Uma noite vulgar duma corriqueira Sexta-Feira-
Seriam cerca das onze da noite e Onid, descia o lance superior da Rua da Mata. Magro, muito magro, de meia altura.
Vinha vestido para a enfrentar a " night " : blusão da levi's, calça a condizer e botas altas ( aquelas mesmas botas com que se tinha metido pelos areais da praia, lá pela Salema dos anos oitenta ).
Trazia a viola a tiracolo.
Depois de uma semana de recolhimento, isto é, repartição casa e casa repartição, tinha-lhe dado a febre de Sexta à noite.
Quando chegou ao cruzamento do Chico Mira, onde agora mora o F. E. C. que, aliás, ele esperava encontrar ainda nessa noite, virou em direcção à Casa da Mala.
Aí, já era esperado pelo A. M. , afamado fadista das redondezas, afamado e aclamado, sobretudo quando incluía no repertório, o fado em que leiloavam as bambinelas da Mariquinhas. O A. M. , encostado ao balcão, falava com uma daquelas raparigas bonitas que costumam aparecer pela Casa da Mala. Falava de África, assunto que dominava com mestria, pois por lá tinha passado metade da sua vida. E já ia no terceiro ou quarto uísque o que, sendo demasiado, levando em conta o adiantado da hora, ainda não dava para lhe entaramelar a língua.
Numa mesa, ali ao lado, o pessoal da tertúlia das Sextas que, depois duma bruta jantarada, já tinham começado a empreitada das minis.
Era este o cenário.
E estando o cenário composto, faltavam, porém, duas ou três personagens. Que não demoraram muito a chegar. Vinham do restaurante do mercado. E também já vinham bem convidados. Eram eles, por ordem de idade : Um tretas que, sendo do Alandroal, vivia agora por paragens mais meridionais. Aparecia de vez em quando e, quando aparecia, era sempre um esbarrondo. Falava, falava, falava, até parecia que lhe faltava o tempo para dizer tudo o que queria. Um outro, depois de levar anos a aviar combustíveis ao pessoal, trabalhava agora para o maior lavrador da região. Homem calado, ou quase, quando falava, normalmente, acertava. Bom ouvinte, porém. Por fim, entre os que mais atrasados chegaram, vinha ainda um outro - vamos chamar-lhe assim - Sarierrap Miuq. ( isto é para quem ler estas linhas não saber tanto como nós ). Homem possante, alentado, aguentava bebida como sei lá o quê. Bom conversador.
Estavam os naipes completos. E começou a jorrar aquilo que é bom. Sempre com " corróbias " pagas adiantadamente... Qual crise ! ? ...
Quando a clientela júnior começou a sair, foi a vez de se afinar a viola. O Onid, já com os dedos emperrados, mandou vir a cadeira para firmar a bota. O Zé Daniel, sempre prestável, chega-lhe a cadeira dizendo : " Aqui está a cadeira, meu tio. Deseja mais alguma coisa ? "
Resposta do Onid, com aquela prosápia que todos lhe conhecemos : " Por enquanto mais nada, meu sobrinho, mas não te afastes muito porque sabes que o tio, hoje, vai precisar de quem lhe acenda os cigarros ".O Luís, aquele de Juromenha, marido da Lena, murmurou, atrás do balcão : " Estou lixado. Já está o baile armado até às tantas ! "
E esteve.
O A. M. pediu em lá menor. E a lá menor se chegou.
Voltámos a ouvir os mesmos fados, com a samaritana pelo meio, é claro.
Acabámos a noite cantando em coro. Um coro muito desafinado, é bom que se diga.
Ainda regámos o limoeiro, aquele que fica junto ao canteiro de hortelã. Isto é... porque não choveu primeiro...
Depois ... lá fomos saindo. Para grande alívio do Luís.
Já o sol vinha despontando ali dos lados de Espanha.
