segunda-feira, 24 de outubro de 2011

CRÓNICA DE OPINIÃO DA RÁDIO DIANA FM

Transcrição da crónica diária transmitida aos microfones da :http://www.dianafm.com/

Durante o tempo da outra senhora
Miguel Sampaio

Segunda, 24 Outubro 2011 11:46
Durante o tempo da outra senhora, os homens da ditadura passavam a ideia de que a política era a mãe de todos os males, que era por via dela que chegariam os comunistas, o fim da propriedade, o desabar da fé, a penúria, as trevas, que as pessoas passariam fome e que este cantinho à beira mar plantado, deixaria de ser um jardim para se transformar num deserto, árido e sem futuro.
Diziam que deixaríamos de ser grandes no mundo e que por via da nossa pequenez, correríamos até o risco de perder a independência de séculos.
O povo analfabeto e atemorizado acreditava, deixava ir os seus filhos para a guerra, contentava-se com os parcos rendimentos saídos da terra e desconfiava dos emigrantes que na volta de outras paragens, traziam novas de um mundo diferente, mais rico, com outros valores, de um mundo com os dias mais cheios, com as vidas mais preenchidas, com um futuro mais largo.
No tempo da outra senhora, tudo se resumia a Deus, Pária e Família, ao pequeno universo rural, do conforto dos vizinhos, da segurança do padre, da justiça do regedor.
Para além desse microcosmo habitava o medo, o desconhecido, e poucos ousavam ultrapassara fronteira, pois quem se atrevia a tal, pagava a duras penas a sua ousadia.
A pairar num Olimpo abastado, viviam uns quantos, partilhando a riqueza que escasseava aos demais, vivendo impunes do medo que instilavam, tratando os outros como um imenso rebanho, útil e dócil, sempre à sua disposição, contido no cercado, vigiado por cães de fila, não se desse o caso de tresmalhar.
Chegou Abril e nessa imensa primavera as coisas mudaram, abriram-se portas e janelas, o país respirou, conquistaram-se direitos, ganhou-se dignidade. A escola abriu os braços aos filhos de todos, as oportunidades surgiram, a vida floresceu; homens e mulheres por igual no direito de decidir, por igual nas universidades, por igual nos empregos. Os jovens sem o peso da guerra injusta que os levava a partir, o país rasgado de lés a lés pela vontade de mudar, pela vivencia democrática.
Tudo se conquistou, mas infelizmente o medo, atávico, permaneceu nas gentes, como uma ferida a corroer vontades, a tornar submissos os fortes, e por causa dele, como velhos aliados, voltaram os tempos da outra senhora.
Pouco a pouco se foram perdendo direitos, as escolas fechando, aos poucos voltou a esmola a ocupar o seu lugar infame, o rebanho voltou timidamente à cerca forçado pelos mesmos esbirros, mandados pelos mesmos donos e o povo entristeceu de novo e de novo retomou o cortejo informe, apático de gente temerosa que da vida apenas espera o fim, num canto, sem rasgo, sem coragem, sem ânsias para lutar.
Até para a semana.
Miguel Sampaio

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