quinta-feira, 9 de março de 2017

MEMÓRIAS CURTAS - Prof Vitor Guita

Uma vez por mês o Prof, Vitor Guita traz-nos à memória,                                               recordações do passado
De há uns tempos para cá, o início do terceiro mês do ano traz-nos inexoravelmente á lembrança, um velho amigo e escritor montemorense, falecido subitamente em Março de 2007. Via fazer dez anos, Jornais, rádios e televisões noticiaram, nessa altura, a morte de João Carlos Alfacinha da Silva, cujo pseudónimo literário é Alface. Escritor, jornalista, guionista, alguns chamaram-lhe Escritor Excelentíssimo.
Não nos vamos alongar com considerações de natureza biográfica nem tecer comentários acerca da obra literária deste nosso conterrâneo. 
Já o fizemos aqui neste mesmo local e noutras circunstâncias.
Sempre considerámos que o melhor tributo que se pode prestar a um escritor é saborear as suas palavras, contribuir para divulgar os seus livros, libertando-os, assim. Autor e obra, da lei do esquecimento.
Como é bem possível que muitos dos nossos leitores nunca tenham tido oportunidade de apreciar a produção literária do escritor montemorense, decidimos aproveitar o espaço que nos é concedido para levar até si, estimado leitor, alguns dos textos magnificamente escritos por Alface.
Um desses textos é o maravilhoso conto Pombinhos, que pode ser encontrado no livro editado pela Fenda, intitulado A mais Nova Profissão do Mundo.
Trata-se de uma história amarga e doce, bem distinta das divertidíssimas narrativas do Alface, mas igualmente deliciosa do ponto de vista literário.
                                        Pombinhos
Duas vezes por semana, terças e sextas ao fim da tarde, um saco de plástico em cada mão, o velho vinha dar de comer aos pombos da nossa praça.
Nada o distinguia dessa legião de reformados encolhidos que arrastam “uma miséria digna” pelos jardins do centro. Em três linhas poderia imaginar-lhe a existência, catalogá-lo com uma palavra do herbário dos falhados. Os sacos vinham cheios de bocados de pão e de fruta que ele devia pedinchar na cozinha do refeitório de alguma eufemística casa de repouso e eram sempre os mesmos, um azul, outro verde.
Á terça ia o velho pôr-se ao abrigo da estátua que domina a praça e que é um poeta morto com sífilis, embora a versão oficial consagre amores impossíveis.
À sexta ousava terrenos mais expostos, ostentava mimos de generosidade no empedrado onde as crianças inutilmente perseguiam as aves.
Nunca o vi olhar em volta procurar a aprovação dos outros velhos que ferozmente jogavam cartas nos bancos à sombra. Chegava infalível, postava-se exacto, agia metódico, partia feliz. Sempre de pé.
Os pombos correspondiam com voracidade prostituída, submergindo o velho, também isso já muito visto, piares gulosos, curtos voos frenéticos, que ele disciplinava, orientando as dádivas, alternando os favoritos, suspendendo a oferta em mão trémula com o peso descansado de um papo cheio. Nem uma palavra, nem uma impaciência, nenhuma brusquidão. Levava nisso quinze minutos, metia os sacos no bolso, partia.
Deixei passar o resto do Outono. AS folhas caiam, vieram as primeiras chuvas, a praça fica vazia, um raro par de namorados, os pombos, o velho às terças e sextas, já de sobretudo, os sacos, o ritual.
Ataquei então em força. Milho verde americano, três quilos de Califórnia espalhados na praça antes do velho aparecer com sacos cheios de pão e fruta moída. Meia hora depois outro quilo. Em casa preparei um grogue quente, pus no gira discos o concerto em dó maior para flauta ou violino ou oboé, cordas e baixo contínuo de Jean-Marie Leclaire.  Fiquei na janela à espera. À hora habitual, protegendo-se do frio com um sobretudo e um chapéu igualmente puídos, chega o meu velho e os seus sacos. Desaperta o cordel que os fechava, com gestos tremidos.
Condicionado pelo hábito, os pombos acercavam-se e ele começou a sua distribuição de miolo de pão seco. Uns ainda debicaram, outros nem isso, saciados pela excelência do meu milho verde americano, caríssimo, o melhor que há. Alçaram para a protecção do poeta sifilítico, voaram para as árvores, voltaram costas à perplexidade, à aflição atónita, ao desespero incrédulo, à incompreensão dorida, à agitação dos passos que enfim dava, dos apelos que enfim lançava. Temi que não resistisse. Um gesto de timidez ou cobardia fê-lo olhar em volta, enfim receoso do ridículo, e então, destroçado, agarrar nos sacos de plástico e ir embora.
Isso foi na terça. Na quarta e quinta fui dar-lhe milho por três vezes, sexta reforcei a dose. Mal se podiam mexer, de empanturrados que estavam. Eu voltei à minha janela, à espera.
E ele lá apareceu, combativo, apesar de perceptível hesitação no esforço de parecer natural, idêntico às dezenas de vezes que ali viera.
Desta vez os pombos nem se mexeram, nem um saltou para os braços benfeitores, nem um quis pão seco e fruta moída.
Gostava de ver o que o poeta sifilítico escreveria sobre a dor absurdamente dolorosa que o velho deixava transparecer na boca aberta e nos olhos vazios, na cabeça e nos braços vencidos.
Largou o saco na base da estátua, um ainda fechado, o outro a entornar-se, e ele arrastou-se até um banco, a primeira vez que se sentava no jardim fronteiro à ‘minha casa.
Acreditem que soluçava, não era do vento ou da chuva, era m uivo calado, milénios de sofrimento que desaguavam num banco público de pedra, durou o tempo de eu IR acabar o cigarro e por a tocar uma cantada de Bach, soturna, compassiva, tão necessária para equilibrar a juvenil alegria do meu rosto.
Veio o Natal, e foi, veio Janeiro. Aparentemente o velho dos sacos percebera a ideia geral, deixou de aparecer, eu deixei de comprar milho verde e os pombos faziam pela vida.
Aparentemente o velho percebera. Eu é que não.
Uma tarde qualquer, mas não era terça ou sexta, vi-o surgir de novo, com novos sacos de plástico, vi-o vir com alguma ternura, mas também com irritação e cansaço. Parecia mais novo, enérgico, cumprimentou à esquerda e à direita, afagou os cabelos de uma menina que mal se equilibrava nas pernas, abriu os sacos e começou a lançar pão e fruta com movimentos precisos, largos, os pombos num corrupio, num restolhar excitado, uns iam-lhe à mão, outros aos ombros, ao cabelo, o velho atirava miolos ao ar, fez uma pequena pausa, sorriu em volta aos que tinham parado de jogar ás cartas e lhe sorriam, tirou um pão do saco e começou ele próprio a comer com apetite, sentado aos pés do poeta de amores impossíveis, a comer e a sorrir.
Os primeiros a cair foram os pombos que tinham subido para a poética cabeça da estátua. Caíram redondos, plof. Depois os outros, das árvores, dos candeeiros, foram caindo como pedras ou em cachos, fulminados, plo, plof, plof, numa cadência demencial. Vários bateram nas pessoas especadas e que gritavam, uns ainda estrebuchavam no chão enquanto outros tentavam desastradamente erguer no ar os seus ossos cheios de veneno. O velho torcia-se e ria, acabou por ser o último a morrer, rebolando por cima dos cadáveres que enchiam o chão do jardim e caindo com a cabeça dentro de um saco amarelo de plástico, plof,.”