Sean O'Flaerty D. Rivera Kerrigan.
P. S. === Ah... já me esquecia. Durante todo este desvario, o F.E.C. , que tinha recolhido cedo, apareceu por duas vezes para fazer o avio, que é assim como quem diz, veio buscar duas remessas de minis.
Isto para não falar nas caliqueiras dos velhos que têm a mania de mijar junto ao coreto. Vão ao cheiro, são como os " perros " .
4 comentários:
Poucas vezes me é dado a comentar um artigo aqui colocado (comentar sobre o “conteúdo” mesmo, sobre a maneira como escrito mas acima de tudo pela identificação e sentido de vivência que o mesmo aborda). Até porque bastas vezes tive o privilégio de estar presente em actos desta natureza. Foi das “coisas” mais bonitas, mais bem escritas, e sentidas que me foi dado ler nestes últimos tempos, Permito-me mesmo comparar esta descrição com muitas que nos ficam na memória dum Manuel da Fonseca, Virgílio Ferreira, Fernando Namora.
Obrigado ao Autor.
Sinto-me orgulhoso por contar com colaboradores como este.
Chico Manuel
OBS.
Também li.Também gostei.Também revivi.Também vos peço para irem repetindo o cenário,repetindo sempre,lembrando nem que seja fugazmente todos os demais amigos que tudo dariam para estarem aí.
São, de facto, momentos únicos e que de uma ou de outra maneira transcendem tanto o que já fomos.Como aquilo que ainda vamos gostar de ser.
Quanto ao que cantaram, repetindo-se,concerteza que teria de ser assim.Sigam o que a Amália dizia quando lembrava que nunca cantava "O Povo que lavas no Rio" da mesma maneira.E assim é que deve ser para quem tem alma de boémio,coração de fadista e um sentir de alentejanos que acabam fatalmente a regar limoeiros.
Parece-me, no entanto, que a bela prosa que descreve mais essa pequena aventura de estar à espera cantando e que o Sol viesse de Espanha nascendo,precisaria aí de contar com a presença de mais dois ou trÊs alandroalenses com a marca
de um riso ainda mais aberto, participativo e cumplice.
Por exemplo,com a lembrança e a memória de terem nascido na Rua das Velhas,na Rua do Rodo,na Rua da Cadeia ou vivido na Rua dos Correios e tantas outros locais que acompanham todas as nossas mais ricas memórias de um passado que tem todo o direito a estar presente no futuro de que ainda queremos fazer parte.
Da próxima vez,sou dos que digo que gostaria de aí estar às voltas com "um venham mais cinco de uma assentada que eu pago já".
Com as melhores saudações, e o desejo que prosas destas continuem a ter asas para nos ir lembrando o que sempre quisemos fazer e soubemos fazer.
Esperar,jantar,beber,conversar,fadistar,deixar correr as horas,mijá-las,espairecer,olhar para as muralhas,ver as horas na Torre.E sobretudo não deixar nunca que a famosa mística da Arca da Fonte nos deixe sós.
António Neves Berbem
Parece-me que não ter acontecido numa noite em concreto. Deve ser o resumo de várias noites. Bem descritas, por acaso. Não consigo é decifrar os nomes dos intervenientes. Que código é esse ? É que eu também costumo bater a casa nas sextas à noite e dar-me com os fregueses do bar. Chamem as pessoas pelos nomes, porra.
Cliente Certo.
Desculpe lá amigo...mas isto aconteceu e por vezes ainda acontece. Duvido é que o amigo esteja integrado na vida de todas as personagens que sabem o que é saber enfrentar a vida com um sorriso, vivê-la bem vivida, pôr os problemas de lado e enfim...saber viver e confraternizar.
Até eu que sou de Bencatel e que gosto "disto" que me pélo sei quem são as pessoas a que o autor se refere.
São todos bons amigos e com gosto de estar... talvez sejam de outra geração... mas são grandes.
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