terça-feira, 13 de setembro de 2011

COLABORAÇÃO DRª ANA PAULA FITAS

Nota do Editor: Não pode o responsável por este espaço deixar de se congratular por mais esta contribuição, que tal como  muitas outras, que com o seu saber, cultura e vivência permitem que o Al Tejo se mantenha vivo e contribuem para que se consiga atingir os fins que desde o princípio nos nortearam.
Obrigado Drª Ana Paula Fitas, contamos consigo.
Chico Manuel

OBS: PARA UMA MAIS FÁCIL LEITURA DO TEXTO  E POSTERIOR INTREPRETAÇÂO ACONSELHO A UTILIZAÇÃO DA IMPRESSORA, E COLOCÁ-LO EM SUPORTE DE PAPEL.
FICARÁ ASSIM COM UM VALIOSO DOCUMENTO, ONDE FICARÁ A SABER MUITO SOBRE O CONCELHO DO ALANDROAL- E NÃO SÓ

Nota da Autora: . Um texto que nasceu da comunicação feita no Forum do Alandroal no colóquio "Por Terras de Endovélico" em 2010 e que foi publicado, o final do ano na Revista da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia "Trabalhos de Antropologia e Etnologia" (vol. 50, ed. SPAE, Porto).

Paisagens Etno-Arqueológicas e Culturas Regionais
– do Endovélico a Mérida e aos Almendres

Ana Paula Fitas

Resumo: Este artigo procede ao estudo de caso de um espaço que denota a relevância do conceito de paisagens etno-arqueológicas, enquanto definição recorrente e complementar da conceptualização de etno-paisagens proposta pelo antropólogo Armindo dos Santos, com enfoque na leitura integrada da distribuição espacial do património arqueológico reconhecido institucionalmente e inédito numa região onde se manifesta a continuidade cultural e a mudança da função social do património etnológico. O território em análise situa-se no Alentejo, numa área que integra o local onde, há cerca de um século, José Leite de Vasconcelos situou o culto lusitano a Endovélico, o espaço de influência do Cromeleque dos Almendres e a região da Extremadura (Espanha) cuja etno-história reforça o fundamento para a denotação do que aqui se designa por cultura regional.

Palavras-chave: Etno-paisagens; Etno-Arqueologia; Etno-Antropologia.

O culto a Endovélico, divulgado e comprovado por José Leite de Vasconcelos a partir dos primeiros trabalhos de escavação do autor levados a cabo no lugar de S. Miguel da Mota (Terena, concelho de Alandroal) e relatados na sua obra “Religiões da Lusitânia” (1897-1913), ficou materialmente documentado no espólio resultante desta pesquisa que é hoje parte integrante da colecção fundacional do Museu Nacional de Arqueologia. Centro de atenções do trabalho arqueológico no Alentejo, quase um século depois da publicação do trabalho de Leite de Vasconcelos e de muitas campanhas de prospecção e escavação realizadas nas últimas décadas, a verdade é que o alegado templo a Endovélico continua por localizar e identificar no terreno, reduzindo-se a sua dimensão de culto autóctone, pré-romano, à documentação material inscrita no espólio romano.
A afirmação foi confirmada recentemente, em finais de Junho de 2010, durante o Congresso organizado pela Câmara Municipal de Alandroal sobre o tema: “Por Terras do Endovélico – Território/Identidade/Desenvolvimento”, pelos três arqueólogos que têm desenvolvido trabalho sistemático no concelho (Manuel Calado, responsável pela Carta Arqueológica do Concelho de Alandroal publicada em 1993 e a equipa liderada por Carlos Fabião e Amílcar Guerra da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, responsável pelas escavações no lugar de S. Miguel da Mota). O Congresso (em que participei como oradora com a comunicação “Etno-História, Património e Desenvolvimento – o caso do Endovélico”) decorreu no Fórum Cultural Transfronteiriço de Alandroal e foi ilustrado com uma exposição conjunta de parte do espólio que o Museu Nacional de Arqueologia disponibilizou para o efeito e de materiais recolhidos sbsequentemente no âmbito das campanhas arqueológicas que têm vindo a decorrer no terreno.
Apesar dos vestígios encontrados pelos arqueólogos testemunharem apenas uma ocupação romana do local, certo é que, das referências bibliográficas ao culto, devidamente identificadas do século XVI até à actualidade e confirmadas pelas inscrições latinas das lápides romanas recolhidas em S. Miguel da Mota (onde se referem expressões relativas “Endovellicus” que o caracterizam como “infernal” e lhe concedem capacidade de “resposta da divindade”), existe no plano da documentação escrita, a publicação de uma Conferência de António Bartolomeu Gromicho (1944) que, afirmando a origem cartaginesa do templo a Endovélico, refere que a sua construção se deveu a uma iniciativa atribuída “ao cartaginês Mahalabar” e que a sua dimensão estaria bem ilustrada no facto de ser esse o local de proveniência das colunas que integram o actual Claustro da Universidade de Évora (à data, Liceu Nacional de Évora). Sem pretender analisar ou discutir as afirmações de Bartolomeu Gromicho sobre a proveniência das referidas colunas, o facto é que a informação é interessante do ponto de vista etno-arqueológico e etno-literário . Quanto às referências relativas à origem cartaginesa do alegado templo é de ter em consideração que as mesmas se encontram publicadas no Livro IX da obra “Mitologia Universal – História y Explicación de las Ideas Religiosas y Teológicas” - sendo também de registar que a matéria-prima granítica destas colunas coincide com a de algum espólio encontrado no sítio de S. Miguel da Mota (designadamente, a figura de um javali esculpido em tamanho real), que, na região, se encontra no relevante afloramento granítico localizado na freguesia de Santiago Maior que marca o território local em termos toponímicos e ao nível do imaginário das suas populações.
O papel da freguesia de Santiago Maior é, neste contexto, crucial para a percepção do modo como, enquanto investigadora etno-antropológica, os meus trabalhos se cruzaram com a arqueologia da região e, consequentemente, com a problemática relativa ao culto a Endovélico .
O conhecimento exaustivo do concelho e a permanência no território em função do desenvolvimento dos trabalhos supra-referidos, tinham produzido já na sua primeira fase (1990-1995), um reflexo significativo no meu trabalho, pelas correlações emergentes, em termos etno-arqueológicos, das práticas culturais locais (que fui registando em artigos publicados em 1993, 1994, 1997, 1998 e 2003), em cujo contexto dei conhecimento, em 1992, ao arqueólogo Manuel Calado, da existência de 3 chistas da Idade do Bronze (uma das quais em suficiente estado de conservação para ter sido referida na versão da Carta Arqueológica do Concelho publicada em 1993 e em que, gentilmente, o arqueólogo registou o seu agradecimento à minha colaboração) situadas na freguesia de Santiago Maior. Localizadas em espaço que a população local conhecia por “cemitério”, as designadas “chistas” encontram-se nas proximidades do grande megalito conhecido por Pedra Alçada (homónimo do nome da herdade em que situa, a saber: Defesa da Pedra Alçada que, em 1972, foi referido com destaque pelo arqueólogo Pires Gonçalves que lhe atribui a dimensão de 10 m de altura por 6m de diâmetro) e cuja imagem escolhi para capa da publicação da minha tese de Mestrado pela sua imponência física e o papel desempenhado na vivência rural do espaço local da freguesia.
