Este calor abrasador, que só nós alentejanos sabemos suportar durante o dia, convidam-nos a um passeio depois do jantar. Vamos até ao Parque – diz a Fátima, vamos lá – digo eu.
No Parque há sempre “qualquer coisa” e por vezes damos por nós embrenhados a ver o filme que está ser projectado, outras programamos antecipadamente o espectáculo a ver; (excelente a última peça teatral exibida, assim como vai ser excelente a noite de tangos argentinos programado para o próximo sábado).
Mas muitas vezes o regresso é cedo e como a calor continua a apertar, é altura de ver na varanda, com uma brisa suave, um filme metido na ranhura do computador.
Outras há em que apenas apetece desfrutar da brisa e é nessas alturas que ocorrem os regressos ao passado.
1953 – 8 anos:
Amanhã, vamos para a Barranca, chega “máquina” (debulhadora) do Crispim, e vai começar a “debulha”.
Custava um pouco, saber que ia deixar as brincas da Horta, com o Chico do Valadas, o Rato, o Garçoa, o Brito, os Fátimas, e até a “Dalinha”, e tantos outros. Custava deixar o “sorvete” do Martinho, a visita à loja do Valadas onde havia sempre uns rebuçados adiantada mente pagos pelo Padrinho Chico Garcias. Mas a grade de “pirolitos” já à mostra e a promessa de que a “flober” ia também e que lá havia caça mais grossa, faziam com que fossem esquecidas estas regalias e sonhasse com os dias bons que se iriam seguir,
A viagem era feita antes do sol nascer. Na “charret” (três lugares), pois o “churrião” era só para ocasião festivas, não esquecendo o “trem” que se hoje fosse vivo poderia equivaler ao Rols Royce, ou talvez mais valioso.
O condutor era o “Jaquetas”, rapaz de Terena, (a última vez que o vi era cobrador da Empresa Belos – e que agora está incorporada na R.N).
À Cruz Branca virava-se, pois passar por Terena, alem de ser um trauma (alguém sabe ou tem dados, sobre o incêndio na malhada dos porcos quando da Festa da Boa Nova?
É que sempre ouvi falar disto à minha Madrinha Dona Antónia. Sei que foi um golpe duro, sei que a “gordura” dos porcos incendiados chegava à ribeira, sei que houve panfletos (versos em papel muito fininho [sei que lhes dão um nome, mas não sei qual, que ainda tal se usa no Brasil], além de ser difícil passar o Luci-Fecit, não só pela corrente, mas, também pelos pedregulhos que serviam de ponte.
E chegáva-mos, ao fim de 2 horas de viagem, (ou talvez mais) por fim ao Monte.
O primeiro a aparecer era o Ladislau, com residência fixa e que além de velar pelas instalações era o cozinheiro.
Os homens para a “debulha” já lá estavam. Alguns acompanhavam a “máquina” do Crispim, outros eram residentes (“criados” da casa), outros eram contratados na altura (se transportámos isto para os dias de hoje digamos que eram os contratados a prazo ou recibo verde).
Tudo me contentava, beber pirolitos, andar à solta com a flober matando pássaros, pescar à lapa (ensinamento do Manel Pirolito) nos pegos da Ribeira (até que uma cobra de água foi pescada e o mêdo suprepô-se ao prazer ), tomar banho nos pegos menos fundos e ainda por cima andar na burra quando queria, “guiar” o carro das parelhas a cargo do Manecas, quando ia à “nora” buscar água.
Mas há “coisas” que permanecem para sempre :
O jantar, feito pelo Ladislau, sempre o “gaspacho”. Para os criados servido na cozinha: numa mesa muito grande com tampo de zinco e que além do azeite e alho, e, as sopas, um pepino e dois tomates eram suficientes. E o gaspacho servido ao patrão com tudo isto …mas mais o paio, umas vezes comido no próprio gaspacho outras servido á parte.
Porque seria que me sabia muito melhor o gaspacho comido na mesa de zinco, do que aquele preparado para o patrão?
E chegava a noite.
Caminha própria, mas com vista para a eira, onde depois do dia difícil os “criados” iam dormir.
Quantas vezes, e quantas “brigas” , eu conseguia (inventando os melhores estratagemas) conseguir ir dormir para a “eira”.
E aí é que era bom:
“Camalhos” ao redor da “eira”. Mesmo depois de um dia difícil, a boa disposição não faltava.
E recordo:
O Desidério: tocava uma gaitada,
O Farinheira : deixem-me dormir.
O Kaidi : “Pregava um peido”
O pessoal ria-se.
O Manecas dizia: Olhem que está aí gaiato
O meu pai dizia: Tenham juízo e vejam lá se dormem. Olhem que amanhã vão p´rá “moinha”
O Sopa: Pôrra ninguém dorme.
