sexta-feira, 3 de novembro de 2006

CRÓNICAS DE OPINIÃO DA RÁDIO DIANA/FM

Uma deferência da: http://www.dianafm.com/

É difícil chegar a ser pessoa
António Leitão

Sexta, 03 Novembro 2006
Num grande romance com perto de 100 anos, “O homem sem qualidades” – de Robert Musil – o herói chama-se Ulrich, um jovem que se descobre sem qualidades, no sentido de não ter atributos próprios, desde bens materiais até um carácter com virtudes definidas, como prudência, generosidade ou sabedoria. Mas também no sentido antigo de areté, que significa excelência de qualquer coisa ou pessoa para os fins a que está destinada. No caso do ser humano, Aristóteles não tinha dúvidas de que o destino é a felicidade. Para isso, o ser humano devia possuir ou adquirir os atributos necessários, incluindo ter um estatuto social e económico que lhe permitisse dedicar-se completamente à vida pública, à política, que era na altura a forma de vida considerada mais excelente.
Voltando a Ulrich, apenas com o seu esforço e a sua persistência, ele vai tentar desenvolver os atributos que deseja ter, mas sem qualquer garantia de o conseguir num mundo tão confuso, em rápida mudança. Necessita de relacionar-se com outras pessoas, de acordo com as suas conveniências, mas sem que essas ligações sejam muito sólidas, para poder desatá-las rapidamente se as circunstâncias mudarem. Como sempre mudam.
A história de Ulrich antecipa a vida do homem e da mulher actuais, cada vez mais ligados em múltiplas relações de que podem prescindir a qualquer momento e sem grande problema e cada vez menos comprometidos em relações pessoais sólidas, para toda a vida, como dantes.
Em poucas palavras, ser livre tornou-se o principal desejo de um ser humano no Ocidente, a primeira condição para ser feliz – muito ao contrário dos tempos antigos, em que não se tinha tanta esperança na liberdade e se acreditava mais na procura de virtudes e de atributos materiais como caminho para a felicidade.
Dantes, uma pessoa construía-se de acordo com normas da sua comunidade, a que não ousava desobedecer; se o fizesse, a vida mudava radicalmente para pior, porque dificilmente era perdoada em vida. Hoje, o perdão é a regra – e o difícil é, como Ulrich, encontrar um caminho no meio da liberdade. Ou seja, ser perdoado não quer dizer ser salvo. A salvação que nos interessa a todos – da angústia da perda e da morte – não está na despenalização dos nossos actos.
Resta ao ser humano avançar na procura de sentido para a vida: “liberdade para quê?”, “como devo eu exercer a minha liberdade?”. Muita gente não saberia hoje responder decentemente. É como ter um belo automóvel mas não saber o destino. Para um ser humano, preparar uma boa resposta é uma tarefa para a vida. Sob pena de, também ele, nunca chegar a ser verdadeiramente uma pessoa. Mesmo que acumule muitos atributos.

Sem comentários: