segunda-feira, 10 de julho de 2017

MEMÓRIAS CURTAS - Prof. Vitor Guita


Ouvimos, há dias, um ditado popular que diz: “Cortiça em Junho, tira-se a punho”.
Proverbial maneira de dizer que estamos no tempo propício ao descortiçamento. Como é sabido, a tirada de cortiça estende-se de Maio a Agosto, mas Junho e Julho são os meses de eleição.
Ds janelas lá de casa, vimos passar diariamente, avenida abaixo, toneladas e toneladas de cortiça m cima de camionetas de carga. As carradas monumentais excedem largamente o comprimento dos pesados, fazendo recear que algumas, meio de esguelha, possam adornar nas curvas do caminho.
De vez em quando, pomo-nos a imaginar para onde irá toda aquela riqueza do montado. Será que a cortiça irá viajar para Marte ou até à Lua, isolando componentes de uma nave especial?
Será que irá vedar alguns dos melhores vinhos do mundo? Ou será que irá revestir o interior de um luxuoso edifício, ser aplicado em malas ou nuns confortáveis sapatos? Poucas matérias-primas conseguem reunir tantas qualidades: leveza, elasticidade, resistência, impermeabilidade, combustão lenta, poder isolante, etc,etc, etc…..
Pela parte que nos toca, com a caloraça que se faz sentir, contentávamo-nos com um simples cocho cheio de água fresca que nos ajudasse a matar a sede. Como diz a canção “a vida é feita de pequenos nadas”.
Depois de algumas hesitações, sentimo-nos estimulados a prosseguir a nossa crónica/memória acerca dos sobreiros e da cortiça. Inicialmente a tarefa afigurou-se-nos difícil, pois não queríamos, nem estávamos habilitados para utilizar uma linguagem técnico-científica. Pretendemos, isso sim, que o estimado leitor se sinta cativado para nos acompanhar nesta nossa aventura pelo montado.
Venha daí.
Antes do mais, socorremo-nos da companhia e dos conhecimentos de um amigo que sabe, como poucos, conciliar a teoria com a prática campestre.
Instalamo-nos no jeep desse nosso amigo e apontamos na direcção de Monfurado. A manhã estava bonita, mas adivinhava-se para a tarde, uma mirra daquelas à antiga. Rumamos directos ao Moinho da Ana e fomos sair, imagine-se, na estrada de Évora, no acesso à Herdade da Fonte do Cântaro. Uma longa e fantástica expedição. Já há mutos anos que não nos perdíamos por aqueles cabeços e caminhos de terra. À medida que fomos avançando, os nossos sentidos iam ficando extasiados com os cenários que surgiam de todo o lado. Um regalo para a vista e também para os outros sentidos. O mesclado das cores, o cheiro do mato, a chilreada dos pássaros, tudo se fundia numa embriaguez de imagens, de cheiros e de sons.
Quantas vezes passamos pelas coisas e não as vemos. Estamos tão acostumados à realidade que nos cerca, que frequentemente a tomamos por uma velha conhecida, sem lhe prestar a devida atenção. Por momentos apeteceu-nos agarrar numa paleta e num pincel e pintar todas aquelas formas e aquelas subtis nuances de verde e castanho.
Conhecemos alguns bons amigos, especialmente dos países nórdicos, que não hesitariam em saltar do jeep e deixar-se seduzir por esta natureza para eles, tão surpreendentemente bela e tão rara. Só céu azul e sobreiros, e o sol a passar por entre troncos e ramagens, criando mágicos efeitos de luz e sombra.
O montado de sobro do Monfurado cobre uma vastíssima área, ao contrário do que acontece noutros lugares, parece respirar saúde. O relevo suave, a apetência dos solos fundos, o clima típico desta zona fazem com que os sobreiros se desenvolvam num ambiente favorável ou até de abastança. Talvez por isso mesmo, devido ao desenvolvimento das árvores, há vozes que dizem que muita cortiça desta zona, tem demasiado calibre, sendo no entanto pouco compacta e, por vezes, preguenta. Seja como for, Monfurado e os seus sobreiros constituem um deslumbramento para o nosso olhar e uma riqueza inestimável, quer no ponto de vista económico quer do ponto de vista ambiental.
O poeta António Gedeão escreveu um dia que não há duas folhas iguais em toda a Criação. Também aqui, a aparente monotonia e uniformidade do montado esconde uma enorme variedade de forma e de cores das árvores. É possível encontrar jovens chaparros vestidos, de alto a baixo, de cortiça virgem, à mistura com sobreiros adultos, e troncos robustos e braços mais ou menos retorcidos. Os castanhos escuros dos troncos cobertos de cortiça alternam com os tons mais claros das árvores que foram descortiçadas há menos tempo. Além disso a mesma árvore pode ainda apresentar tonalidades castanhas diversas, se a cortiça for tirada às meças, em anos desencontrados. Os algarismos inscritos nos sobreiros não deixam enganar.
O olhar experiente do nosso companheiro foi-nos alertando para aspectos que, de outra forma, nos escapariam. Parámos na estrada irregular e poeirenta para observar uma ou outra árvore centenária, de porte verdadeiramente impressionante. Percebemos melhor porque razão, na Antiga Grécia os sobreiros eram tão venerados como símbolos da Honra e de Liberdade. Mais à frente, quase na berma da estrada, detectámos um sobreiro com uma volumosa bolha no tronco, fruto de uma machadada mais profunda de um tirador. Muito provavelmente dali irá sair, mais tarde, um cocho de cortiça. Passados alguns metros, o lado esquerdo, deparámo-nos com uma zona de montado pastoreada por um rebanho de vacas. Mau augúrio para as árvores. O pastoreio do gado bovino é considerado, entre outras razões, um dos inimigos dos sobreiros. A necessidade que os corpulentos animais têm de se coçar de encontro às árvores acaba por destruir os jovens e frágeis chaparros, impedindo a renovação natural do montado.
Noutros tempos fazia-se periodicamente a exploração cerealífera dos terrenos e, regra geral, só a ovelha e o porco preto costumavam ter direito a pastorear debaixo dos sobreiros. Os suínos preferiam os frutos da azinheira, mas os do sobreiro, embora menos doces, também não eram de desperdiçar. Quem quisesse saber onde estavam as melhores bolotas, bastava ver para onde os porcos corriam em primeiro lugar.
Quase a terminar a viagem, já m Fonte do Cântaro, não muito longe da estrada, o nosso guia quis mostrar-nos um exemplo de como se pode conseguir a renovação do montado, mesmo com animais ali por perto. Ele próprio se tem empenhado nessa tarefa.
Esta nossa rota dos sobreiros e da cortiça aproximava-se do fim. A hora do almoço estava ali à porta e afigurava-se que íamos ter uma pavorosa tarde de calor. Ficou tanto por ver e por dizer.
Teremos de voltar inevitavelmente a este tema, logo que se proporcionar. Faltou falar dos tiradores de cortiça e de tantos outros aspectos relacionados com este assunto tão apaixonante.
Até um dia destes
Vitor Guita
Junho 2017



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