terça-feira, 11 de abril de 2017

MEMÓRIAS CURTAS - Prof Vitor Guita

              Uma vez por mês o Prof, Vitor Guita traz-nos à memória,                                                        recordações do passado


“Andar à da Bia Mareco” era a expressão vulgarmente utilizada pelas gentes de Montemor, quando se falava de todos aqueles que frequentavam o Externato Vasco da Gama no nº12 do antigo Terreiro das Portas do Sol. O esguio prédio, n de 2º andar ainda lá está, mesmo em frente da Igreja de N. Srª da Luz, testemunhando quase diariamente a derradeira viagem de tantos e tantos montemorenses.
Mas a que propósito é que esta conversa vem? – Interrogar-se-ão os estimados leitores.
A recente sessão realizada no passado dia 8 de Março, no salão nobre da Camara Municipal, destinada a evocar o escritor Montemorense João Carlos Alfacinha da Siva (Alface), aguçou-nos o desejo de revisitar a antiga escola onde aquele escritor e outros nossos conterrâneos aprenderam a soletrar e a redigir as primeiras letras.
Nascida no ano de 1909, em S. Sebastião da Giesteira, Maria Rosa Caixeiro Mareco mudou-se para Montemor, na sequência da vinda de seu pai, que negociava em lenhas e carnes, tendo sido mais tarde funcionário da Misericórdia. Além de Bia Mareco, havia mais três irmãos, dois rapazes e uma rapariga: Francisco (o famoso Chico Mareco), Custódia e Beatriz.
Segundo apurámos, Bia Mareco não tinha formação do Magistério. Socorrendo-se, em grande pate, dos sólidos ensinamentos da Professora Teresa Ferrão, a D. Bia foi aquilo a que habitualmente se chama um autodidata.
No Externato Vasco da Gama, preparavam-se os alunos até à 4ª classe e Exame da Admissão.
Além do ensino primário, havia explicações de várias disciplinas. Em certos casos, davam-se lições ao domicílio. A D. Bia preparava ainda as candidatas a telefonistas e muitas das que queriam ser bem sucedidas na admissão ao curso de enfermagem. Trabalhava-se de manhã à noite.
O Externato era masculino, mas aceitava também raparigas. A palavra externato faz pressupor um certo elitismo, mas havia os que não podiam pagar as mensalidades e que tinham autorização para entrarem e fazer as suas aprendizagens. Alguns já tinham apanhado raposas noutros lados. Em suma, tratava-se de uma escola sem grandes condições físicas mas incusiva.
Inicialmente as aulas funcionavam no 2º andar. Era preciso trepar as estreitas e ingremes escadas. Não havia pátio de recreio. A vida domestica, confundia-se, por vezes, com as actividades escolares. A vista grossa dos inspetores foi deixando a escola funcionar, mas houve uma altura em que o espaço destinado a funcionar teve de descer para o rés-do-chão. Um quadro de ardósia, a secretária da D. Bia e umas quantas carteiras com tinteiro e marcadas com os riscos feitos pela rapaziada.
No piso inferior havia certamente melhores condições de acessibilidade, sanitários e o recreio, lá ao fundo do corredor no pequeno quintal. Frequentemente a rapaziada preferia vir ara o meio da rua brincar. Alguns não largavam as portas da vizinhança, com a mira nalguma guloseima. Outros aventuravam-se numa escapadela té ao Castelo.
Mas se a sala de aulas mudou de piso, não baixou o nível da qualidade dos ensinamentos nem a atitude material da professora. Curiosamente nenhum dos três filhos foi seu aluno, seguindo aquele velho princípio de que “ santos da casa não fazem milagres”.
A D. Bia tinha especiais aptidões nas áreas de português e matemática. O domínio do luso idioma levou-a escrever para o Montemorense, A Democracia do Sul e a concorrer por exemplo aos Jogos Florais da cidade da Guarda.
Como estamos no mês de Março, em que se ceebra, entre outras coisas, o Dia Internacional da Mulher, relembramos aqui um poema escrito por Maria do Alentejo, o pseudónimo literário utilizado por Bia Mareco.
Ser mãe á dar vida a outra vida,
Numa renuncia só feita de amor.
É encarar o mundo sem temor,
É estar aleta, mesmo adormecida.

Ser mãe é nunca ter a fé perdida;
É viver a sonhar, sorrir à dor;
É ser das trevas luz, do frio calor;
É trazer na alma a prece mais sentida.

Ser mãe é ser humilde e ser soberba;
É tudo querer e tudo desprezar…
É ser uma santa, sendo pecadora.

Tais contra-sensos, sempre em luta acerba,
São preces, ânsias, luzes a brilhar;
Por sobre o Mundo em chama redentora!...

Pois é, estimado leitor. Vale mais um exemplo do que um bom conselho. É bem possível que o apetite da professora pela escrita tenha contaminado alguns dos seus educandos, embora cada um tenha seguido o seu próprio caminho.
Manuel Henrique Mareco Espada de Sousa (o Balecas), que nos ajudou a revisitar muitas destas memórias, contou-nos que certa vez, O João Carlos Alfacinha (o Alface) oferecera à d. Bia um dos seus livros, com a linguagem vernácula que lhe é tão peculiar. A professora/educadora ficou reconhecida, mas quase escandalizada: “parece mentira, menino! Tanto palavrão!”.
João Luís Nabo, outro grande amigo e excelente escritor montemorense, aprendeu também as primeiras letras no Vasco da Gama, quer dizer à da Bia Mareco. Os estimados leitores conhece-lhe o rigor da escrita e, ao mesmo tempo, o sal, o humor a irreverencia com que aborda os assuntos na sua crónica mensal Cloreto de Sódio: Ele é mais um exemplo de que o espaço exíguo da sua primeira escola não lhe limitou a capacidade de sonhar, de criar, de produzir os textos com que regularmente nos surpreende e delicia.
Em Março de 1988, aquando da morte da D. Bia Mareco, o João Luís Nabo (o Nabinho como ela lhe chamava) escreveu estas belas e emocionadas palavras:
           (Ùltimo) Bilhete, Escrito à Pressa para a minha Professora Primária
Querida professora:
Estava a chover muito nesse dia. E as pessoas, à pressa, recolhiam-se debaixo de guarda-chuvas, um mar de cor naquela tarde cinzenta. E aquele arco-íris, arrastou-se, vistoso, no seu último passeio.
Foste mãe e professora. Das grandes. Daquelas que ninguém pode nunca esquecer. Foi contigo que muitos de nós aprenderam a respeitar a magia dos livros, a libertar o pensamento e a querer saber sempre mais. Foram muitos os que se sentaram nas carteiras da tua sala. Foram poucos, muito poucos, os que, pela derradeira vez, e em silêncio, te testemunharam esse agradecimento. Mas, do outro lado do espelho, essas coisas, já não contam para ti.
Não quero incomodar por mais tempo esse teu descanso merecido, ainda que, para nós, prematuro. Vou dizer-te até um dia. Quando o silêncio de uma pedra branca der lugar a um quadro negro cheio de palavras e vida. Até um dia onde voltaremos, então, a recordar os sorrisos dos anjos de bata azul que, em plena primavera da vida, começaram a crescer ao som das tuas palavras.
Obrigado D. Bia.

É chegada também a hora de nos despedirmos. Até um dia destes.
Vitor Guita

In “Montemorense”  Março 2017 -  Transcrição autorizada pelo Autor

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