Um dos aspectos relevantes na minha investigação sobre “Ocupação Sexual dos Espaços e Redes de Comunicação Social em Aldeia da Venda” incidiu na análise do designado “Cântico à Ordem das Oliveiras” (também conhecido por “Festa da Santa Cruz”), cujas características peculiares me suscitaram o interesse pela pesquisa de outros testemunhos potencialmente anteriores e provavelmente coexistentes com a influência católica, denotáveis pela eventual presença de indicadores pré-cristãos, no território local/regional. Claramente presentes no ritual do “Cântico à Ordem das Oliveiras” (1993, 1995, 1997 e 1998) e evidenciáveis pela acumulação de arquétipos a que a sua análise se deixa reduzir (a saber: alto/baixo, dia/noite, ouro/prata-sol/lua, feminino/masculino), o Cântico à Ordem das Oliveiras despertou-me para a prospecção da presença de elementos na paisagem física e social, reprodutores da tipologia arquetípica em que assentava o seu ritual e foi assim que, nos itinerários do espaço cultural de uso da freguesia, assinalados na toponímia e nas referências espaciais protagonizadas pelas “Pedras”, os fui identificando enquanto procedia ao estudo da estrutura da propriedade fundiária na área envolvente da Aldeia da Venda que, para além da sua delimitação administrativa nos termos da propriedade privada, continuara a servir, até aos passados anos 70, de espaço de recurso para as populações em termos de estratégias de sobrevivência (recolecção de mel e frutos silvestre, bolota ou lenha) e de mobilidade (para a deslocação pedestre no interior da freguesia e para acesso aos seus espaços contíguos, a saber: freguesias de Terena, Capelins, Montejuntos e Alandroal-NªSrªda Conceição e concelhos de Redondo e Reguengos de Monsaraz) …
Cabe-me neste momento referir que, para além do meu estudo sobre a estrutura fundiária local me ter conduzido à compreensão do processo de divisão da propriedade de um espaço comum (as Herdades da Defesa da Pedra Alçada, da Defesa Velha, da Defesa, da Defesa da Bobadela e do Roncanito foram inicialmente um espaço uno, progressivamente dividido em processos de venda/aquisição e de herança, designadamente por aliança), o espaço da freguesia denotava, enquanto espaço de mobilidade e circulação da população, outros elementos pertinentes para a compreensão da sua lógica organizacional, confirmando que os processos culturais se mantêm no tempo para além das mudanças sociais de que a divisão da propriedade era, no caso, exemplo.
Deste modo, em termos de análise inspirada na teoria do centro e periferias, constatei que o megalito da Pedra Alçada (conhecida localmente por Pedra do Galo alegadamente por ter sido colocado sobre ela um catavento de ferro com a forma de um galo) ocupa o centro geográfico da freguesia a partir do qual é fácil optar por caminhos identificáveis por Pedras cuja função seria, no âmbito da cultura oral local, a de funcionarem como marcas espaciais de identificação das acessibilidades aos concelhos de Redondo (Pedra de St. Aleixo) e de Reguengos de Monsaraz (Pedra Alçada); entre elas, a designada Pedra do Cavalo permitiria o acesso intermédio à freguesia de Montoito onde os dois concelhos confluem enquanto, no extremo da freguesia de Santiago Maior que confina com a de Montejuntos na, agora deserta, Aldeia do Seixo (entre a Aldeia da Venda e a de Cabeça de Carneiro), o caminho era aberto até à aldeia de Outeiro onde se situa um dos grandes menhires do concelho de Reguengos de Monsaraz, designado Menhir do Outeiro.
Considerando as palavras de Armindo dos Santos (2004): “(…) Suscitando interrogações acerca das configurações espaciais, a paisagem não só chama directamente a atenção para o sociologicamente visível como também, por arrastamento lógico, para o aprofundamento do dissimulado e do obscuro da complexidade social. Por outras palavras, pensar a paisagem é como examinar atentamente um quadro pintado a fim de perceber a intenção do seu autor. (…)” (pg.48), estava assim reconstituída a paisagem humana reflectora da construção cultural do espaço social daquela micro-região, encravada entre grandes Herdades e delimitada a Norte, pelas freguesias de Terena-S.Pedro e Alandroal-Nª Srª da Conceição, a Oeste pelo concelho de Redondo, a Sul pelo de Reguengos de Monsaraz e a Leste pelo Rio Guadiana e as freguesias de Capelins-St.António, Montejuntos e Juromenha-Nª Srª do Loreto.
A paisagem claramente etno-arqueológica pelo papel crucial que as Pedras desempenhavam na orientação espacial cabe, sem reservas, na explicação sobre o interesse etnológico das paisagens apresentada por Armindo dos Santos (ibidem): ”(…) A paisagem sócio-espacial espelha um conjunto de elementos de morfologia dispostos no espaço segundo determinadas configurações. E como tal, é precisamente esta sociedade cristalizada no espaço que interessa ao etnólogo. (…) se os sistemas de apreciação da paisagem e as suas variações ao longo da história também têm significado para a antropologia, na medida em que revelam formas de ver, pensar e agir dos indivíduos, a leitura etnológica da paisagem importa tanto ou mais quanto ela é susceptível de revelar directamente modelos sociais concretos de organização humana. Esta perspectiva, em vez de ser evacuada para considerar exclusivamente o lado emocional do olhar, como se pretende com algumas das definições de paisagem, deve, ao contrário, incluir o exame etnográfico da paisagem. (…) Nestes termos (…) o que está realmente em causa é o seu interior social: o significado da composição e disposição material dos elementos espaciais (mais ou menos naturais ou sociais conforme o grau de intervenção humana), em consequência de um ordenamento derivado da estrutura social. Por outras palavras, (…) o propósito são as relações sociais profundas que essa disposição subentende. (…)” (pgs.35-36).
Neste contexto, ignorar a riqueza etnológica (arqueológica, histórica, religiosa e cultural) do espaço descrito seria não compreender a natureza do próprio património etnológico em que também se inscreve a problemática relativa ao culto a Endovélico que, enquanto “culto de incubação” (uma das evocações que o culto implicava referia-se à solicitação de respostas ao deus para a resolução de aflições e problemas, respostas essas que seriam recebidas através de sonhos) se prolonga no imaginário popular em manifestações diversas que são, todas elas, comuns à expressão da religiosidade popular… É o caso da atenção ao “oculto”, da crença em “feiticeiras” e da interpretação mágica que integra não apenas a sistémica “bênção à Lua” a que as mães continuam, preventivamente, a expor os bebés mas, também, a devoção a Nossa Senhora dos Prazeres cuja ermida situada na freguesia de Terena era e continua a ser local de romaria relevante na região (ao ponto do dia mais importante da festa desta freguesia ser a segunda-feira de Pascoela, escolhida como data do feriado municipal do concelho de Alandroal). Registe-se aliás que, da história da ermida consta a referência à sua fundação como local do culto a Endovélico após a sua transferência de S. Miguel da Mota, fundamento para a posterior e forte cristianização - reforçada por histórias de carácter nacionalista com evocação real da vitória dos portugueses contra os espanhóis (contudo, esta tentativa de substituição do culto primaveril, inspirador da fertilidade, dos Prazeres pelo da Boa-Nova -nome também dado à ermida e à sua padroeira- não se popularizou, continuando a ser a designação de “Prazeres” a mais utilizada para esta festa e este culto).
Por este conjunto de razões, entendemos que o território em análise, com particular destaque pelo carácter etno-arqueológico e etno-histórico que representam as freguesias de Santiago Maior e de Terena mas, também, o espaço que se prolonga até às margens do Rio Guadiana, pela sua peculiaridade sócio-antropológica e etnográfica., constitui uma etno-paisagem, já que, como escreveu Armindo dos Santos (2004): “(…) A alteração do espaço natural pode apresentar diversas intensidades e as paisagens daí derivadas terem características afastadas da natureza segundo diferentes graus de manipulação. No mundo rural, este tipo de manipulação conduz à constituição de paisagens intimamente ligadas às práticas agrícolas e, nesta medida, apresenta maior interacção entre o modo de vida humano e a natureza em comparação com o universo urbano. (…)” (pg.41).
O espaço que passaremos a designar por Etno-paisagem do Endovélico configura-se, numa perspectiva etno-arqueológica, por uma constelação de topónimos que, enquanto referências espaciais, associam e actualizam a percepção da função social do espaço local, construído culturalmente ao longo de gerações, desde a sua materialização megalítica espacialmente distribuída segundo uma lógica interna de uso e recurso do território, reflectora da simbologia em que assentava a vivência rural de uma população isolada em que coexistiam as práticas recolectoras, caçadoras, piscatórias, pastoris e agrícolas.
Da Pedra Alçada à Pedra Escorregadia e à Pedra da Mulher, da Pedra do Cavalo à Pedra do Malhadal do Negro, da Pedra de Aluá à Pedra de Santo Aleixo e ao complexo megalítico de Vale de Figueiras, a leitura integrada do espaço interior da freguesia de Santiago Maior, entre as aldeias de Marmelos e Casas Novas de Mares, torna inequívoca a sua classificação etno-arqueológica. Registe-se que, além de outros vestígios como a inscultura rupestre de duas figuras zoomórficas (um mocho/coruja e um pássaro) ou pedras com “covinhas”, são assinaláveis, no imaginário popular, as seguintes relações com as Pedras: a evocação de sonhos associada à Pedra de Santo Aleixo (cristianizada com a lenda dos “pézinhos da cabrinha de Nossa Senhora”), os rituais de fertilidade conhecidos no que se refere às Pedras Escorregadias (Belas, Perolivas, Vila do Bispo), a prática ritualística popular de celebração da Páscoa na Pedra de Aluá e ainda outras, de que destaco a da “Azinheira de Santo Aleixo” - cujo carácter etno-botânico é testemunho de práticas médicas populares femininas descritas e explicadas por mim (2003) e que, em 1963, Irisalva Moita assinalara etnograficamente, classificando-as sem explicação para a sua ocorrência como “sobrevivências pagãs”.
Neste contexto, a dissociação do conjunto de elementos apresentados com a questão de Endovélico seria seguramente polémica, dada a proximidade geográfica da freguesia de Santiago Maior da freguesia (Terena) onde se localizam o lugar de S. Miguel da Mota e a Igreja da Senhora dos Prazeres.
O culto lusitano a Endovélico que a ocupação romana testemunha no lugar de S. Miguel da Mota através de lápides gravadas em latim que prestam homenagem a uma divindade “infernal” que “responde” às evocações de que é objecto, permite associar à potencial característica oracular que, no texto de Carrasco (1864), é identificada com Apolo Délfico, uma outra característica que requer a nossa atenção, na medida em se inscreve em arquétipos simbólicos presentes numa dimensão territorial mais alargada. Falamos da evocação da figura mitológica de Proserpina que dá nome, já na outra margem do rio Guadiana, nas proximidades de Mérida (Espanha), a cerca de 100 kms do espaço em análise, a uma grande Barragem, a saber, a Barragem de Proserpina.
Proserpina (ou Cora) é a designação latina da deusa grega Perséfone (ou Coré), filha de Zeus (o pai dos deuses) e de Deméter (deusa da fecundidade da terra e da agricultura), que os antigos cultos mediterrânicos associavam a um duplo significado, reflector do seu protagonismo mitológico, a saber: a deusa, bela, feminina e jovem casara, com o consentimento do pai mas sem conhecimento da mãe, com o seu tio paterno, Hades, deus das profundezas da terra, que a levara para o seu reino; a mãe, desesperada, procurara-a incansavelmente, descurando a sua função e deixando que na terra se instalasse um período de graves carências… enquanto isso, a jovem começara a definhar e acabou por ser resgatada após Hélio (o sol) ter informado Deméter do lugar onde se encontrava a filha, onde Hermes (deus da fertilidade, dos rebanhos, das estradas, das viagens, da magia e da interpretação do Logos, também associado, entre outras figuras mitológicas, a Mercúrio) a foi buscar… sem rejeitar Hades com quem partilhara uma romã, símbolo do amor, a jovem deusa passou a viver metade do ano com os pais (na sua vertente designada por Core, símbolo do renascimento da natureza) e a outra metade com Hades (na sua vertente de Perséfone, rainha das profundezas, entidade tenebrosa e símbolo da imortalidade da alma).
