Joaquim Cardoso Galhardas, alandroalense convicto, licenciou-se em Coimbra, vindo a exercer medicina em Terena, sua terra de adoção.
Para acudir a um doente, em certos montes com caminhos manhosos, o transporte era uma égua.
Entre dois automóveis, conheci-lhe uma motorizada. Um dia decidiu limpar-lhe o motor…, e foi desmontando peças. Ao fazer o sentido inverso da operação, recolocando o material, constatou que sobravam várias. Mas a motorizada pegou à primeira: grande máquina… disse!
(Dr. Galhardas - foto familiar)
O que aqui escrevo é uma homenagem ao avô de minha mulher e bisavô de minha filha.
Domingo acordo cedo com o cantarolar lançado pela garganta bem treinada do galo residente no quintal do vizinho. Tenho vontade de uma madrugada destas lá ir, incógnito, calar-lhe o pio. O safado dá o concerto da alvorada mesmo arrimado à janela do meu quarto, interrompendo-me o sono reconfortante do dia de descanso.
Começa outra chinfrineira que oiço este ano pela primeira vez – um bácoro anuncia que está de malas aviadas para o outro mundo. É a matança do porco, ritual milenar por estas bandas – aqui não há intolerância que proíba a comezaina.
O vento ajuda ao desassossego, atirando-se com assobio estridente contra tudo o que apanha pela frente. Do lado da serra chegam os primeiros frios. Acendem-se as lareiras em casa de quem as tem, tornando o ambiente acolhedor.
Do sino do convento ecoam as matinas à procura de fregueses para as orações da manhã. Perscruto os passos dos frades que percorrem os claustros, num vaivém que só eles entendem. Diz-se que levam vida austera.
Passa um carro lançando estampidos pelo escape, arremedando intensa fuzilaria. Os que ainda dormem acordam, de certeza, atordoados com o estouro.
Alguém bate à porta. Finjo não ouvir, abafando a cabeça debaixo das mantas. O toque insiste, empurrando-me para fora da cama, aos tropeções.
–Quem será que tão cedo me vem dissipar definitivamente o merecido repouso dominical? Abro a janela às apalpadelas e logo tenho que cerrar as pálpebras pela intensidade da soalheira matinal. Reconheço a voz do Sebastião Enjeitado, mais conhecido pelo Salta Léguas – assim crismado pelo característico modo de andar aos saltos – nome que lhe assenta que nem uma luva na profissão de moço de telegramas e recados que exerce no posto público e de correio, único local de onde é possível comunicar com o exterior, o que o faz andar o dia inteiro numa roda viva. Tem umas pernas enormes e uns membros superiores diminutos, fisionomia que, associada ao saltitar, me faz lembrar um canguru. Vive em casa de D. Mariazinha, proprietária da pensão Estrela, onde, a troco de cama, mesa e roupa lavada, ajuda no que é necessário, quando os telegramas e recados lhe deixam tempo livre.
–O que temos hoje tão cedo, Salta? O posto está encerrado e tu fazias bem em estar ainda em vale de lençóis – a ver se eu consigo passar um pouco mais pelas brasas.
«Queixe-se da patrulha da Guarda, senhor doutor, foram eles que passaram por casa de D. Mariazinha e deram recado para o avisar que no monte da Fonte Limpa precisam de si para o velho Busca, há três dias tão doente que foi à cama – e se é rijo o cabrão do velho!»
–E a Republicana não te disse do que se queixa o... –não importa, seja o que for que atormente o Busca, tenho que lá ir e adiar o passeio alinhavado com a família.
«Parece ser mal de barriga, senhor doutor» – largou em voz esganiçada o Sebastião Enjeitado, quando já batia em retirada, aos saltos.
O dia que tinha amanhecido sorridente toldou-se por completo, sendo eu acompanhado no destino para o monte da Fonte Limpa, onde ia consultar o enfermo, por forte trovoada que me encharcou até aos ossos e manteve em constante sobressalto a minha égua baia.
Finalmente chego. Um rapaz toma conta do animal e a mulher do Busca, ti Maria Cosme, faz-me entrar na cozinha do monte.
Com mil lamentos pelo meu estado deplorável, introduz-me na grande chaminé para que me seque: «uma molha assim é meio caminho andado para doenças ruins e outras que se apanham com o enregelamento…, isto, senhor doutor, sem querer estar a ensinar o pai nosso ao padreca.»
Agrada-me o tom jocoso que mete na conversa. Sabe-me bem o calor do lume.
Ti Maria Cosme observa-me de soslaio e compreende, pelas voltas que o meu nariz dá, que capto o cheiro que empesta os quatro cantos da casa. Ri-se, comprometida. Logo desembucha: «o doente, graças a Deus, está melhor e não merecia a pena o senhor doutor apanhar esta carga de água, se eu adivinhasse que vinha aí uma trovoada…»
Supu-la incomodada por me ter desabado em cima a quase metade do firmamento e confirmei: –quando esta manhã o Salta Léguas foi bater-me à porta, disse que é da barriga que ele se queixa; talvez coisa estragada que tenha comido…, adiantei convicto.
«O contrário, senhor doutor, o contrário…, alvitrou a ti Cosme com acento abertamente de gracejo. O mal, a meu ver, foi estar oito dias sem sujar…, com sua licença senhor doutor, que assim percebe logo. Tinha a barriga inchada…, que nem o bucho de um boi enfartado...».
