sexta-feira, 7 de abril de 2017

REEDITADO

Relembrando os quase 14 anos de existência deste espaço e os conteúdos e colaboradores do mesmo, alguém trouxe à baila os textos aqui divulgados vai já para meia dúzia de anos, versando pessoas e factos que ficaram na história, relatados pelo Hélder Salgado.
Alvitrou-nos esse amigo que muitos deles seriam merecedores de voltarem a ser reeditados, não só pelo pitoresco do conteúdo como também pelo tempo decorrido desde que foram pela primeira vez dados a conhecer.
Sugestão que mereceu a nossa total concordância.
Assim, e para que não caiam no esquecimento vamos esporadicamente relembrar algumas das histórias do Hélder:
                                   A MORCELA DO CARITAS                                                                                   NÃO SE COMENDO DÁ PARA TODA A SEMANA.

 Há frases ditas por homens famosos que ficaram na história. Frases que se eternizam com a fama de quem as pronunciou, que fazem parte dos compêndios de literatura e da História Universal ou até resumidas em colectâneas.
Não é dessas frases que vos quero falar, nem a frase do título se a elas se juntasse ficaria bem, e atraiçoaria a linha de sentido que vou tentado seguir no Al Tejo, recordar o passado do nosso Concelho, as nossas memórias.
 Os ditos do Concelho
Ouvira, muitas vezes, a frase em título, à minha avó paterna, quando os víveres escasseavam no monte, pronunciava sempre aquela frase sorrindo.
Sorriso de conformação de quem cedo foi habituada a viver com pouco, do pouco que a terra lhe oferecia, e o marido ganhava por fora, mas que ela na sua horta encontrava sempre alternativas.
Como me recordo agora de uma sopa de “arrabaças” mansas que ela, carinhosamente, fez só para mim.
Claro que no Concelho foram ouvidas muito mais frases, algumas delas faziam sentido e conhecia-se o autor, outras passavam de dito em dito.
“ É mais esperto do que o filho do Estroina” usava-se muito esta expressão. Nunca vim a saber quem era o Estroina, sendo a palavra sinónimo de meio maluco.
“ Quem comer uma sardinha tem que lhe cagar a espinha” eis uma frase que já dá para pensarmos um pouquito.
Que me lembre foram as sardinhas, além do peixe seco que se vendia em todas as feiras, o peixe marítimo que primeiro chegou ao interior. Lembro-me, perfeitamente, dos caixotes de madeira de pinho onde elas eram transportadas, largos e com pouca altura.
As sardinhas estavam às camadas completamente enterradas em sal, mirradas, com os olhos amarelos e algumas também amarelas na pouca barriga.
Mas como eram saborosas aquelas “ petingas”.
A grande distância do mar e a morosidade dos transportes assim obrigavam, não admirando que o seu preço fosse alto. Logo não se deveriam comer muitas até por nessa época, anos 40, 50 vivia-se com muitas dificuldades, sendo a terra o principal meio de subsistência. Para se comprarem era preciso um esforço monetário e daí também advém aquela outra frase relacionada com as elas ”uma sardinha dá para três”. 
A seguir vieram os companheiros da alegria, carapaus do alto, “três 25 tostões”, apregoava o Zé Mira, uma manhã, junto à fonte de Terena, a fazer concorrência ao velho Zé sardinheiro.
Logo a seguir recordo-me do cação com cheiro a fénico.
Quem, com a nossa idade ou próximo dela, não se recorda das “turras” do Zé Mira com o Amílcar, por causa da venda do peixe?
 O convite
O cérebro é um mar de recordações, por vezes até me parece um oceano difícil de controlar.
Deixem-me recordar ou melhor deixem-me voltar aos meus quinze, dezasseis anos, não há mal nenhum nisso e penso que será surpresa para muita gente o que vos vou contar, sobretudo para gente mais nova, pois já naquela altura o foi para mim.
Convidou-me a família Matias parar ir aos pássaros, à sua horta no Monte Abaixo, em Faleiros. O Monte Abaixo é um pequeno aglomerado de montes e nestes situa-se o monte do Ai Ai, propriedade e residência da dita família.
 Ser filho de comerciante tinha as suas vantagens,
Fui e cheguei cedo à hora da ceia.
 O cão ladrou, era frenético, tinha garra. Não me incomodei. A lanterna era uma excelente arma, bastava apontá-la para ele e logo fugia, voltava, virava-lhe a luz e tornava a fugir, assim fui chegando à porta do monte.