O Manel Lopes: (depois de um período de “alcamia”), e para mim: Então “já tocas ao bicho’
E eu: já pois…ainda hoje vi o Ladislau a….f…. uma cigana. (afinal se calhar não era cigana nenhuma, mas sim mais uma desgraçada fugida da Guerra civil de Espanha)
Foi assim a meninice…..
Xico Manel
P.S.- Ficava muito grato a que me desse notícias sobre as personagens (verdadeiras) aqui mencionadas, assim como a história da queima dos porcos na Barranca.
5 comentários:
Chico
Que te fique clarinho como a água da Fonte que gostei muito desta tua narrativa, vivida e situada nos teus oito anos.
Eras tu uma criança dotada já de bom espirito de observação entre os homens de trabalho duro que, ainda hoje, permanecem na tua e na nossa memória.
É bonito o que descreveste,tem riso e tem o nosso humor.Tem vida e tem a dureza dos tempos.Tem homens que sabiam dormir numa eira como se, da melhor cama se tratasse.
Tem-te a ti,menino inteiro,que continuo a ver-te como um pequeno/ grande contista das memórias dos Alandroalenses que eramos.Dos Alandroalenses que deixaram uma herança de vida e cultural do mais rico e humano que existe.Basta ir ouvindo.Basta ir contando.
E mais,muito mais poderia dizer-te.
Portanto,sabendo tu onde eu quero chegar, direi que estás definitivamente contratado para que "Sem Pressas" façamos aquilo que, mais tarde ou mais cedo, terá de ser feito:aprendemos a reinventar-nos em muitas histórias desse pequeno grande mundo onde crescemos.
Com mais felicidade do que muita gente poderá pensar.
É este afinal um dos grandes segredos de quem procura viver a vida por dentro de si.Por fora de si.Mas sempre com os Outros.
Ou não será assim,Francisco Manuel Ramalho Tatá?
Com um mui forte abraço para ti
António Neves Berbem
Ps:só fiquei com uma dúvida.
Chico, mas é mesmo verdade que aos 8 anos já batias pívias e quantos minutos mais ou menos duravam?Foste assim tão precoce e avantajado? Ou estás mesmo a mangar com o Altejo?
Muito obrigado amigo, pelo comentário que fizeste sobre estas minhas recordações,e pelas palavras de amizade que fizeste o favor de tecer sobre o Chico.
Vindas de ti são um grande incentivo para prosseguir.
Sobre o convite para o projecto, sabes que desde o inicio estive sempre de alma e coração com o mesmo, conforme já havíamos falado. A propósito gostaria de te chamar a atenção para um texto , que logo mais vou publicar, escrito pela personagem principal do SEM PRESSAS, e que responde a uma réplica que aqui coloquei sobre Gente da nossa Terra, tambem eu desafiado por comentário que sugeria vários nomes que ficaram na memória dos Alandroalenses. Lê vais gostar.
Sobre a última questão: Se sim ou não, não me lembro. Agora que a pergunta era feita lá isso era. De qualquer maneira, um pouco de divagação calha sempre bem.
Um grande abraço e obrigado
Chico
É com alguma emoção que escrevo estas palavras. O texto levou-me a recordar, alguns amigos, alguns acontecimentos, que lá vivi e que aqui revivo, como se lá estivesse, tendo como cenário o Lucifécit e as eiras. A ribeira, pelo o que nos ofereceu continua a ser um bom pano de fundo, de recordações.
Também tive o prazer de dormir nas eiras ou de não dormir, por ninguém sossegava. A questão da queima dos porcos, foi um dos episódios de desavenças entre a família Neves e Azevedo, passada nas malhadas dos Barros, junto ao ribeiro da coitada, já muito próximo de Terena. Há livro sobre este triste acontecimento, que já li, e confesso que me entristeceu bastante.
Um abração, companheiros.
Helder Salgado.
Mentia se não confessasse que ao alinhavar estas recordações muitas vezes pensei em ti. É verdade Helder que tal como Camões e Bocage muitas vezes "nossos fados" se cotejam.
Só tu podes esclarecer a história do fogo nas malhadas (até talvez tenhas documentos ou livros) eu lembro-me de lêr os tais panfletos em versos a que faço referência. Daria talvez uma boa história para aqui ser contada e prestar homenagem aos nossos antepassados.
Afinal"isto" pouco mudou e tal como sempre há os bons e os maus. Sei que na casa do Xico Garcias, tal assunto era tabu.
E das personagens de Terena a que faço referência? Sabes dar notìcias?
O Ladislau ,o Jaquetas, o Manel Pirolito?
Um grande abraço.
E obrigado por teres gostadodestas recordações
Chico
Tenho fotocopias do livro. O Ladislau, está vivo o Jaquetas faleceu e do Pirolito nada sei.
Vou ver se encontro o livro e tentar obter mais informações. Um abraço
Helder Salgado
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