EDUARDO LUCIANO
CRÓNICA QUE NÃO ERA PARA SER
No início da semana, a propósito de um dia internacional para a
erradicação da pobreza, decidi que a crónica de hoje seria sobre esta coisa
perfeitamente descabida que é o facto do sistema que promove a pobreza, em
função da necessidade de criar riqueza para uns quantos, instituir um dia do
ano para celebrar a necessidade da erradicação da pobreza.
Será qualquer coisa como os amantes das touradas instituírem o dia
da erradicação do sofrimento dos touros, ou os amantes da caça instituírem o
dia da erradicação das caçadeiras.
Depois de ouvir a dirigente do CDS e o militante do PSD que é
Presidente da República a usarem as vítimas dos incêndios como arma de
arremesso político, achei que afinal esta crónica deveria ser sobre a falta de
decência de PSD e CDS a armarem-se em defensores das famílias das vítimas,
quando foram os responsáveis durante 40 anos, juntamente com o PS, das
políticas de ordenamento do território, de abandono do interior, de políticas
florestais que promoveram a “eucaliptização” do país, da subserviência aos
interesses da indústria da celulose, do desinvestimento em prevenção, da
ausência de apoios a quem tem por missão prevenir e combater os incêndios.
Acontece
que estou em Vila Franca de los Barros, na Extremadura, a participar na 1.ª Conferência
sobre o sector musical da Extremadura.
Com
tanta coisa interessante, entre contactos e pequenos espectáculos, fui brindado
ontem à noite com um espectáculo de flamenco que me deixou absolutamente sem
vontade de acrescentar mais palavras aos debates sobre a suposta luta pela
erradicação da pobreza, ou sobre quem tem responsabilidades na criminosa onda
de incêndios que matou mais de uma centena de pessoas, cujo único erro foi
estarem no sítio errado à hora errada.
A
apresentação dos “Extremadura Pura” é daquelas coisas que nos conseguem pôr a
pensar em como é essencial preservar identidades culturais e como não tem preço
o investimento público necessário para manter viva a cultura em territórios de
baixa densidade populacional.
Assisti
a uma apresentação onde tudo o que acontece sai do sentimento de quem canta e
toca, sem preocupações maiores de falsas dramatizações ou ajustamentos técnicos
para efeitos especiais.
Tudo corre à flor da pele e ouvir as
vozes de La Kaita e de Alejandro Vega, ou ver o velho El Peregrino a sapatear
como se tivesse 20 anos, transportam-nos para lugares onde antes vivia e
trabalhava gente e onde agora só existem aldeias despovoadas e tecnocratas que
nos falam de falta de escala para que o investimento em cultura possa ser rentável.
São
os mesmos que hoje choram os mortos que resultaram de 40 anos das suas
políticas, que também lamentam a litoralização do país pela ausência de
capacidade de fixar populações em mais de metade do território e que também nos
dizem que produzir cultura no interior é demasiado caro para as outras
prioridades que rapidamente enumeram.
E
pronto, não falei sobre nada que tinha previsto falar. Nem incêndios, nem
erradicação da pobreza, nem identidade cultural em definhamento no interior do
país.
Até
para a semana
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