante ao de um lobo esfomeado, soou no redondel, silenciou os presentes e amedrontou o animal, que olhando para o lado, sentiu cair-lhe na cabeça o peso de um homem.
Nunca ninguém lhe tinha feito isto.
No monte, na casa da herdade que ela tanto gostava todos a acarinhavam.
Em pequena até entrara na cozinha e quantas vezes o mais novo dos filhos do patrão, o lhe dera o resto das sopas. Tantas vezes lhe ouvira dizer que ela, a bezerrinha, era a menina dos seus olhos. E agora ali estava, sozinha, sem puder pedir ajuda a ninguém.
Sentia-se humilhada e sem saber o que fazer ao intruso que se lhe pendurara na cabeça.
Levantou-a com a intenção de sacudi-lo mas logo pensou - E se ao cair se magoa, se fica mal, se tem filhos.
Quase ao mesmo tempo sentia ser agarrada pela cauda e pensou um dar um coice, mas também se ficou pelas intenções, pelo mesmo motivo de não magoar.
Baixou a cabeça e o homem largando-a, partiu a correr na direcção da caninha, não a do Seabra, mas do velho Godinho que não teve outro remédio senão largar o dinheiro.
O animal olhou para o sítio donde tinha saído, na esperança de o ver aberto e estava. Ao entrar o Boa Tarde, dá-lhe com a cachamorra que a fez dar um pequeno berro, ouvido pela mãe, que lhe correspondeu.
Esta acarinhou a filha, lambendo-lhe as feridas e encostadas uma à outra, pareciam conformar-se com a sua sorte.

Contou-me há pouco, o tio Zé Godinho, desvendando o seu manancial de recordações, que as vacas choravam convulsivamente e que ele chorara também.

Desde essa longínqua data não mais houve touradas no Castelo de Terena.

Hélder Salgado
14 Novembro 2011

Nota do Editor: Helder permite-me felicitar-se por este excelente texto com que honraste o Al Tejo.
As tuas citações e relato dos acontecimentos estão soberbas, e no capitulo humano comoventes.
Na verdade dá para recordar mas acima de tudo para meditar.
Obrigado amigo.
Chico

4 comentários:

Anónimo disse...

O sr Helder é um bom contador de histórias. Mais parecia a história da ultima tourada em salvaterra! Mas está enganado quanto a esta ser a última tourada no castelo. Já o padre sardinheiro tinha falecido e o velho Godinho também, ainda havia touradas no castelo!!!

francisco tátá disse...

Não estará enganado caro anónimo?
Olhe que eu tenho mais uma crónica do Helder (a publicar em breve) em que na mesma são relatadas conversas muito recentes com o Ti Godinho a propósito de recentes publicações aqui no Al Tejo.

Anónimo disse...

Helder


Não posso e não quero,repito,não posso e não quero, deixar de dizer-te que o relato que acabo de ler sobre a Última Tourada no Castelo de Terena é uma peça memorialistica de elevada qualidade literária.Fiquei passado!

Gostei tanto que creio que posso também dizer-te que é um momento extremamente feliz do Al tejo e dos seus leitores.Com peças literárias assim,estamos todos a ir cada vez mais longe e mais alto.
Desta vez levados pelo teu talento.

Uma nota final para te dizer que é muito sensibilizadora e cheia de veia literária,a atenção e a maneira como te colocas sempre ao lado da bezerrinha,a fazer-me lembrar um conto do Miguel Torga em "OS Bichos".

Helder,

Já agora, anota aí que estamos perante um texto que eu não teria nenhuma duvida em selecionar para a tal Antologia de textos sobre "Nós e as Memórias do Concelho do Alandroal" que um dia poderá vir a ser publicada.

Tenhamos esperança porque merecimento teu e vontade nunca te faltou.

Assim o C.Manuel ajude.


Um abraço


ANBerbem

Anónimo disse...

O autor aqui o senhor Helder, tem a liberdade, de colocar na sua escrita o que pensa de qualquer assunto, para engrandecer o texto.
Este è sem dúvida um grande texto. Não importa ser a tourada do fim, a última ou a primeira. O que importa em qualquer relato è a mensagem que o autor nos quer comunicar.
Esta mensagem obriga-nos a pensar e reflectir.