Abecedário sobre o João Fitas
(em continuação)
Letra D
DAVA (se) nunca (se) emprestava. Deu-se nunca se emprestou aos amigos, às causas e convicções em que acreditava;
DÉFICE a sua ‘balança de pagamentos’ era habitualmente deficitária. Ou seja, se o mês anterior tinha sido mau, o presente estava a ser péssimo, e o próximo adivinhava-se pior; Uma dor de cabeça, dia após dia;
DIREITOS: tinha uma consciência aguda de que sem o exercício dos direitos políticos jamais haveria Cidadãos; e que sem cidadãos livres… mas politicamente comprometidos e empenhados, a sociedade socialista não existiria;
Letra E
EESCRITORES E LITERATURA O J.F. tinha uma consistente e cosmopolita formação literária. Lia compulsivamente. Gostava dos grandes da literatura clássica francesa e russa. Conhecia também muito da obra dos principais autores americanos. De E.H a J. S. e a W. Faulkner.
Dois livros da sua vida: “Os Irmãos Karamazov de F.D, F. DOSTOIEVSKI...que ao criar a figura do Grande Inquisidor tinha razão em dizer a Cristo: "Vai-te e não voltes"..." E a “Insustentável Leveza do Ser” de M. Kundera”.
Dois outros autores, da sua elevada preferência, foram Bertrand Russel pela defesa que fazia da cultura da Paz e pela autoria da História da Filosofia Ocidental; e Roger Garaudy pela Cultura (e leitura) do Socialismo que fazia a partir da experiência em França;
Faço aqui uma referência especial ao “Canto e as Armas” de Manuel Alegre, um livro que enquanto circulou clandestinamente, o J.F….nos obrigou a ler e a discutir, ali para as bandas da Minerva na P.Chile, por razões que hoje são óbvias. Assim como discutíamos o teatro de J.P. Sartre. E admirávamos o exemplo de Manuel da Fonseca e de Carlos Oliveira.
(e para já fico por aqui…)
Letra F
FASCÍNIO: um dos seus fascínios era ser ‘Repórter de guerra’ para poder observar in locum, mundo fora, o desenrolar dos acontecimentos; isto é, a luta dos povos fracos e ocupados em guerra justa contra os fortes;(2)
‘FARFALHO’: o J. Fitas tinha uma particular vocação e usava de bastante graça, ao dar um valor e uso muito próprio e especial a certas palavras; “Farfalho” era uma delas. A par de muitas outras que reinventava com bastante facilidade e destreza.(1)
Exemplos: “que tal é que correu o farfalho?” “Fizeste
algum farfalho?” “Vamos fazer um farfalho e pronto”;
FELICIDADE: concebia-a como um processo social susceptível de ser experimentado e vivido pelos povos; por isso acreditou tanto no 25 de Abril…
FICHA: garanto-vos que tinha ficha na PIDE; também adorava vê-las saltitar na mesa do poker; acompanhei-o na última noite de jogatana na SARA…onde ambos perdemos tudo. Versus Janita Roma.
Depois fomos dar uma última volta pelo Choupal.
FORMATURA: detestava o termo, a sua conotação e a sua denotação. Teve vários e graves problemas na tropa por causa da estética que a palavra implicava;
FUGA: Adorava uma boa FUGA e brava correria à frente da polícia de choque; corria muito e não me lembra de o ver levar uma bastonada; mas com a adrenalina que punha nestes entusiásticos farfalhos esteve sempre lá bastante próximo…; se não aconteceu foi por mero acaso. Mas se acontecesse, era uma espécie de festa da vida, Mais nódoa, menos nódoa negra. Uma imperial e uma risada resolvia(-nos) o trauma da traulitada
Com as melhores saudações
António Neves Berbem
(Continua aberto à participação)
2 comentários:
Caro TóZé
O J.F. foi alguém muito especial para alguns da nossa geração.
Foi uma delícia ler este teu comentário e só quem se cruzou no caminho com o J.F. percebe isso. Alguma circunstância aproximou-nos ainda no Alandroal e depois em Lisboa. Com ele aprendi o que pude..., passou-me livros para as mãos..., a frase do Prof. Abel Salazar «o médico que só sabe de medicina não sabe nada» foi a J.F. que ouvi citar a primeira vez. Em Lisboa eram frequentes os encontros na Minerva..., na Portugália..., em sua casa para jantar e ver o Benfica na TV.
Julgo que foi num desses encontro na Portugália, à noite, que se formou um grupo, sob o seu patrocínio, e se deslocou ao Jerónimos para ver o Salazar em câmara ardente...
Para além de comer muitas vezes em sua casa, outras lhe pedi dinheiro emprestado. E era sempre como tu dizes: nunca lhe ouvi dizer não posso ou não tenho... e aos amigos nunca se empresta... dá-se. O João Fitas foi um ser Humano com letra grande. Um abraço do Luis Frenando
O episódio que o meu irmão Kabé conta não consigo vislumbrá-lo em qualquer área da minha memória sobre factos passados. Possívelmente o Arnaldo terá então dito alguma das suas piadas, sempre tão oportunas, que me impediu de carregar no botão de gravar...
Mas este episódio veio recordar-me a dificuldade que tinha, enquanto jovem médico, em falar sobre este assunto com os doentes... e ainda hoje penso muito quando tenho de fazê-lo...
Só estive com o J.F. uma vez, já ele doente, mas ainda não se notando que o estava. Fui encontrá-lo em casa da mãe, tinha vindo ao Alandroal... era Páscoa. O encontro e conversa foi nas escadas porque estava muita gente em casa (tb as filhas, pequenas) na presença da mulher, a minha prima Chica. Aí ele tirou do bolso um papel com análises... e eu, para me furtar, argumentei: é pá só com isso não consigo ver o que se passa... ao que ele retorquiu com convicção: mais sabes tu que estou despachado...
Foi a última vez que estive com o Jão Fitas.
Mas tenho uma recordação bem agradável do J.F., talvez até já a tenha referido neste blog:
Um fim de tarde de Verão, jogava-se à bola nos Arquizes (como então dizíamos). Aparece o João, acabadinho de se aprontar possivelmente para alguma incursão nocturna, camisa preta, calça escura e sapatos de verniz... eu fiquei parado a vê-lo dar pontapés na bola... e nas pedras do relvado.
Grande abraço. Luis Fernando
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