Para aqueles que pensam que João Carlos Alfacinha da Silva, vivendo em Lisboa estava distanciado de Montemor, deixo-vos estimados leitores, com um pequeno excerto da sua autoria, inserto na edição comemorativa do 2º aniversário da Livraria Fonte de Letras, em 2002.
……(…) Era Setembro, Lembro: amoras, uvas, figos e gamboas roubadas à inda e vinda da Pintada ou do Pego do Poço; lerpa noctívaga da Pedrista, King vespertino na frescura do Rádio Cine, incansáveis desafios no Rossio (muda aos 6 acaba aos 12), hóquei patinado à sombra de Adrião e Livramento no rudimentar ring  lá de casa, sprints ciclísticos á pala do Corvo, do Peixoto e do Perna Coelho, épicos cinco níques e saltos kamikaze na inteira-  caganeira, fisgas de precisão futurista nas muralhas do castelo(…)
(…) E o gozo de engolir o Furia e o Bonanza (ave, Joe Pequeno) no preto e branco dos catatónicos televisores das sociedades recreativas. E a maravilha de mergulhar na Esplanada do Monte Alentejano a ver o nocturno  ecran e o céu estrelado encherem-se das lágrimas do Miguel Stogroff, da gadelha aparada de Sansão, do tiroteio planetário de Yul Bryner, da gritaria pirómana de Tarzan, da coragem fundadora de Kirk Douglas (I´m Spartacus). E no céu planarem as mamas estrondosas Da Sophia Loren, os gorjeios salpicantes da Marisol, os langores desgraçados de Sissi, os desatinos canoros de Joselito.
Em fundo, ao fundo, alguém trabalha a terra, aguem governa o sangue da terra enquanto o meu pai passeia olhos de fim de tarde pelos amores-perfeitos do jardim e eu me divirto a dar banho ao cão e a minha mãe ciranda pela casa toda. Setembro está quase a acabar. Setembro vai recomeçar.”

E pronto. Vamos ter de ficar por aqui. Tanto quanto sabemos, está a ser preparada uma sessão evocativa do escritor Alface, no próximo 8 de Março. Justo tributo a este montemorense e homem de letras.
Até breve
Vitor Guita
In Montemorense – Fevereiro 2017
Transcrição autorizada pelo Autor

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