“Andar à da Bia
Mareco” era a expressão vulgarmente utilizada pelas gentes de Montemor, quando
se falava de todos aqueles que frequentavam o Externato Vasco da Gama no nº12
do antigo Terreiro das Portas do Sol. O esguio prédio, n de 2º andar ainda lá
está, mesmo em frente da Igreja de N. Srª da Luz, testemunhando quase
diariamente a derradeira viagem de tantos e tantos montemorenses.
Mas a que propósito
é que esta conversa vem? – Interrogar-se-ão os estimados leitores.
A recente sessão
realizada no passado dia 8 de Março, no salão nobre da Camara Municipal,
destinada a evocar o escritor Montemorense João Carlos Alfacinha da Siva
(Alface), aguçou-nos o desejo de revisitar a antiga escola onde aquele escritor
e outros nossos conterrâneos aprenderam a soletrar e a redigir as primeiras
letras.
Nascida no ano de
1909, em S. Sebastião da Giesteira, Maria Rosa Caixeiro Mareco mudou-se para
Montemor, na sequência da vinda de seu pai, que negociava em lenhas e carnes,
tendo sido mais tarde funcionário da Misericórdia. Além de Bia Mareco, havia
mais três irmãos, dois rapazes e uma rapariga: Francisco (o famoso Chico
Mareco), Custódia e Beatriz.
Segundo apurámos,
Bia Mareco não tinha formação do Magistério. Socorrendo-se, em grande pate, dos
sólidos ensinamentos da Professora Teresa Ferrão, a D. Bia foi aquilo a que
habitualmente se chama um autodidata.
No Externato Vasco
da Gama, preparavam-se os alunos até à 4ª classe e Exame da Admissão.
Além do ensino
primário, havia explicações de várias disciplinas. Em certos casos, davam-se
lições ao domicílio. A D. Bia preparava ainda as candidatas a telefonistas e
muitas das que queriam ser bem sucedidas na admissão ao curso de enfermagem.
Trabalhava-se de manhã à noite.
O Externato era
masculino, mas aceitava também raparigas. A palavra externato faz pressupor um
certo elitismo, mas havia os que não podiam pagar as mensalidades e que tinham
autorização para entrarem e fazer as suas aprendizagens. Alguns já tinham
apanhado raposas noutros lados. Em suma, tratava-se de uma escola sem grandes
condições físicas mas incusiva.
Inicialmente as
aulas funcionavam no 2º andar. Era preciso trepar as estreitas e ingremes
escadas. Não havia pátio de recreio. A vida domestica, confundia-se, por vezes,
com as actividades escolares. A vista grossa dos inspetores foi deixando a
escola funcionar, mas houve uma altura em que o espaço destinado a funcionar
teve de descer para o rés-do-chão. Um quadro de ardósia, a secretária da D. Bia
e umas quantas carteiras com tinteiro e marcadas com os riscos feitos pela
rapaziada.
No piso inferior
havia certamente melhores condições de acessibilidade, sanitários e o recreio,
lá ao fundo do corredor no pequeno quintal. Frequentemente a rapaziada preferia
vir ara o meio da rua brincar. Alguns não largavam as portas da vizinhança, com
a mira nalguma guloseima. Outros aventuravam-se numa escapadela té ao Castelo.
Mas se a sala de
aulas mudou de piso, não baixou o nível da qualidade dos ensinamentos nem a
atitude material da professora. Curiosamente nenhum dos três filhos foi seu
aluno, seguindo aquele velho princípio de que “ santos da casa não fazem
milagres”.
A D. Bia tinha
especiais aptidões nas áreas de português e matemática. O domínio do luso
idioma levou-a escrever para o Montemorense, A Democracia do Sul e a concorrer
por exemplo aos Jogos Florais da cidade da Guarda.
Como estamos no mês
de Março, em que se ceebra, entre outras coisas, o Dia Internacional da Mulher,
relembramos aqui um poema escrito por Maria do Alentejo, o pseudónimo literário
utilizado por Bia Mareco.
Ser mãe á dar vida a outra vida,
Numa renuncia só feita de amor.
É encarar o mundo sem temor,
É estar aleta, mesmo adormecida.
Ser mãe é nunca ter a fé perdida;
É viver a sonhar, sorrir à dor;
É ser das trevas luz, do frio calor;
É trazer na alma a prece mais sentida.
Ser mãe é ser humilde e ser soberba;
É tudo querer e tudo desprezar…
É ser uma santa, sendo pecadora.
Tais contra-sensos, sempre em luta acerba,
São preces, ânsias, luzes a brilhar;
Por sobre o Mundo em chama redentora!...
Pois é, estimado
leitor. Vale mais um exemplo do que um bom conselho. É bem possível que o
apetite da professora pela escrita tenha contaminado alguns dos seus educandos,
embora cada um tenha seguido o seu próprio caminho.
Manuel Henrique Mareco
Espada de Sousa (o Balecas), que nos ajudou a revisitar muitas destas memórias,
contou-nos que certa vez, O João Carlos Alfacinha (o Alface) oferecera à d. Bia
um dos seus livros, com a linguagem vernácula que lhe é tão peculiar. A
professora/educadora ficou reconhecida, mas quase escandalizada: “parece
mentira, menino! Tanto palavrão!”.
João Luís Nabo,
outro grande amigo e excelente escritor montemorense, aprendeu também as
primeiras letras no Vasco da Gama, quer dizer à da Bia Mareco. Os estimados
leitores conhece-lhe o rigor da escrita e, ao mesmo tempo, o sal, o humor a
irreverencia com que aborda os assuntos na sua crónica mensal Cloreto de Sódio:
Ele é mais um exemplo de que o espaço exíguo da sua primeira escola não lhe
limitou a capacidade de sonhar, de criar, de produzir os textos com que
regularmente nos surpreende e delicia.
Em Março de 1988,
aquando da morte da D. Bia Mareco, o João Luís Nabo (o Nabinho como ela lhe
chamava) escreveu estas belas e emocionadas palavras:
(Ùltimo) Bilhete, Escrito
à Pressa para a minha Professora Primária
Querida professora:
Estava a chover muito nesse dia. E as pessoas, à pressa, recolhiam-se
debaixo de guarda-chuvas, um mar de cor naquela tarde cinzenta. E aquele arco-íris,
arrastou-se, vistoso, no seu último passeio.
Foste mãe e professora. Das grandes. Daquelas que ninguém pode nunca
esquecer. Foi contigo que muitos de nós aprenderam a respeitar a magia dos
livros, a libertar o pensamento e a querer saber sempre mais. Foram muitos os
que se sentaram nas carteiras da tua sala. Foram poucos, muito poucos, os que,
pela derradeira vez, e em silêncio, te testemunharam esse agradecimento. Mas,
do outro lado do espelho, essas coisas, já não contam para ti.
Não quero incomodar por mais tempo esse teu descanso merecido, ainda
que, para nós, prematuro. Vou dizer-te até um dia. Quando o silêncio de uma
pedra branca der lugar a um quadro negro cheio de palavras e vida. Até um dia
onde voltaremos, então, a recordar os sorrisos dos anjos de bata azul que, em
plena primavera da vida, começaram a crescer ao som das tuas palavras.
Obrigado D. Bia.
É chegada também a
hora de nos despedirmos. Até um dia destes.
Vitor Guita
In “Montemorense” Março 2017 - Transcrição autorizada pelo Autor
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