
Crónica de Hélder Rebocho
13-Feb-2008
Sendo Portugal um Estado de Direito Democrático, a justiça assume particular importância como pilar de sustentação dos direitos e deveres dos cidadãos. Por isso a forma como os governos tratam os assuntos da justiça deve ser uma preocupação não só dos juristas, mas de toda a sociedade, porque é um sector que diz respeito a todos e a todos deve interessar. Que a justiça necessita de reformas, ninguém tem dúvidas. Que o governo tem introduzido reformas, parece evidente, basta olhar para a proliferação legislativa que caracterizou os últimos tempos.
No entanto reformar nem sempre é sinónimo de melhorar, porque qualquer reforma, seja qual for, deve ser positiva, deve consistir na introdução de alterações que eliminem ou corrijam o que não está bem. À semelhança do que tem acontecido noutros sectores da vida do país, a fúria reformista do nosso governo não consegue atingir os aspectos fundamentais da justiça, de tal modo, que as suas medidas nada trazem de melhor e em muitos casos apenas vêm piorar aquilo que já estava mal. O último absurdo legislativo surgiu com a portaria nº 10/2008 de 3 de Janeiro que veio introduzir alterações à Lei do Apoio Judiciário. O regime do Apoio Judiciário existe para protecção dos mais desfavorecidos, garantindo o cumprimento do princípio constitucional, segundo o qual, a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses, sem prejuízo da insuficiência de meios económicos. O apoio judiciário permite aos cidadãos mais desfavorecidos beneficiarem da isenção total ou parcial do pagamento de taxas de justiça, demais encargos com processos judiciais e ainda isenção do pagamento dos honorários aos advogados ou solicitadores nomeados para os representar. A remuneração destes profissionais forenses é assegurada em ultima instância pelo Estado, que paga os honorários fixados em tabela, consoante o tipo de processo e de intervenção. O sistema vinha funcionando de uma forma muito simples. O advogado ou solicitador era nomeado patrono ou defensor do cidadão que demonstrasse carência de meios económicos para suportar as despesas inerentes ao processo judicial. Findo o trabalho, decorridos alguns meses, normalmente muitos, o profissional forense recebia o valor dos honorários fixados em tabela - que estavam longe de ser chorudos, pois raramente atingiam os 300€. ou 400€. por cada processo em que era nomeado - acrescidos das despesas que comprovadamente tivesse efectuado. Note-se que estes honorários eram substancialmente inferiores àqueles que os mesmos profissionais forenses cobram por idêntico serviço, quando prestado fora do âmbito do apoio judiciário, representando um contributo dos advogados e solicitadores para os mais desfavorecidos economicamente. Com o novo regime, instituído pela referida portaria, o governo deu um golpe fatal no apoio judiciário, prejudicando os cidadãos que dele necessitam e desconsiderando os profissionais forenses que o sustentam. A partir de agora, os advogados e solicitadores que intervenham no apoio judiciário vão ser nomeados para lotes de processos, recebendo pagamentos fixos do Estado com periodicidade bimestral, trimestral, quadrimestral ou semestral, em quantitativo proporcional ao número de processos que lhe sejam distribuídos. Acresce que tais pagamentos englobam honorários e todas as despesas realizadas, ficando o estado desobrigado de efectuar qualquer outro pagamento. Contas feitas, cada advogado ou solicitador que intervenha no sistema de apoio judiciário irá receber a “choruda” quantia de 6,40 €. mensais por cada processo e dali tem que retirar a sua remuneração e custear as despesas que sejam necessárias. O resultado é óbvio, aquela quantia nem dá para pagar as despesas, pois bastam meia dúzia de telefonemas e umas cartas para esgotar aquele valor, a partir dai é pagar para trabalhar. Se a tudo isto juntarmos o facto de muitos advogados e solicitadores em início de carreira terem rendimentos inferiores aos beneficiários do apoio judiciário, conseguimos compreender melhor a inqualificável aberração legislativa e social, que o governo deu à luz. Se o nosso governo pretende desonerar o Estado das suas obrigações que o faça e que o assuma, sem tentar imputar aos bolsos de quem trabalha os custos dessas obrigações. Se perguntarmos aos Portugueses quantos estão dispostos a trabalhar de borla, poucos responderão afirmativamente. Se perguntarmos quantos estão dispostos a pagar para trabalhar, responderão negativamente tantos, quantos os advogados e solicitadores que estarão disponíveis para o apoio judiciário. Caso o governo não reconheça que, mais uma vez, legislou mal, deverá assumir que criou um novo conceito de justiça em Portugal, onde só cabem os mais favorecidos economicamente.
