segunda-feira, 2 de março de 2009

CRÓNICA DE OPINIÃO DA RÁDIO DIANA/FM

Transcrição da crónica diária transmitida aos microfones da :http://www.dianafm.com/

António Revez - A ponte

02-mar-2009
Estive com os meus formandos, a pedido deles, no passado dia 26 de Fevereiro, na inauguração da ponte internacional do Baixo Guadiana, no Pomarão, concelho de Mértola. A cerimónia foi o habitual, os discursos da praxe, os recados à oposição, as lambidelas ao governo, um aceno aos empresários, um piscar de olhos ao eleitorado fiel e ao hesitante, as expectativas promissoras, o futuro radioso, e um abraço demagógico ao povo, que tanto merecia aquela ponte, que tanto lutou por isso, que tanto protestou para que ela fosse uma realidade, e blá, blá, blá.
Mas enquanto os discursos do presidente da câmara municipal de Mértola e do governador civil de Beja, primaram pela politiquice ostensivamente pré-eleitoral, com recorrentes puxões de orelhas e referências acintosas aos que estiveram contra a construção da ponte ou manifestaram reservas em relação ao impacto ambiental da mesma, o discurso da representante das autoridades espanholas, salientou, antes, o valor cultural, simbólico e humano do que significa uma ponte que une ainda mais e melhor duas regiões vizinhas com emblemas nacionais diferentes. De facto, o espaço transfronteiriço sempre ou quase sempre teve uma singularidade cultural que transgrediu as fronteiras que a diplomacia, os interesses estratégicos dos Estados, e a mentalidade nacionalista, estabeleceram na forma de arame farpado, muros de betão, cordões de policiamento, vigilância política, intoxicação cultural e preconceitos ideológicos. As povoações de fronteira desafiam tantas vezes as barreiras das convenções político-administrativas e a conveniência das demarcações apologéticas, postas na polaridade “nós”-“eles”, “amigo”-“inimigo”, e semeiam e reforçam laços de convivialidade, de interacção económica, de entrosamento cultural, de contaminação afectiva e matrimonial, que pouco a pouco vão dissolvendo a fronteira como lugar de cisão ou separação entre dois mundos distintos. Mas que distinções têm sobrevivido no tempo entre as gentes de Pomarão e de El Granado? Que fronteiras subsistiram entre os que aprenderam a proximidade cultural e a boa vizinhança? Naquele dia em que se inaugurou a ponte internacional do Baixo-Guadiana, as multidões de um e do outro lado riam-se da mesma maneira, olhavam-se com a doçura do bom trato, e apertavam as mãos naturalmente como se fosse um dia exactamente igual aos outros. Mas não era. Era o dia da ponte, e os mais velhos recordavam em voz alta, para se fazerem ouvir, os tempos em que passar para o outro lado, ou regressar do outro lado, trazia consigo a preciosidade da vida e a perigosidade da morte. A ponte derramou suspiros nas almas que só viram dificuldades onde naquela hora se sublinhavam facilidades. As facilidades da ponte, que põe em continuidade livre um espaço que pertence cada vez mais a quem o faz seu no coração e o faz de todos na fraternidade. É isso uma ponte boa, como aquela é. E depois, no almoço, a ponte trouxe todos a porem o estômago em convívio, e um estranho perderia todas as apostas que fizesse sobre quem era português e quem era espanhol. Porque na confusão cruzada de idiomas, dialectos e regionalismos, a linguagem comum era a dos afectos, partilhados.

Sem comentários: