Peças soltas no interior da circunferência – (Continuação)
A herdade das Courelas, tinha cerca de cem hectares, muito pequena em termos alentejanos, e era sensivelmente dividida ao meio, pela estrada que ligava a vila de Terena à aldeia da Venda, passando por Capelins. No lado direito da estrada, no cimo do cabeço, ficava o monte velho, ou seja o monte das Courelas e no lado esquerdo, ficava o monte Novo, assim como os palheiros, as almenaras e as malhadas.
No monte das Courelas, vivia o Francisco com a Rosalía e no monte Novo vivia o João com a Guadalupe e a Rosário. Todos os cem hectares estavam densamente arborizados com azinheiras e sobreiros, o que contribuía para a manutenção permanente de uma vara de porcos, que com alguma ajuda de rações, na época ainda relativamente desconhecidas, permitiam o sustento de toda a família. Juntando, ao que acabei de escrever, uma horta bem provida de água e muito bem tratada, por um hortelão competente, que ao mesmo tempo era caseiro e guarda e amigo, levava a que os Rodriguez Potra ficassem com muito tempo livre para se dedicarem a outras actividades. Refiro-me apenas aos homens, porque as mulheres, essas, continuavam dedicadas às questões domésticas e ao apoio aos homens da família, bem, talvez um pouco com a excepção de Guadalupe, que passava muito tempo metida na biblioteca, entre os livros, mas isso será explicado a seu tempo, e desde já prometo, que quando escrever sobre esta mulher, todos ficarão espantados com as revelações que irei fazer. Quanto às actividades extra dos irmãos Rodriguez Potra muito haveria que dizer e desde já lembro que esta crónica, chamemos- lhe assim, está a ser escrita por um familiar, que sempre verá com benevolência, coisas que outros verão com olhos e critérios diferentes e mais rigorosos, isto é, não procuro acordos nem pretendo dar lições a ninguém. Nem sequer estou à espera de solidariedade. Apenas pretendo contar o que se passou. A divisa desta família era " olho por olho, dente por dente ". E o meu sogro Francisco Potra não estava inocente na morte do António Pombo. Vou contar já essa passagem, para ficarmos daqui despachados. Coisa de três meses, mais ou menos, antes dos acontecimentos já descritos, Francisco Potra foi abordado pelo compadre Manuel Ferrador, com estabelecimento no Alandroal, sobre a necessidade de esconder durante uns tempos um republicano espanhol em fuga. Combinou-se que o homem ficaria no monte das Courelas e que seria encaminhado para o seu destino logo que os contactos necessários fossem feitos. Tomaram-se todos os cuidados para que ninguém descobrisse a operação e durante dois meses o fugitivo esteve em casa de Francisco Potra de tal maneira escondido, que nem dona Rosalía deu pela sua presença, apenas o dono da casa, o caseiro e a mulher deste, para além de Rufino e João, ajudaram. Nesse entretanto, tiveram ocasião de falar do que se passava no país vizinho, e afinal também o país de Francisco, já que sua mãe era espanhola de nascimento. Teve ocasião de explicar ao espanhol as actividades de pessoas como António Pombo, que em Portugal perseguiam refugiados republicanos e os entregavam aos nacionalistas em Badajoz onde eram imediatamente fuzilados. O espanhol que não era homem de grandes conversas, pareceu muito interessado nessa informação, e disse que deviam resolver essa questão. A partir desse momento, Francisco nunca mais deixou de chamar à conversa a questão do António Pombo, e quando o fazia, notava a excitação, cada vez maior, do outro. Um dia, novamente através do compadre Manuel Ferrador, aprazou-se a partida do fugitivo. ( aqui, vamos fazer uma breve pausa para que eu vos apresente este compadre. Manuel Ferrador se chama, como já sabem, é ferrador de sua arte, como também já sabem e o nome indica e será personagem de muita importância lá por volta do capítulo quarto. Para já bastará saberem que é homem da idade dos gémeos Rodriguez, grande amigo de todos eles, especialmente do João José. É alto , bonito, muito sorridente e com umas unhas fantásticas para tudo o que é instrumento de cordas. Mais tarde vos descreverei uma foto, que terá mais ou menos cem anos, e que chegou até aos nossos dias.) Pois é, a partida do espanhol seria dentro de uma semana. O homem mostrou vontade de resolver de vez a questão do António Pombo antes de se ir embora e para isso pediu apenas que o levassem e trouxessem do local, já que Francisco lhe tinha exposto um plano há muito pensado. O caseiro, que conhecia a região como ninguém e era de toda a confiança e muitas cumplicidades, encarregou-se de levar e trazer o homem através de veredas e atalhos, utilizando os cavalos que os Rodriguez tinham sempre no estábulo. Operação perfeita, como mais tarde a classificou Francisco. Só não explicou que os motivos dele não eram apenas de solidariedade para com os republicanos, havia também motivos de ordem particular que o levaram a encaminhar o espanhol para aquele desfecho. A seguir, vou falar de Rosalía Potra, já que está intimamente ligada aos motivos que o irmão escondeu do republicano espanhol.
(Continua para a semana - capítulo: Rosalía - Vida, Loucura e Morte)
3 comentários:
OBSERV.
Chegou a altura de eu dizer por esta noite,em jeito de breve comentário,Obrigado por todas as histórias dentro desta magnifica história.
Obrigado também pelos retratos e pela descrição de obscuros e insondáveis palcos de tragédia e amargura que foram marcando as vidas que agora estamos a conhecer.
Uma por uma.Olho por olho.Dente após dente.
Obrigado ao Rufino porque quando fala,ou é a casa,ou é a família ou são as diversas personagens falantes que nos envolvem e estão a tocar humanamente.Por tudo o que foram ou ainda são lugares de memória com gente e vida.
Uma lição forte,estou eu para aqui agora a recolher e a dar enfim um sinal de interpretação.
Com tantas e tão deliciosas personagens, é o que se quiser desde que se comece por olhar para dentro de nós mesmos.E também para além dos rostos daqueles homens e mulheres que o foram.Sempre sabendo sê-lo.
Em circunstãncia que de guerra civil foram e parecem distantes e tão próximas estão que as podemos aqui e agora ainda sentir.
Mesmo que o façamos em silêncio,em mistério,em cumplicidade,em riso ou em puro prazer.De derrotados ou de vencedores.Tanto faz.Aos que foram.Aos que serão.Homens grandes
deste nosso pequeno mundo.
Um Abraço pelo privilégio de Te gostar e muito de ler, o que tão bem narrado e feito de belas luzes interiores,aqui nos apareceu.
E Parabens ao Blog,pois claro.
António Neves Berbém
Esta novela está-se a tornar viciante capitúlo atrás de capitúlo.Parabens...
Já enviaste o texto ao Almodovar?
Olha que merece.
TC
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