" Peças Soltas no Interior da Circunferência "
A Maldição
Desde o início desta narrativa, em que me propus contar a saga dos Rodriguez Potra, que falo da maldição que paira sobre esta família. No entanto, não me lembro de ter explicado em qualquer um dos textos anteriores o porquê dessa maldição. Se já o fiz, peço desculpa por me repetir, e ao mesmo tempo aproveito para dizer que ando com esta empreitada em mãos há mais de vinte anos, e por esse motivo, muitas vezes, perco o fio à meada. Assim, e porque tenho deixado os esboços e rascunhos nas diversas casas em que tenho vivido, não me é fácil ordenar, em condições, tudo aquilo que já escrevi sobre o assunto. Para não fugir ao tom novelesco com que tenho abordado as situações anteriores, vou então relatar, da mesma forma, como esta família se sentiu, e ainda sente, atingida pela tal maldição.
No fim do século dezanove, por volta de 1890, instalou-se no Monte das Courelas, nos arredores de Capelins, uma família oriunda de Zafra, Espanha, que vinha fugindo da sua terra por motivos políticos. Originalmente era uma família de posses. Gente com uma cultura relativamente elevada para a época, de formação liberal, embora fosse uma família de camponeses. Facilmente se integrou no meio, mas nunca pediu a nacionalidade portuguesa. O elemento mais novo dessa família, era uma menina que aqui chegou com apenas dois anos de idade, Matilda Rodriguez Potra de Avelar, assim se chamava. Agora sim, devem estar lembrados, essa menina viria a ser a matriarca da família dos Rodriguez Potra que já conhecem, pois eu tenho vindo a falar dos seus filhos, netos e até bisnetos, para além daqueles que ao longo dos anos os rodearam, entre os quais eu me conto, porque como também devem lembrar-se casei com uma sua neta, a Evita. A lenda da maldição que paira sobre esta família, remonta exactamente a essa época: Tinha a Matilda dois ou três anos, quando um grupo de ciganos espanhóis acampou nos terrenos do Monte das Courelas. Entre os ciganos chamava a atenção uma mulher de grande beleza, que dava pelo nome de Teodora, com fama de rezar a sina com grandes certezas, lendo o futuro das pessoas na palma da mão e sendo por isso muito solicitada. Mais por desfastio, do que por acreditar em tais artes, quis a mãe de Matilda que ela espreitasse o futuro da menina. Foi ao fim do dia, no pátio do monte. Chamada a cigana, foi-lhe apresentada a menina. A cigana mirou a criança, voltou a mirar, olhou com muita atenção as palmas da mão, lançou umas pedras num tarro de cortiça, disse umas palavras que ninguém entendeu e, por fim, pediu para ver de novo Matilda no dia seguinte. Assim foi. No dia seguinte, já os ciganos tinham levantado o acampamento, já estavam de partida, quando se apresentou a Teodora e pediu para falar com os pais da menina. Na ausência do pai, falou apenas com a mãe, e disse: ---- " A tua filha vai ser muito feliz. Vai ter mais que um homem. Vai ter muitos filhos. Filhos que lhe darão muitos trabalhos, mas também muitas alegrias, e se tiver tempo para isso, ainda conhecerá muitos dos netos. É sobre os filhos, sobre os netos e sobre os bisnetos, será até à terceira geração, depois dela, que eu vejo uma sombra muito grande. Não posso dizer-te mais nada porque eu própria não entendo o que vejo, apenas me parece que nenhum dos seus descendentes terá uma morte natural. " ---- Ditas estas palavras, entrou na carroça que já a esperava, e abalou com os restantes membros da tribo. Esta " leitura de sina " foi passando, ao longo dos anos, de boca em boca, entre todos os membros da família, até se tornar um motivo de brincadeira. Quando a maldição se tornou conhecida fora da família, ainda houve quem comentasse que talvez a cigana Teodora tivesse razão, tal era a apetência dos Rodriguez Potra pela violência. Depois da morte do filho de Rosalía, por afogamento no tanque da horta, depois do suicídio de Rosalía, enforcando-se no sobreiro que dava sombra ao pátio do Monte das Courelas e ainda depois do assassinato de Rufino, a família, sobretudo os membros mais novos, começaram a encarar com mais seriedade a profecia da cigana. Pelo meio ainda houve uma má nova, felizmente, desta vez, sem fundamento: Foi quando, de França, chegaram notícias de que a irmã Guadalupe teria sido internada num campo de concentração nazi, pela Gestapo. Esta notícia não espantou muito a família, pois todos sabiam que a mana Guadalupe participava, naquele país, na resistência à ocupação alemã, juntamente com o seu companheiro, um espanhol com quem tinha abalado no fim da guerra civil espanhola. Mais tarde souberam que ela estava bem e que vivia na Argélia.
Como nasci no seio desta família e a ela me liguei pelo casamento, fui, ao longo da vida, ouvindo as mais incríveis histórias sobre esta " maldição, " e daí o meu interesse em relatar alguns episódios relacionados com ela. Ficam assim explicadas as constantes referências que faço a este tema.
Rufino Casablanca
Terena. Monte do Meio, 1990.
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