Obtive esta experiência nas Hortinhas, quando ia aos pássaros, pardais, à horta do tio Saúl.
A casa da horta estava desabitada e tinha uma cadela como guarda, de média corpulência, mas com um génio de alta, voltei a lanterna, a pilha para ela, colocou-se entre as ombreiras permitindo a minha aproximação até metro e meio dela.
Rosnava e de dentes arreganhados parecia dizer-me - só entras se me matares. 
Acreditem que me apeteceu, pelo seu instinto de defesa, pela abnegação que mostrou em servir a sua causa, apeteceu-me repito, fazer-lhe uma festa, como elogio.
A Vicência Matias veio abrir-me a porta. A rapariga era simpática e bonita.
Mandou-me entrar e puxou-me uma cadeira.
- Queres cear com a gente - disse abrindo um sorriso e mostrando os seus alvos dentes.
- Não, obrigado - agradeci.
Começaram a comer, não rezaram mas pouco ou nada falaram durante o jantar.
Apresentavam sobretudo os três homens um rosto de cansaço, seco e tisnado pelo sol, de quem o trabalho do nascer ao sol-posto fazia algumas moças.
As mulheres tinham outro aspecto, menos queimadas.
A mãe, a tia Mariana do Ai Ai, esforçava-se por ter a mesa composta. A meio do jantar foi novamente encher o azeitoneiro e tornando-se a levantar foi buscar um chouriço partindo seis rodelas.
- Come as tuas presas - ordenou ao filho mais novo, que comia com pouca vontade.
Este olhou para a mãe com um olhar não de revolta, mas de enjoo por naquela sopa entrar sempre a morcela e o toucinho e de relance olhou para o chouriço.     
O jantar, sopas de couve com batatas e pão migado, cuja carne se compunha de dez presas, cinco de morcela e cinco de toucinho, certamente extraído do porco que criaram, engordaram e mataram.
Os restantes comiam com apetite, sendo a Vicência a que com mais rapidez manejava a colher, que por vezes tocava na colher de um dos irmãos fazendo-lhe cair a sopa, cujo gesto não foi chamada à atenção.
O “barranhão” de onde todos comiam era de esmalte e apresentava um grande asseio.
Todos, excepto o tio Matias se mostraram surpresos ao encetamento daquele soberbo chouriço e eu indaguei-me interiormente duas vezes - seis presas de chouriço? E se eu aceitasse jantar, quem ficaria sem as presas da morcela e do toucinho?
A cozinha era grande como grande era a sua chaminé, onde ardia grossos paus de azinho, cujo brasido aquecia toda a sala.
Ficara a dois três metros da mesa e a distância permitia-me observar de perto aquelas cinco pessoas. Despertou-me a atenção as botas do patriarca Matias, em couro com rasto em sola muito grossa, cardadas e com protectores na biqueira e tacões, a fazerem-me lembrar as botas mexicanas de rijo contraforte e de altos e fortes tacões,  que por essa altura tive, e que me levaram quase dois meses a amaciar, mas que fiquei eternamente grato à sua fortaleza, por me terem evitado o esmagamento dos pés, quando um dia vindo de Vila Viçosa, com o carro de mula carregado e indo para me montar caí do varal, no cimo da ladeira de Carambô, e a roda passou-me por cima das botas.
 A rapariga
Claro, estão a pensar que eu com aquela idade não observava a rapariga?
Que errado pensamento.
E ela, a Vicência era mesmo de observar.
Deixou-me na dúvida interrogativa que até hoje persiste - ter-se-ia vestido a propósito por saber que eu ia lá, ao seu monte?
Era bonita de rosto e estava bonita de corpo.
Vestia uma blusa vermelha, saia verde e tinha um colete azul celeste pelos ombros.
Era a Primavera em corpo de mulher, num Maio colorido, cujo o céu com a sua limpidez, parecia associar-se à terra coberta num tapete de mil flores, com deliciosos cheiros e divina musica emanada dos regatos de água corrente.
A rapariga tinha as pernas semi-abertas a deixar ver os seus contornos, comparáveis, no meu imaginário ocasional, às margens do ribeiro que corria na sua própria terra e escoava na ribeira do Lucefécit.
Pensei em fartura, uma mesa com outra e mais carne.
