terça-feira, 3 de junho de 2008

PÁGINAS SOLTAS - (PELO DR JOSÉ ALEXANDRE LABOREIRO)

(Publicado na Folha de Montemor em Fevereiro 2008)

Montemor e a resistência popular às invasões francesas

«Não foi enterrado o “Zé Povinho” com o génio do seu criador, que é destino do que o povo é e torna seu a eternidade: outros artistas inspirados multiplicaram no espelho do tempo a sua imagem e lhe deram nas horas supremas da vida do nosso Povo caracter e significação.»

Joaquim Namorado
(in “Vértice” – 1976)


Estão decorrendo as comemorações nacionais das invasões francesas (1807- 1810):invasões que trariam os gérmenes da Democracia moderna, mas que controversamente - funcionaram como uma ocupação (com terror, violações, saques, mortes, vinganças ) do território português.
Curiosamente, seriam as classes populares que - no pais inteiro - mais se distinguiriam na resistência à ocupação - como deixaria registado o general inglês Napier (que, integrado nos efectivos britânicos, participara na libertação do território português): “Veementes na cólera e estimulados pelas exortações dos seus padres, (os populares) precipitam-se das montanhas como homens privados da razão e muitos irrompiam furiosamente pelos batalhões franceses, onde eram mortos ... outros rodeavam as montanhas e, caindo sobre a retaguarda, matavam dezenas de soldados franceses tresmalhados.”
Num dos poucos livros editados, a assinalar a efeméride a ser comemorada, Vasco Pulido Valente fala-nos, quase epicamente, da coragem e determinação popular na defesa do território. Escreveu ele: “Quase invariavelmente, nos lugares de onde partiu a sublevação nacional contra o ocupante foi o “povo” que tomou a iniciativa. O “povo”, isto é: pescadores, trabalhadores rurais, camponeses, oficiais mecânicos, e um ou outro comerciante pobre ou ínfimo empregado público. Mas no meio deles aparece o ocasional alferes, tenente ou capitão de ordenanças ou milícias, o ocasional religioso (secular ou regular) e até, em muitos poucos casos, o ocasional magistrado e o raro senhor local, ornado ou não com o prestigioso título de bacharel. Nunca é destas personagens que vem o gesto decisivo de revolta. Acontece que, reconhecendo a “ebulição do povo”, se arranjaram no último momento para se por a seu lado e, se possível, à sua frente.”
A campanha de Loison (general francês da 1ª invasão) no Alentejo teria sido a mais brutal da invasão de 1807/8 - obrigando os populares alentejanos o exército francês a marchar em território totalmente hostil: privando os soldados franceses de víveres e água, fugindo à sua aproximação com toda a espécie de mantimentos (em breve, os franceses ficaram sem vinho, água, pão e carne), indicando - quando presos e obrigados a falar por soldados franceses - nascentes e poços de águas estagnadas ou deliberadamente envenenadas (para as quais muitos soldados franceses, delirando de sede, se precipitavam a bebê-las), e eliminando bastantes retardatários do exército ocupante) surgidos com o cansaço, as doenças, as privações) - mesmo, que muitas vezes, a escassos metros da coluna inimiga.
Foi neste contexto que Loison (enviado por Junot para esmagar uma revolução anti-francesa em Évora) foi alvo de uma emboscada em Montemor (28 de Julho de 1808), junto a Ponte de Lisboa, feita por grupos de populares e milícias da vila - que obrigaram o exército francês a recuar. Recompostos e furiosos, os franceses saquearam os conventos e igrejas de Montemor, bem como habitações particulares - havendo mesmo notícias de uma relação de pratarias roubadas no Convento dos Agostinhos de Nossa Senhora da Conceição (que incluía candelabros, patenas, cálices, crucifixos, sacrário, jarrões, etc.. Relacionada com este saque à vila, recordemos uma lenda (transmitida nos anos 50 no então Rádio Clube Português, por Gentil Marques), que nos dava conta de os soldados franceses tentarem levar para frança a bela imagem de Nossa Senhora da Conceição (hoje ainda patente na igreja erigida em sua égide) - seduzidos pela beleza artística que a distingue; porém, colocada a imagem numa carreta, que a conduzia monte abaixo, os sinos da igreja começariam a tocar a rebate, sem ninguém os tanger: alertando a população da vila que, conduzida pela devoção à imagem e pelo bairrismo, desbaratou os franceses e recuperaria a escultura a que tanta veneração e afecto tinha.
A 29 de Julho (no dia seguinte, portanto), os franceses apresentaram-se em Évora com mais de 10 000 soldados: dispostos à guerra e, furiosos, à vingança. Os defensores da cidade não temeram a superioridade numérica dos franceses: tendo mostrado uma coragem tal, que só abandonaram os baluartes à ponta de baioneta, obrigando os franceses a ganhar a cidade apenas rua a rua, casa a casa - face ao “fogo terrível” que os franceses sofriam de populares e milícias entrincheirados em telhados, e em torres das igrejas e em janelas.
Julga-se que o número de mortos resultantes dos combates, tivesse sido de 8 000 vítimas. O saque francês foi terrível: não se poupando o ouro e a prata da Sé e do Paço Episcopal, nem o ouro e a prata do museu privado de Frei Manuel do Cenáculo ou de particulares.
Porém, a guerrilha passaria da cidade e vilas para os campos - continuando a combater o invasor (encurralando os franceses a cidade com insuperáveis dificuldades de abastecimento e comunicações, face a uma guerra de usura, que surpreendeu os invasores). Efectivamente, o objectivo estratégico francês de garantir a estrada do Sul não foi cumprido.
Como nos refere Vasco Pulido Valente no citado texto comemorativo, “ao contrário do que é clássico, os rebeldes portugueses não queriam única ou principalmente destruir o exército do invasor: queriam o domínio do território”; território que era português - acrescentamos nós. Na realidade, achamos absurda (por contraditória) a estratégia de difundir ideias (políticas, culturais, sociais, económicas) - por bem intencionadas e generosas que fossem - através da violência, da ocupação, do saque: estratégia gorada mais tarde no século XX, e constituindo um beco sem saída presentemente no século XXI; ou não se aceitará que uma ideia só se vence com outra ideia ?
É bem certo que as ideias da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade) - que acompanharam os soldados franceses - influiriam a Revolução portuguesa de 1820 (que proclamou a Democracia), bem como inspirariam a Implantação da República (1910); contudo, não seria curial através da violência (mas mercê da pedagogia do desenvolvimento do espírito crítico - como nos diz António Sérgio) que se disseminariam as ideias democráticas. E os portugueses (sobretudo o povo e a burguesia) não aceitaram o imperialismo ocupante: e reagiram, expulsando o invasor ao fim de mais de três anos de guerras (que custariam vidas, bens, fomes e angústias).

José Alexandre Laboreiro

(Al Tejo agradece a colaboração da Folha e Montemor)

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