Dá gargalhadas soltas, ao mesmo tempo que um rubor súbito lhe invade a face. «Deus sabe que é modo de conversar..., que sempre fui uma mulher séria..., as duas últimas noites não me deixou pregar olho com ais!, uis! e outras coisas que tenho vergonha de dizer diante do senhor doutor. Felizmente a trovoada foi remédio santo. O “velhaco dum raio” tem medo delas desde pequeno. Quando hoje trovejou, aqui mesmo em cima do monte, fez pelos oito dias que esteve sem desenvolver».
De regresso a casa anotei, na agenda das mezinhas caseiras e tradições medicinais populares, este eficaz remédio para o “embaraço intestinal”, de que tomei conhecimento no monte da Fonte Limpa.
AC
6 comentários:
Gostaria que o autor soubesse que sou apreciador deste tipo de textos.
Bem estruturados, escritos com uma grande capacidade de síntese, interessantes e simples, simultaneamente.
Mesmo supondo que AC é um pseudónimo, aqui ficam os meus parabéns.
Se eu soube-se que tais intempéries curavam mal das tripas...Que venham mil trovoadas aliviarenos desta "borreira"
Gostei e gosto destes pequenos contos.Parabens ao Dr. Luis Fernando
Meu caro AC
O Dr. Xavier gostava de levar os gaiatos do colégio com Ele quando tinha de ir ver doentes fora de portas.
UMA VEZ.
Dessa vez,calhou,fui eu.
Na volta, deu boleia a uma velhota.Mal entrou no carro começou a enjoar pavorosamente.
O Dr. Xavier,piscou-nos o olho e disse:
"Oh senhora, ponha aí este jornal no peito,aconchegue-o bem,feche os olhos."Vai ver" que não enjoa mais".
Dito e feito.A viagem até ao Alandroal foi uma maravilha.Viemos todos,completamente desenjoados.
Fim de história:
a Velhota desfez-se em
agradecimentos.Deve ter
dormido.E nunca mais
deu em enjoar.
Com as melhores saudações
António Neves Berbem
Ps:Se fosse a Eveline a lembrar-te esta história,é claro,que te contaria toda a verdade:qual era o jornal (O Diário de Noticias,O Século,O Dia)a data,o assunto do dia,o custo do jornal,a guerra fria,o conflito israelo-arabe,o ainda estado novo,etc.
Mas aí,sucede que eu já não sou capaz de me lembrar.
DESCULPA!
Talvez o CM, possa dar uma ajuda.
Falar do Dr Joaquim Cardoso Galhardas é falar da saudade e das recordaçãoes que Ele deixou. Médico popular, formado em Medicina Geral e, mais tarde em dentista. Terena, reconhecida, deu o seu nome á Rua onde morava.
Constava-se que da tal mota que trabalhava com falta de peças tinha "perdido" o pai, na ladeira da Canada e só dera pela sua falta, quando parou á porta de casa. Inúmeras vezes falei com ele e, que agora me lembre foi duas vezes consultado. Uma das vezes, foi para me extrair o meu primeiro dente. Ainda frequentava o Colégio e estando no Alandroal, no monte do meu avô Salgado, deu tão grande dor que tive que faltar ás aulas e partir para Terena. O Dr Galhardas ao ser arrancado escapa-se do alicate, tendo o dito esta frase - são poucos os médicos que têem força para arrancar um dente destes- o dente tinha três forcas.
Lembro-me dos dois primeiros carros que teve. Da marca do primeiro já não tenho a certeza, creio que era um Aronde/Simca, o que me lembro é que tinha dois lugares e com o pêso do Dr (era um homem basto) ia de lado. O outro carro era um Ford, com motor longitudinal e gurdas-lamas salientes. Os faróis também salientes mas o que mais saltava á vista eram os estribos, que apanhavam o espaço das duas portas. Um dia a equipa de futebol de Terena, Peças, Mira e companhia foi jogar a Montejuntos. O Dr tentou levar a equipa no carro. Foi uma festa quando o Peças disse Dr eu não quero ser perdido como o seu pai.
Obrigado Luis fernando por me fazeres recordar estes tempos de ligação, não só ao Concelho, mas também e sobretudo às pessoas que deixaram marcas enesquecíveis de salutar convivência.
Helder Salgado.
01-06-2011
Eu fui das pessoas que bem novo tive o previlégio de privar com o dr Galhardas.Cheguei a ir com ele no seus Taunus 17M, a Ferreira ,Monte Juntos,etc, etc.
Mas recordo-me particularmente da vez em que me foi buscar para ir com ele, porque uma carrinha do Chico Zé de V.Viçosa ,que fazia a distribuição dos «pirolitos »e outros refrigerantes na zona, se havia despistado na curva do Carapinhal, no sentido Faleiros -Terena.Ainda hoje tenho a imagem do que fomos encontrar,e que não vou relatar aqui. E quando digo que privei,é porque passámos muitos momentos a jogar ao bilhar no café de meu Pai , mesmo de frente á casa onde vivia na rua das Casas Novas.Para além da amizade que o ligava ao meu Pai,recordo-me que ambos tinham o vicio de jogar na lotaria e por altura do Natal, nem se fala. recordo-me bem dele , de sua mulher dna Silvina,e de sua filha, tua sogra, dna Chiquinha.tua sogra lembra-se de mim certamente, apesar de passar menos tempo em Terena. Fazes bem em recordar dessa forma pessoas que foram importantes para aquelas gentes. Um grande abraço BG .
Texto NATURALMENTE merecedor de edição (e não o será? como outros já postados?), de atenta leitura e de transposição de pensamento para os idos anos 60.
Abraço de felicitações Dr. Luis Galhardas.
Tói da Dadinha
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