Pensei nas chuvas do Outono, que depois de um Verão arrasante e quente, que murcha e seca todas as plantas fazendo morrer as flores. Vi a rapariga sem roupa tal como a terra sem flores nua, capaz de ser lavrada e semeada para mais tarde dar continuidade à vida, e eu a idealizei-me lavrador com o arado a rasgar o ventre da terra para torná-la fértil e, como me deliciava nadando naquele regado de água pura deliciosamente virgem, quando uma frase me fez despertar e sair daquele maravilhoso estado de espírito.
- Aceita este bocado de pão e chouriço - ofereceu-me a rapariga.
Era impossível negar, se o fizesse cometeria uma indelicadeza que decerto ofenderias aquelas pessoas.
Não tinha ainda jantado e aquela sopa tinha-me aguçado o apetite e como me soube bem aquele bocado de pão com chouriço, até pedi azeitonas.
Muito mais tarde estando eu no adro da igreja Matriz, em Terena, a correr os olhos pela ribeira do Lucefécit fixei-os na foz do ribeiro de Faleiros, também chamado da malhada da Telha, alguém chamando pronunciou o meu nome - Hélder - voltei-me.
A Vicência, sorridente vinha ao meu encontro, também sorri, e com sorriso de recordação apertámos as mãos, num aperto igual ao que agora sinto, não na minha mão mas no fundo do meu coração.
 O Caritas
O Caritas foi um vendedor do Alandroal, assim como o Onça e o Peças.
O estabelecimento ou melhor a “venda”, era na sua própria casa, sendo o Peças um “regatão” que vendia porta a porta.
Vi-o muitas vezes em Terena.
A venda do Caritas era na cozinha que tinha uma grande chaminé. Não havia balcão, nem estantes e os géneros nomeadamente hortaliças e legumes era condicionadas em caixotes e canastras.
Era sempre o primeiro a vender os apreciados frutos do São Martinho.
 Não me recordo se algum deles possuía ou tinha terras à renda, mas recordo-me que iam a Estremoz abastecer-se. Este mercado foi naquelas duas décadas o mais importante da
região. Durante muito tempo os compradores forasteiros só podiam sair da cidade depois da uma hora da tarde, assim a população entre muros tinha tempo de fazer as suas compras.
Falava-se entre estes compradores que este horário era motivado pela proximidade da Espanha, ainda em recuperação devido à guerra civil.
A morcela do Caritas não se comendo dá para toda a semana”.
 Certamente os leitores já se interrogaram com a decorrência da leitura do texto ou lendo apenas o título, - para que serviria a morcela senão se comesse? Certamente rançaria e tornar-se-ia intragável, para nós pessoas e até para os cães.
Se fosse toucinho mesmo rançoso serviria para untar os eixos dos carros de bestas em substituição do unto, pelo menos o meu avô Salgado, assim o fazia.
 Uma sardinha dá para três” e se comparássemos esta frase com a frase da Caritas, da morcela?
Vejamos o meu raciocínio, que poderá ser coincidente com o vosso, diferente ou até disparatado.
Peço-vos o favor de raciocinarem também.
 Ainda
 e como introdução a este desafio vamos voltar à ceia da família Matias e às presas de carne. Dez presas para cinco pessoas e ninguém comia mais carne.
Lembro-me, que muito próximo dessa altura, havia produtos racionados, cujo o controle era feito por um pequeno papel semelhante a um selo e o freguês que levasse aquela dotação, não poderia comprar mais naquele dia. Não comprava não se consumia e assim se controlava os excessos e o género sobre o qual caia o racionamento dava para mais tempo.
A mãe Matias controlava assim os seus géneros, no caso em questão a morcela e o toucinho.
 Ora
Se três pessoas comiam uma sardinha, o que era uma míngua até porque as sardinhas por si já eram pequenas e mirradas pelo sal, sobravam duas sardinhas para mais duas refeições para os três.
Se a morcela não se comesse naquela semana, ela constituía uma reserva para a semana decorrente, e não se comendo transportava-se para a outra.
 Conclusão
Nestas duas frases salta à vista a preocupação com o dia de amanhã, - hoje tenho comida então vou guardá-la para o dia seguinte.
- Poupar hoje para amanhã ter, - é a minha conclusão, façam os leitores também a vossa, certamente o Al Tejo ficar-lhes-á agradecido.

Hélder Salgado
09-01-2012
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