Crónica de António Leitão
Lawrence é um economista, assessor do ministro das finanças inglês, que se senta um dia na mesa de café de uma rapariga sozinha, de aspecto suave e tranquilo. É um homem perto dos 60 anos, tímido e solitário, infeliz mas com “música no coração” (que é uma forma poética de dizer que, na sua austeridade, havia uma falta sentida: de entendimento amoroso e de bem-estar na tensão entre o seu conhecimento profissional dos males do mundo e a realpolitik a que estava sujeito). Tinha um sonho recorrente: aparecia um dos míticos membros dos Rolling Stones e convidava-o para tocar com eles; mas ele não podia, estava agarrado por responsabilidades numa vida que não controlava.
Ao fim de alguns encontros, sem um mínimo de cautela, convida a adorável rapariga para o acompanhar à capital da Islândia, a uma cimeira dos G8 em que a Grã-Bretanha ia ter um papel dominante. Aí, ela revela-se, escandalosa, como uma radical anti-globalização, conseguindo perturbar as consciências dos presentes ao confrontá-los com realidades como, por exemplo, que morre 1 criança a cada 3 segundos por pobreza extrema.
Os acontecimentos levam ao pedido de demissão de Lawrence mas também a um volte-face nas decisões finais da cimeira, com uma extraordinária e imprevisível reformulação da política dos países mais ricos do mundo, para acabar com a pobreza extrema. Na discussão em plenário, o ministro das finanças inglês tinha feito uma declaração impetuosa: que não escolhera uma vida dedicada à política para conservar situações de injustiça social e que aquele era o momento ideal par marcar a diferença. Tudo acaba em bem, inclusive para Lawrence – que parece ganhar bastante em termos pessoais, com uma confiança em si próprio que aparentemente nunca tinha tido.
Evidentemente, a história deste filme é uma espécie de conto de fadas. Na realidade, os representantes G8 não estão mandatados para esquecer os interesses dos povos que representam; por outro lado, é consensual que qualquer política de apoio a Estados pobres e corruptos tende a enriquecer a sua elite dominante; mas há um ponto radical que fica marcado: a excessiva desigualdade entre seres humanos é insuportável. Shame on you, disse “A rapariga do café”. Ou seja, tenham vergonha aqueles que não se importam com a desigualdade extrema entre seres humanos.
Este filme traz-nos a uma questão central dos nossos dias: o comunismo falhou como procura da felicidade dos povos, mas o neo-liberalismo, ao promover as iniciativas individuais com um mínimo de restrições e apoiando-se em forma sofisticadas de corrupção – é preciso dizê-lo frontalmente – agrava as grandes desigualdades entre pessoas e entre povos e é, também já, um falhanço na busca de felicidade global. Continua a ser necessário um aparelho de Estado que cobre impostos com justiça e eficácia e que tenha competência para os usar na manutenção de uma relativa justiça social, onde os falcões não engordem demasiado com as pombas que comem ao pequeno almoço.
Voltamos a uma questão fundamental: hoje, como sempre nos últimos 2 milénios, o pensamento europeu está na berlinda. Num mundo marcado pelas ideias, pela filosofia da Europa, desde o tempo dos gregos, do império romano e do cristianismo, a Europa continua a ser o motor – vontade e intensidade – para orientar o mundo. A transferência imperial para os Estados Unidos da América falhou e não faz sentido criar agora uns Estados Unidos da Europa, sucedâneo enfraquecido e sinal de provável desistência ética.
Ser europeu hoje parece ser assumir a universalidade da espécie humana, pensar de forma ética em termos globais. Depois do que se aprendeu no século XX, evitar grandes idealismos. Sem esquecer os interesses económicos, procurar integrá-los num projecto político de entendimento mundial. A globalização é irreversível (note-se que começou com os descobrimentos portugueses), mas não pode ser demasiado acelerada por interesses económicos gananciosos. O desenvolvimento do cérebro humano não acompanha essas pressas e um tal desequilíbrio activa potentes pressões emocionais e pode levar a catástrofes. Para as evitar, o “mercado livre” tem de ser regulado politicamente.
Vai talvez neste sentido o discurso do 5 de Outubro do nosso Presidente da República, ao apelar a uma “ética republicana”. É magnífico que o Prof. Cavaco Silva tenha aprendido, desde os anos 80, que um país corrupto leva a um pensamento corrupto e a uma educação corrupta das novas gerações e que essa é a principal causa de uma sociedade doente. 25 anos mais tarde, o Prof. Cavaco Silva tem uma grande tarefa à sua frente para relançar Portugal (de uma forma bem demarcada do movimento de empresários liberais designado Compromisso Portugal, que cheira demasiado a oportunismo). Foi-lhe dada uma 2ª oportunidade para marcar a história do seu país e talvez da Europa a que pertencemos – o que é raro e precioso.
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