Hélder Rebocho 13.02.2008
Crime é crime
14-Feb-2008
Já passaram cinco anos. Os cinco homens e as duas mulheres acusados de terem agredido e humilhado uma estudante da Escola Superior Agrária do Instituto Politécnico de Santarém vão finalmente começar a ser julgados. É a primeira vez que tal acontece apesar de todos os anos as “praxes” académicas vitimarem centenas de estudantes que se sujeitam às humilhantes práticas que os mais velhos entendem como auxiliares da plena integração dos recém chegados.
No caso que agora vai a julgamento a jovem foi colocada de joelhos, com a cabeça no chão e as mãos debaixo dos joelhos, foi insultada e esfregada com esterco de porco, entre outros mimos, imagino eu para grande gáudio dos denominados veteranos. Alguns defenderão que são apenas os estudantes a cumprirem uma qualquer tradição que deverá ser mantida e que não serão estes excessos que alterarão o seu carácter integrador nos neófitos nestas coisas dos estudos universitários. Em declarações a um jornal diário alguém terá afirmado que os arguidos nada terão feito de mal apenas terão actuado no sentido do respeito pela tradição. Estou em desacordo com a primeira parte desta afirmação, a ser verdade o que foi relatado os jovens terão cometido os crimes de coacção e de ofensas à integridade física qualificada. Quanto à segunda parte já estou plenamente de acordo. De facto parece terem actuado no sentido do respeito pela tradição, o que levanta um pequeno problema. É que o respeito pela tradição parece implicar o cometimento de crimes mais ou menos graves contra cidadãos particularmente indefesos e à mercê de um sistema organizado em respeitáveis comissões de “praxe”. A ser assim, parece-me que a prática anacrónica de uma suposta tradição eivada de um reacionarismo atroz deve ser abolida por, em primeiro lugar, atentar contra a dignidade da pessoa humana. Muitos defendem que não se pode pegar num lamentável exagero para atacar a suposta tradição, tentando temperar essas actividades através de códigos e regras que teriam a pretensão de tornar razoável o que é destituído de razoabilidade. A humilhação pública nunca foi processo de integração de ninguém em lado nenhum. As tradições, se é que é disso que se trata, têm de ser abandonadas no momento em que põem em causa valores que as sociedades conquistaram para o seu pecúlio civilizacional. Na nossa cidade ainda não tivemos casos da gravidade do que agora vai a julgamento, mas não é por isso que não começam a surgir movimentos de cidadãos indignados com o triste espectáculo de grupos de jovens amarrados uns aos outros, de cara e corpo pintados, cantando idiotices diversas e algumas obscenidades. Ou eu não estou bem a ver o filme ou um grupo de jovens a fazerem o que dois ou três lhes impõem é exactamente o contrário da tão proclamada irreverência da juventude. Esperemos que este julgamento traga de novo para a praça pública a discussão em torno do assunto. E já agora, para que fique claro, não sou apologista da proibição das praxes por qualquer decreto governamental. Sou apologista da recusa à sua sujeição por parte dos que entram no mundo universitário, numa espécie de levantamento insurreccional contra as práticas humilhantes que lhes pretendem impor. Recusem estatutos de veteranos, padrinhos e quejandos e exijam ser tratados como iguais pelos seus pares desde o primeiro dia em que entram no mundo do ensino superior. Ora aí estaria uma atitude verdadeiramente irreverente.
Até para a semana
Eduardo Luciano
Sem comentários:
Enviar um comentário