Nota do Editor: Dar-se-ia por muito satisfeito e recompensado da tarefa de transcrever este admirável ensaio o responsável deste espaço só que o mesmo contribuísse para despertar os visitantes para a leitura de obras de Manuel da Fonseca, mas sabendo que a prática da leitura se vai tornando cada vez menos frequente, já se sentiria compensado só pela leitura do texto.
No centenário de Manuel da Fonseca
«UM HOMEM SÓ NÃO VALE NADA…UNAM-SE..»
(palavras de Armanda Carrasca in “Seara de Vento”)Manuel da Fonseca
Neste mês de Setembro, completam-se cem anos sobre o nascimento de Manuel da Fonseca – escritor e poeta alentejano nascido em Santiago do Cacem (mas cuja obra – novelas, romances, contos e poemas –é predominantemente imbuída das realidades sociais, económicas e culturais do povo do Alentejo). A sua preocupação, quer na temática contextual, quer no ritmo épico da sua estilística, quer na textura densa com que aborda a situação dos camponeses, quer ainda na forma como faz emergir os seus heróis e anti-heróis, leva-nos a deduzir que Manuel da Fonseca pretendia criar uma mensagem consciencializada sobre as condições infra-humanas da vida dos seus conterrâneos (enveredando a sua escrita no leito literário da corrente cultural do Neo-Realismo- como o integrariam os escritores e poetas Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Cardoso Pires, Carlos de Oliveira, Aquilino, Fernando Namora, Virgílio Ferreira, Baptista Bastos ou os pintores Abel Manta, José Bizarro – entre outros).
Mário Sacramento consideraria Manuel da Fonseca um autentico Bertold Brecht, embora ele se ignorasse como tal.
Efectivamente, pelas obras de Manuel da Fonseca, perpassam as nuances da humilhação e combate do camponês do Alentejo – no sei das greves, desempregos, fomes, repressão, pobreza, servidão, miséria, medo, prisões, denuncias, inicio das migrações, recurso ao contrabando, reuniões de reivindicações (na defesa de uma dignidade que fora afrontada).
A mensagem narrativa revela-se extremamente simples mas forte e veiculada por uma estrutura semântica linear: em que não há dicotomias de dimensão temporal (tudo nos surge como acontecido perante os nossos olhos – numa afirmaçãoem tempo presente, num verdadeiro ritmo teatral).
O seu talento de escritor assenta igualmente no profundo conhecimento (e a arte como o transmite), do seu “interland”: quer da paisagem (córregos, barrancos, ramos torcidos do montado, planos escuros, as extremas do sobreiral, estevas, cardos, a vasta faixa do horizonte), bem como é conhecedor das casas dos pobres (a porta de aldraba, o catre, a enxerga, as chamas inquietas do braseiro, os postigos, a arca, a tranca, o mocho, o poial das bilhas), Há nele a reflexão do mundo objectivo (personagens em movimento no espaço físico, económico, social e moral) com uma consciência com que os cria.
Pelos seus poemas(O Vagabundo, Sol do Mendigo, Maria Campaniça, Nocturno, Rosa Charneca, Canção do Maltês, Matam a Tuna, Saibam todos em Montemor – e muitos mais) perpassam figuras, sentimentos de dor, de luta pela dignidade e justiça, de caridade também, de amor, de resignação, o marasmo, o obscurantismo (enfim, o Alentejo profundo de antes da Revolução de 74) num “interland” que o Estado Novo temia abrir ao mundo da Cultura – mas poemas (como o “Saibam todos em Montemor”) impregnados de uma esperança na luta colectiva de uma união: poesia de combate que Baptista Bastos designou de “panfleto lírico”, vincada por um vigor, por uma força, por um ritmo de protesto – a que empresta igualmente, sem cedências de intenção, uma doçura lírica que humaniza os seus heróis.
De Manuel da Fonseca, dir-nos-ia Jorge de Sena que quer pela sua poesia, quer pela sua obra de ficção – contribuiu como poucos para impor e prestigiar o Neo-Realismo: pela sinceridade admirável do seu tom desataviado, com que desenvolveu notavelmente as virtualidades humanísticas da liberdade expressiva, criada por Álvaro de Campos e Alberto Caeiro.
Tendo publicado os seus primeiros trabalhos no jornal “O Diabo”, apareceu, em 1940, com o livro de poemas “Rosa dos Ventos” – grande revelação confirmada, um ano depois com “Planície”. Em 1942, surge “Aldeia Nova”, e depois “Cerromaior”, o “Fogo e as Cinzas” e “Seara de Vento”, “À Lareira”, “Crónicas Algarvias”, “Um Anjo no Trapézio”, “Tempo de Solidão”, “Poemas Completos”, e outros.
Tivemos a felicidade de dialogar directamente com Manuel da Fonseca (1987) – aquando de uma Conferência que ele proferiu na Biblioteca Municipal Almeida Faria (trazido até nós pela Câmara Municipal de Montemor-o-Novo. Falamos da poesia da Poetisa Alentejana Florbela Espanca e da sua ânsia de absoluto – no que comparamos a Antero. Eu absorvia-lhe as palavras de Mestre e de Ancião (um autentico Avô com consideração pelos mais jovens, a quem rasga os caminhos no uso da inteligência na procura da Cultura e da Verdade), ouvindo-o na sua candura e em agradecimento e respeito.
Abandono-nos há poucos anos: ficaram fixadas na memória as imagens do nosso diálogo. Continuo a venerá-lo e a admirá-lo – relendo-o.
José Alexandre Laboreiro
Transcrito do mensário Folha de Montemor (Setembro 2011) com a devida autorização do Autor

2 comentários:
O Manuel da Fonseca está inteiro neste artigo do Dr. José Alexandre Laboreiro. Texto conciso, mas elucidativo.
Também eu tive a fortuna de conhecer pessoalmente esse grande escritor.
Até me atrevo a lembrar que passou no Alandroal,por volta de 1993, uns dias de descanso. Estava a sair de uma doença que há muito o afligía e eu, juntamente com a Sr. Arnaldo Aboim, convidámo-lo para passar uns dias connosco.
Tivemos a sorte da presença dele em Terena, coincidir com a estadia de outro grande escritor neo-realista, Orlando Costa, que tinha uma casa nessa vila.
E assim se juntaram três amigos, companheiros de muitas solidariedades na Lisboa dos anos cinzentos da ditadura.
Passámos - passei eu - noites de encanto, ouvindo aqueles três homens falarem dos tempos de resistência ao regime, das prisões nos calabouços da pide, e da esperança que nunca os abandonou.
Suponho, pelo menos assim o creio, que nunca na chaminé da "Taberna do Migas" se ouviram conversas tão interessantes.
Correndo o risco de acharem este comentário um pouco maçador, vou trancrever uma passagem do conto "O Largo", da autoria do Manel e editado há dezenas de anos -
(...) « Os viajantes apeavam-se da diligência e contavam novidades. Era através do Largo que o povo comunicava com o mundo. Também, à falta de notícias, era aí que se inventava alguma coisa que parecesse verdade. (...) Assim, o Largo era o centro do mundo (...)»
Digam-me lá agora se esse largo não poderia ser o nosso largo das camionetas ?
Ali mesmo. Ao cimo da praça !
O meu agradecimento ao Dr. José Alexandre Laboreiro, pela oportunidade que deu a estas minhas recordações.
E ao blogue, naturalmente.
JR
Não será que quis dezir "Hinterland"?
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