A história, fascinante por denotar o ciclo das colheitas e a condição diurna e nocturna do mundo natural e humano, encontra na Aldeia da Venda, reflexos evidentes não só no ritual do Cântico à Ordem às Oliveiras (onde se defrontam duas mulheres vindas de sentidos opostos, uma vestida de branco e outra vestida de preto que, após o Encontro -que descrevo em trabalhos publicados em 1993, 1995, 1997 e 1998- prosseguem o ritual, unidas como se passassem a ser uma só) mas, também, nas recorrências etnológicas presentes nas práticas culturais que se associam ao “casamento por rapto” de que se registam reminiscências na sociedade tradicional em Santiago Maior e que estão reflectidas na caracterização possível de Endovélico a partir das fontes romanas e do imaginário popular.
De facto, para além do culto a Endovélico atestado documentalmente e de fácil compreensão no contexto da sociedade agro-pastoril que constatamos no concelho de Alandroal designadamente em Terena e Santiago Maior, nesta última freguesia, as recorrências etnológicas manifestam-se ainda, de forma evidente, quer sob a forma ritual de celebração das uniões de facto em que se denotam influências do antigo “casamento por rapto” (conforme descrevi em 1995 e 1997), quer na estruturante oposição categorial dia/noite, que se revê, por um lado, na dicotomia Sol/Lua (monumentalmente assinalada em construção romana preservada patrimonialmente em Mérida,) cujo paralelo etnológico se encontra nas oposições simbólicas Ouro/Prata e Branco/Preto em que assenta o “Cântico à Ordem das Oliveiras” celebrado anualmente, em Maio, na Aldeia da Venda, em Santiago Maior.
É ainda digno de referência, relativamente à construção cultural do simbólico no imaginário popular, um outro elemento interessante que decorre do contexto hidrográfico local. Trata-se do afluente do Guadiana, próximo de Terena, designado por Ribeira do Lucefecit que nos legitima, pela tradução latina do seu nome, a sua associação com a dimensão da Luz, também presente no topónimo cristianizado de S. Miguel (da Mota) que, por associação com o ouro e a cor branca presentes no Cântico à Ordem das Oliveiras, nos remete insistentemente para o Sol, seja através da interpretação de J.B.Carrasco (1864) de Endovellicus como uma divindade próxima da imagética associada a Apolo Délfico, seja pelo seu contexto regional mais alargado na evocação de Hermes e Hélio a propósito de Proserpina.
A cultura oral de uma população reconhecida localmente como isolada e alcunhada como “sacaios” que se manteve relativamente pouco exposta a contactos com o exterior, cuja sobrevivência era garantida pela prática do regime endogâmico (conforme demonstrei em 1995 e 1997) e que pouca influência sofria do catolicismo institucional (relembre-se que na freguesia de Santiago Maior, constituída por 7 aldeias, existe ainda hoje apenas uma capela dedicada a Nª Sraª dos Remédios), terá mantido praticamente inalterado o sentido das práticas culturais de origem agro-pastoril em que acabaram por se integrar, sincreticamente, alguns dos mais comuns elementos do cristianismo e do catolicismo na sua versão popular, contribuindo para a singularidade do seu património etnológico actual.
Retomando a abordagem relativa à correlação entre o património etno-arqueológico e agro-pastoril da cultura tradicional local em análise, cabe agora referir o facto dos núcleos arqueológicos caracterizados pela cultura megalítica presente nos concelhos de Reguengos de Monsaraz e de Évora, se encontrarem no que podemos designar por “área de recurso” da economia de carácter polivalente de que parte este estudo de caso, no qual se constata uma coexistência de actividades recolectoras e agro-pastoris que procedia conforme a uma lógica de mobilidade regional diversa da que é actualmente configurada pela organização administrativa e rodoviária contemporânea do território. A observação adquire pertinência se atendermos à consistência etno-arqueológica da ocupação espacial desta área territorial pela qual se reforça a ideia de uma lógica de construção cultural do povoamento regional extensível, no distrito de Évora, aos concelhos não apenas de Évora (onde se destacam, pela sua monumentalidade, o conjunto formado pela Anta do Zambujeiro-Valverde, o Menhir e o Cromeleque dos Almendres) mas, também, de Arraiolos e Montemor-o-Novo onde (além dos cromeleques da Portela de Mogos e de Vale de Maria do Meio) continuamos a denotar como marca da continuidade de ocupação do território, a existência de um elevado número de menhires, dolmens e antas – tal como acontece no de Reguengos de Monsaraz onde estes e outros vestígios megalíticos (além dos conhecidos Menhires do Outeiro e da Belhoa ou dos conjuntos de Antas do Olival da Pega) proliferam.
Pelo conjunto de razões apresentadas, consideramos que faz todo o sentido reconhecer a existência de uma paisagem etno-arqueológica no distrito de Évora, compreendendo os concelhos de Alandroal, Reguengos de Monsaraz, Redondo, Évora, Arraiolos e Montemor-o-Novo que, também pelos dados indicados e outros recorrentes, integra a dimensão mais alargada de uma etno-paisagem que se prolonga pela margem do Rio que é hoje território espanhol e cuja aproximação em termos de património etnológico com o do território local português, legitima a consideração de estarmos, indiscutivelmente, perante uma cultura regional.

Referências Bibliográficas:
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Moita, Irisalva (1963) “Sobrevivência de Cultos de Origem Pagã no Interior do Alentejo, ed. Separata das Actas do Congresso Internacional de Etnografia, Santo Tirso
Santos, Armindo dos (1992) Heranças – Estrutura Agrária e Sistema de Parentesco numa Aldeia da Beira Baixa, ed. Dom Quixote, col. Portugal de Perto nº 25, Lisboa
(2004) “As Etno-Paisagens. A Observação Etnogeográfica das Formas Sociais de Modelagem do
Espaço” in Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol.44 (1-2), ed. Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, Porto
(2006) Antropologia do Parentesco e da Família, ed. Piaget, col. Epistemologia e Sociedade nº 245, Lisboa
Reitor do então Liceu Nacional de Évora (hoje, sede da Universidade) no período de 1929 a 1958.

Este interesse é tanto maior quanto contraria a ideia que se instalou em parte do imaginário popular, da origem celta do alegado culto, atestada em noticias recentes publicadas 03 de Julho de 2010 no Diário de Notícias
Carrasco, Don Juan Bautista (1864) “Mitologia Universal – História y Explicación de las Ideas Religiosas y Teológica”, pub. Imprenta Y Libreria de Gaspar y Roig, Madrid


