terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

RECORDAR O PASSADO - PELO HELDER SALGADO

(Continuação)

AS LOJAS - santuário do entendimento -.

Vou, em Terena, referir apenas duas lojas. A do senhor Torcato, que tinha muitos filhos.
As filhas dedicadas à costura ensinavam as raparigas da Vila.

O Torcato, alto e seco, usava uma bata cinzenta, por cima do fato, quando lhe dava o vento enchia e, nós gaiatos, dizíamos que era um papagaio.
Esta loja está na mesma, é hoje do Nacica Neves, depois de ser do Inácio, o Marreca.
È loja e café/taberna.
E agora? O mais difícil, a dos meus pais, José Salgado e Cesaltina Galrito.
Porquê? Se a vida tem que continuar, passar além da saudade, sobrepor-se aos desgostos.
Parece que me vou destituir de tudo o que sou, de tudo o que tenho. Ser novamente acarinhado, voltar ao berço, voltar a sorrir, ser novamente menino.
A loja foi, efectivamente, o meu berço, as freguesas as minhas amas e até tive “mãe de leite”.
Foi por detrás das tábuas não pintadas do balcão, que comecei a apreender a ser homem.
A conhecer o bem e o mal, as andanças e as agruras da vida.
Nela forjei ou me forjaram e, eternamente grato estou por isso, a minha maneira de ser e de pensar. O homem que sou, o carácter que tenho, à loja o devo.
Fielmente grato, estou aos homens honrados da minha terra, àquelas mãos calejadas pelo rabo da charrua e do varejão da azeitona, por andarem comigo ao colo, por me ensinarem, não só a andar, mas a ser homem.
A loja está, apesar de fechada, na mesma e ninguém da família fala em desmanchá-la.
Entrem, por favor, visitem-na comigo, estou convicto que ficarão contentes.
Nos comentários terão oportunidade de manifestarem o seu agrado ou desagrado.
Talvez o seu interior tivesse sido o palco onde os nossos pais dialogaram e se entenderam.
Não hesitem estejam a vontade.
Uma verdade vos digo, a loja foi o meu primeiro mundo.
Compunha-se, interiormente de um balcão corrido, estantes envidraçadas para as roupas, cacifos para o açúcar e leguminosas, então vendidas a granel e à medida.
Duas portas de acesso e montra ao meio.

Dei à dias com o livro, o célebre Livro do “Assente”, que data de 1958 e outro de amostras de fazendas de 1ª e 2ª classe, com a data de 1920 e uma onça de tabaco Duque, das grandes. Como guloseimas o famoso rebuçado Santo Onofre, com a fotografia.
O livro impresso para o efeito, tinha 32cm de comprimento, 10 de largura e 2 de espessura, pautado e com 35 linhas.. O trabalho escassiava, tal como agora e, quando se ganhava mais algum dinheiro, era nas épocas sazonais, ceifa, apanha de azeitona e monda, esta mais para as mulheres.
Era frequente ouvir-se dizer, “nesta aceifa vou ganhar para um capote”.
Normalmente as pessoas trabalhavam nos montes.
Os carreiros, eram contratados ao mês e recebiam a “soldada” à semana ou mensalmente. Iam “à roupa” como então se dizia, apenas aos domingos.
O comerciante exercia uma acção social, na leitura da correspondência, na feitura de abaixo-assinado ou na cedência do carimbo e até eram conselheiros.
O fiado era, por vezes, a único meio de obter alimentos.

Helder Salgado
14-02-2009.


Leia amanhã o final : Que diferença entre o fiado e o cartão de crédito ao consumo?

2 comentários:

Anónimo disse...

Lembro-me de ainda criança algumas vezes ter ido á referida loja em companhia dos meus tios (mais da minha tia Rosária)tudo o que o Helder aqui diz não desapareceu assim á tantos anos...Mas já deixou bastantes saudades.Obrigado amigo Helder por nos lo lembrar.
Claré.

Anónimo disse...

Helder

Por esta vez,digo-te, que o texto sobre Terena, ainda está melhor,mais profundo e mais fiel do que o texto que escreveste sobre as Lojas do Alandroal.A idéia é excelente.
E até podia dar em Livro.

Gentes que somos (como tu és),de facto,não podemos e não queremos fugir às nossas verdadeiras e mais profundas origens.Conhecê-las e revivê-las, é mais do que meio caminho andado para continuarmos a ser Homens fiéis aos que nos amaram.E aos que nós amamos.Nas terras,Terena ou Alandroal, que nos viram nascer e nos ensinaram a aprender a ser homens.

Nada no usado livro rectangular de "Fiados"diminue a dura existência daqueles que com toda a dignidade,muitas vezes somente trabalhavam... para ir ficando cada vez mais pobres.

Assim foi.Mas, às vezes, até parece que as coisas assim mesmo começam a repetir-se... com tanto desemprego à mistura.

Pelo que,Helder, e como tu muito bem o fazes e escreves, há que ter sempre a memória em vigilia permanente.Tanto por respeito ao passado.Como pelos avisos que o presente nos apresenta e o futuro não pode ignorar.Ou esquecer.

E se a política tiver que ser para aqui chamada, só temos que dizer que na vida,as Pessoas, são sempre a parte mais importante e sensível da própria realidade social.Em toda a sua dimensão.

Jamais merendo ser enganadas.Jamais merendo ser apenas usadas.Seja apenas para trabalharem ou para votarem.Seja com quaisquer outras intenções e perversas finalidades.Há valores a atitudes que jamais podem ser descartadas.

Um abraço


António Neves Berbém