quarta-feira, 13 de outubro de 2010

CRÓNICA DE OPINIÃO DA RÁDIO DIANA/FM

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Luís Sebastião - A culpa é dos bichos


Quarta, 13 Outubro 2010 09:28
Está a decorrer, esta semana, a chamada recepção aos caloiros da Universidade de Évora. Devo dizer, em primeiro lugar, da minha perplexidade pelo facto de as aulas do primeiro ano terem começado há três ou quatro semanas, de há três ou quatro semanas se assistir permanentemente a esse confrangedor espectáculo de rapazes e raparigas imundos e cabisbaixos a passearem-se pela cidade, a fazerem e dizerem disparates sem sentido, e só esta semana ser a recepção aos caloiros. Perplexidade que ainda aumenta quando se pensa que apenas no dia 1 de Novembro é que este despautério vai acabar.
É verdade que as melhores Universidades do mundo também têm praxes e recepção aos caloiros. Duram é, normalmente, um dia ou dois. Vá lá que as nossas durassem uma semana em nome da proverbial latinidade das gentes do sul, o que quer que seja que isso quer dizer.
Mas vem isto a propósito de uma conversa que ouvi, um dia destes, à porta de um dos edifícios da Universidade. Uma jovem, trajada a rigor, desabafava com umas colegas e dizia: "tenho o carro só a cheirar a vinagre e a acetona. A culpa é dos bichos".
Fiquei boquiaberto. Abstenho-me, naturalmente, de comentar o número desmedido de estudantes que se desloca nas suas viaturas privadas e o que isso representa em termos de equívocos económicos, ambientais, sociais e educacionais. Mas não me posso abster de comentar este facto: a jovem estudante, que deverá cursar, no máximo, o terceiro ano de uma licenciatura, tem um carro, o carro cheira a vinagre e a acetona, e a culpa é dos bichos.
Fiz parte do pequeno grupo que, em 1981, organizou a primeira queima das fitas na Universidade de Évora restaurada. Tive o duvidoso privilégio de ter sido atirado duas vezes para a fonte dos Claustros dos Gerais, em 1981 e em 1983, quando acabei o curso. E isso, no tempo em que trajar capa e batina, falar em tradição e identidade universitárias e defender cerimónias como a bênção das pastas e a queima das fitas correspondia a uma afirmação política corajosa. E deve ser por isso, justamente, que me perturbou tanto aquela frase aparentemente inocente: a culpa é dos bichos.
As praxes não deviam ser, mas são, um exercício discricionário e desmedido do poder de uma instituição (os notáveis ) sobre indivíduos frágeis e desprotegidos. Poder que é exercido em nome de uma entidade mítica – a tradição académica – cujos intérpretes oficiais se auto- -elegem, se auto-regulam e se auto-legitimam. Tal como era exercido o poder inquisitorial das mais bárbaras e irracionais ditaduras ao longo dos séculos da história, que tinham como requinte máximo o responsabilizar as suas vítimas pelos males do mundo, legitimando os seus desmandos e crueldades com a sua função expiatória e redentora: a culpa é dos judeus; a culpa é das bruxas, a culpa é dos padres, a culpa é dos comunistas. A culpa é dos bichos.
Como o próprio nome indica, tradição diz respeito às coisas que vamos trazendo do passado para levarmos para o futuro. Talvez devamos ter a coragem de reconhecer que, neste momento, trazemos aos ombros muitas coisas que urge deitar fora.
Até para a semana.
Luís Sebastião

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