O trabalho de terreno que realizei entre 1990 e 1995, no âmbito da investigação de que resultou a minha tese de Mestrado (1995): “Ocupação Sexual dos Espaços e Redes de Comunicação Social em Aldeia da Venda (Alandroal-Alentejo)”, publicada sob o mesmo título em 1997 pela CMA, foi desenvolvido nesta freguesia (onde se localiza a Aldeia da Venda) e implicou incursões regulares nas freguesias contíguas de Terena, Capelins e Montejuntos, que, designadamente, no âmbito do estudo da estrutura fundiária, da religiosidade popular e da etnografia do espaço envolvente da aldeia em que se centrava a minha investigação, me permitiram identificar na paisagem, os elementos etno-arqueológicos que aqui se apresentam.
Situada na área de influência das margens do Rio Guadiana, esta freguesia voltou a integrar as minhas preocupações, desta vez enquanto espaço envolvente dos meus novos trabalhos de terreno, no âmbito da investigação que, entre 2000 e 2005, levei a cabo e de que resultou a minha tese de Doutoramento subordinada ao tema: “Continuidade Cultural e Mudança Social – Um Estudo Etnológico Comparado entre Juromenha e Olivença” (publicada, em 2007, pelas edições Colibri, sob o título “Olivença e Juromenha – Uma História por Contar)”, em cujo contexto, percorri o território da Extremadura espanhola, reencontrando em Mérida recorrências relevantes para as minhas reflexões. Refira-se ainda que Juromenha (único povoado da actual freguesia de Nossa Senhora do Loreto) é, tal como Santiago Maior e Terena, parte integrante do concelho de Alandroal – ao qual pertence “de jure” nos termos do Direito Internacional e “de factu” até ao início do século XIX (1801), o designado “termo de Olivença” em cujo território, actualmente sob administração espanhola, se localiza a pequena aldeia de Villarreal/Vila Real, a qual, apesar de fazer parte do antigo “termo de Juromenha” foi, informalmente, anexada ao de Olivença, dada a proximidade geográfica que lhe confere a localização na mesma margem do Rio em que se situa o “termo oliventino”.
































































4 comentários:

Ana Paula Fitas disse...

Caro amigo Chico Manuel,
É, para mim, uma honra e uma alegria imensa poder ler no AL TEJO este meu artigo. Agradeço-lhe sincera e sentidamente, nomeadamente, o cuidado de indicar a nota explicativa relativa à origem e local de publicação do texto e, naturalmente, o gentil e gratificante agradecimento. Vou agradecer-lhe também no A Nossa Candeia.
Um grande abraço e um beijinho de grande amizade e respeito.

Anónimo disse...

Algumas das questões aqui afloradas pela Dra. Ana Paula Fitas, já eram minhas conhecidas, na medida em que fazem parte do livro publicado pela Câmara Municipal do Alandroal, em fins da década de noventa.
Ao ler este artigo, procurei o referido livro, mas não o encontrei.
Lembrei-me posteriormente que o tinha emprestado a um amigo e que não me foi devolvido.
Vou tentar junto da Câmara arranjar outro exemplar, mas, devido ao tempo que já passou, duvido que o consiga.
O livro tem por título : « Ocupação Sexual dos Espaços e Redes de Comunicação Social em Aldeia da Venda ».
Salvo erro é a tese de Mestrado da Dra. Ana Paula Fitas.
Se a primeira edição estiver esgotada, seria uma boa idéia a câmara pensar em fazer outra edição, porque se trata de uma boa fonte de conhecimento cultural, sobretudo sobre as gentes da freguesia de Santiago Maior.
Também tomei nota da editora que publicou o novo livro da Dra. sobre Juromenha e Olivença.
Não sei se faço bem em dizer isto, mas é uma pena que nos últimos anos não se tenha prestado atenção a estas questões culturais, pois são elas as nossas raízes.
Obrigado à Dra. Ana Paula Fitas e ao blog, por darem lugar a estas questões.

Não assino porque me iria cair em cima o Carmo e a Trindade.

Ainda assim, obrigado.

Ana Paula Fitas disse...

Caro Anónimo,
É com grato prazer e muita alegria que leio este seu comentário que, sinceramente, lhe agradeço pelas razões que indica. O livro que refere foi, realmente, a minha tese de Mestrado publicada pela CMA em 1997 enquanto o publicado em 2007 pelas edições Colibri resultou da minha tese de doutoramento. Espero que goste e que tenhamos oportunidade de continuar a contribuir para que o nosso melhor património continue vivo, na realidade e na memória... e sim, vale a pena saudar o AL TEJO pela dedicação às questões da cultura que são, de facto!, as nossas raízes e nos permitem uma construção sólida do futuro.
Bem-haja!

Anónimo disse...

Ana Paula Fitas:

A questão da prática endogâmica em Santiago Maior fundamenta-a com base em que estudos/documentos.

Sobre a origem da designação de "sacaios" sabe alguma coisa.

Obrigado

Cumprimentos

Vítor Boieiro Cotovio