quinta-feira, 23 de abril de 2009

PÁGINA CULTURAL - (PELO DR JOSÉ ALEXANDRE LABOREIRO)

A Mente Livre

« a filosofia ensina a actuar, não a tagarelar »
Séneca (in “Cartas a Lucilio”)


Al Gore, denunciando os recentes atropelos à Democracia Americana, diz-nos (in “O ataque à razão”): “A crença dos nossos Fundadores na viabilidade da democracia representativa assentava na confiança que tinham na sabedoria de uma sociedade civil bem informada, no sistema engenhoso de freios e contrapesos, e na sua convicção de que o primado da razão é o soberano natural de um povo livre”. Al Gore constata estar a viver-se na América, aquilo que Jurgen Habernas chama a “refeudização da esfera pública” – enquanto sistema em que a riqueza e o poder estão intimamente ligados e em que o conhecimento está vedado à grande generalidade das pessoas que, por essa razão, se sentem impotentes.
Este cercear das liberdades na História recente dos Estados Unidos (mercê em grande parte, da mercantilização dos “média” e do primado da politica espectáculo que não conduzem à reflexão) fez-me ocorrer (por associação de ideias com o “marcantismo”) o largo período (de séculos) castrador de mentes progressistas culturalmente carregadas de desejo e de sonho, empenhadas na aproximação e na voluntária adequação do nosso país à cientificação e inovação, na transformação, do destino geral de Portugal, de molde a acompanhar a Europa rica, culta e progressista – momentos históricos de desalentos vividos por Portugal, desde os finais do século XVI e que progrediram numa evolução que é interrompida pela auréola de esperanças da Revolução de Abril.
Ao longo destes 400 anos de história pátria, os portugueses (alimentados pelo défice de tolerância de debate, de abertura, de largueza de visão, de espírito abrangente) foram-se pesadamente devorando uns aos outros, destruindo-se e esmagando-se: católicos contra protestantes, jesuítas contra iluministas, jacobinos contra eclesiásticos, monárquicos contra republicanos, salazaristas contra democratas; mentalidade deformadora que desemboca numa idiossincrasia, a que Miguel Real chama “complexo canibalista” – que segundo o mesmo autor “alimenta o desejo de cada pai de família portuguesa se tornar súbdito do chefe ou do patrão, familiar do Tribunal da Inquisição, sicofanta da Intendência geral de Pina Manique, informador de qualquer uma das várias policias politicas, carreirista do Estado, devoto acrítico da Igreja, bisbilhoteiro do interior das casas dos vizinhos, denunciador ao superior hierárquico”.
Entretanto, ao longo deste amplo complexo histórico, as relações entre o intelectual português e as instituições socialmente dominantes, eram vividas num sofrimento existencial e na sua obra, habitualmente criada em condições pungentes ou dramáticas – enquanto criando uma obra alternativa à visão social e politica dominante, é causadora da sua perseguição, do seu exílio mesmo, do seu desencanto em relação ao país-começando em Camões (poeta pobre, condenado pelo Estado, perseguido pela Igreja detentor de saber “de experiência feito”- não tendo frequentado a Universidade, migrante do Império, adverso às elites reitoras do Poder), continuando com Sá de Miranda (desiludido com a corte e a nobreza senhorial), a que se segue um grande número de poetas, escritores, cientistas, artistas, investigadores: Garcia da Horta; Damião de Góis, Francisco Sanches, Ribeiro Sanches, Luís António Verney, D. Luís da Cunha, Bocage, Marquesa de Alorna, Cavaleiro de Oliveira, Antero, Eça, Soares dos Reis, Herculano, Manuel Laranjeira, Teixeira de Pascoais, Sampaio Bruno, Adolfo Casais Monteiro, Teixeira Gomes, Fidelino de Figueiredo, Rodrigues Lapa, Fernando Pessoa, Vieira da Silva, Paula Rêgo, Jorge de Sena, Rui Luís Gomes, José Augusto França, António Sérgio, Raul Proença, Jaime Cortesão, Fernando Gil, Agostinho da Silva, Miguel Torga, (entre muitos outros) – intelectuais que se refugiaram no país (criando a sua “corte na aldeia”) ou exilaram-se no Império ou no estrangeiro, ou foram mesmo exilados compulsivamente pelo Poder.
A nossa História teve, no seu percurso várias convulsões (1820, 1910, 1926, 1974), que trouxeram esperanças – cada uma delas acalentando uma “Hora” de transformação no progresso económico, social e cultural. Desejamos que a revolução de Abril tenha sido definitivamente (com a integração na Europa) a ambicionada despoletadora de uma vida nova, modernizada, numa cultura de diálogo e de confronto, centrada no universalismo da dignidade da pessoa humana (encerrando as portas aos mitos sebastianistas): esperança inspiradana citação de Salvador Espriu “Umas palavras mergulharam-nos no negro poço de espanto. Outras palavras erguer-nos-ão numa nova claridade”.
Bem-vinda, a Democracia.

José Alexandre Laboreiro

(Publicada na Folha de Montemor em Abril de 2008, transcrita com a devida autorização do Autor)

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