terça-feira, 28 de abril de 2009

RECORDAR O PASSADO - PELO HELDER SALGADO

A matança (1ª parte)

Para efectuarmos este acto é necessário termos, naturalmente, um porco.
A tradição que revela o acto, a nossa tradição concelhia, reza duas maneiras de o obter.
Comprá-lo já gordo ou engordá-lo, comprando-o pequeno.
Vamos escolher uma terceira.
Não há uma terceira? Olhe que sim.
Havia porcas que pariam mais porquinhos que tetas tinham.

Um deles o “caga no ninho” tinha grandes dificuldades em cativar uma teta, logo em alimentar-se. Uns morriam, outros sobrevivendo, iam-se atrofiando, na sua criação e ficavam sempre “enrelados”. Daí o dono da porca dar esse semi-enjeitado.

O novo dono criava o “relinha” a leite e a caldinhos de farinha, por biberão.
Reservava-lhe um canto da chaminé, onde dentro de um cabanejo ou caixote, com uma manta velha o porquinho tinha o seu berço.
Era um regalo vê-lo a dormir. Quando se lhe coçava a barriga, agradecia com um “rom rom” e um terno olhar. E que macia era a sua pele.
Crescido lá ia para o chiqueiro, a sua casa até ser morto.
Não é um animal de exigência alimentar. Na fase de crescimento a alimentação é leve, composta de uma aguada de travia, água com farelo e bagaço ou restos de comida.
Quando o dono o julgava já adulto, começava-lhe a dar comida a fartar.
A sua alimentação oscilava entre, bolota, grão-de-bico, favas ou milho e travia agora mais densa. Diziam os entendidos na engorda de porcos, que a farinha de cevada era a mais adequada para o efeito.
Matei muitos porcos.
Herdei essa arte da tradição familiar. Ensinara-me o meu tio Peças, que por sua vez, a aprendera com o meu avô materno.
Tivemos uma porca branca, grande e mansa. E como gostava que lhe coçassem a cabeça.

O chiqueiro onde estava era largo e baixo, o que lhe permitia colocar o focinho por cima da porta. O portão do quintal, feito em barras de ferro distantes umas das outras, permitia-lhe ver a rua.
Foi fotografada inúmeras vezes por estrangeiros.
Quando estava com o cio, não havia portas que lhe resistissem.
Com o focinho apanhava a porta por baixo e lá ia ela de uma só vez.
Por vezes apanhava o portão aberto, partia a correr pela rua fora, escorregando aqui e acolá, nunca obedecendo a quem a tentasse estorvar.
O meu pai, por fim, já não se incomodava. Ia buscar um balde de lata com bolota ou favas e, batendo com elas no fundo do balde lá a ia convencendo a voltar.
Uma vez teve dezasseis “relinhas”, criou-os todos.
Que bonito e comovente, quando deitada, deixava mamar os porquinhos.
Que felicidade parecia transmitir no seu “um um”
E quando os pequeninos de barriguinha cheia, se espantavam e fugiam para dentro da pocilga? Vinham depois uns após outros até à porta, espreitando com a cabeça um pouco ao lado para melhor verem ao alto.
Vamos espreitar o chiqueiro, o nosso enjeitado já deve estar gordo.
Logo aos doze ou treze anos comecei a matar porcos.
O que mais me custava matar eram cabras, felizmente não matei muitas.
Custava-me sempre matar, mas as circunstâncias de vida a isso me proporcionaram.
O meu pai não era capaz de ver matar, retirava-se sempre, quer fossem porcos ou outros animais.
O quê?
Está capaz de faca?
Tragam-no, por favor.

Hélder Salgado.
27-04-2009.
Fotos: Net

(Continua amanhã)

1 comentário:

Anónimo disse...

O Helder no seu melhor.

Com veia narrativa e com uma imensa riqueza de pormenores.Com emoções e com recordações tocantes da vida,da família e da vila de Terena,a sede ancestral com ruas sempre antigas.E ainda com gente que estava e ainda está disposta a viver ali para fazer reviver a memória dos usos e bons costumes.

Mas, o que talvez chama mais a atenção, neste texto, é a cumplicidade,a partilha,a vida vivida quase em comum entre os animais e as pessoas.Quase como se fossem iguais.Como se houvesse por ali um dialogo constante e vivo que, neste caso, se fazia e era vivido, dia dia, com saborosos e sociaveis porcos.
Como se todos precisassem uns dos outros.Como se todos tivessem um papel e um destino comum.Como se todos tivessem pela vida adiante de se aceitar e gostar uns dos outros.Como se o mundo, em Terena, fosse também ele mais um exemplo de uma fábula. Daquelas que todos gostamos de ouvir e saborear.Quando éramos meninos.Ou, quando mais velhos, nos pomos a pensar e a recordar,o que era o mundo que nos criou e o imaginário do mundo em que aprendemos com emoções sentidas, a ser gente.

Helder,por favor, continua a acreditar que podes escrever (neste Blog ou até num jornal concelhio) mais e ainda melhor.E,a seu tempo, de outras coisas.Os augúrios são bons.

Força nessas canetas.

Um abraço


António Neves Berbem