Uma vez por mês
o Prof, Vitor Guita traz-nos à memória, recordações do passado
De há uns tempos para cá, o início do terceiro mês do
ano traz-nos inexoravelmente á lembrança, um velho amigo e escritor
montemorense, falecido subitamente em Março de 2007. Via fazer dez anos,
Jornais, rádios e televisões noticiaram, nessa altura, a morte de João Carlos
Alfacinha da Silva, cujo pseudónimo literário é Alface. Escritor, jornalista,
guionista, alguns chamaram-lhe Escritor Excelentíssimo.
Não nos vamos alongar com considerações de natureza
biográfica nem tecer comentários acerca da obra literária deste nosso
conterrâneo.
Já o fizemos aqui neste mesmo local e noutras circunstâncias.
Sempre considerámos que o melhor tributo que se pode prestar
a um escritor é saborear as suas palavras, contribuir para divulgar os seus
livros, libertando-os, assim. Autor e obra, da lei do esquecimento.
Como é bem possível que muitos dos nossos leitores
nunca tenham tido oportunidade de apreciar a produção literária do escritor
montemorense, decidimos aproveitar o espaço que nos é concedido para levar até
si, estimado leitor, alguns dos textos magnificamente escritos por Alface.
Um desses textos é o maravilhoso conto Pombinhos, que
pode ser encontrado no livro editado pela Fenda, intitulado A mais Nova Profissão do Mundo.
Trata-se
de uma história amarga e doce, bem distinta das divertidíssimas narrativas do
Alface, mas igualmente deliciosa do ponto de vista literário.
Pombinhos
“Duas
vezes por semana, terças e sextas ao fim da tarde, um saco de plástico em cada
mão, o velho vinha dar de comer aos pombos da nossa praça.
Nada o distinguia dessa legião de reformados
encolhidos que arrastam “uma miséria digna” pelos jardins do centro. Em três
linhas poderia imaginar-lhe a existência, catalogá-lo com uma palavra do
herbário dos falhados. Os sacos vinham cheios de bocados de pão e de fruta que
ele devia pedinchar na cozinha do refeitório de alguma eufemística casa de
repouso e eram sempre os mesmos, um azul, outro verde.
Á terça ia o velho pôr-se ao abrigo da estátua que
domina a praça e que é um poeta morto com sífilis, embora a versão oficial
consagre amores impossíveis.
À sexta ousava terrenos mais expostos, ostentava mimos
de generosidade no empedrado onde as crianças inutilmente perseguiam as aves.
Nunca o vi olhar em volta procurar a aprovação dos
outros velhos que ferozmente jogavam cartas nos bancos à sombra. Chegava
infalível, postava-se exacto, agia metódico, partia feliz. Sempre de pé.
Os pombos correspondiam com voracidade prostituída,
submergindo o velho, também isso já muito visto, piares gulosos, curtos voos
frenéticos, que ele disciplinava, orientando as dádivas, alternando os
favoritos, suspendendo a oferta em mão trémula com o peso descansado de um papo
cheio. Nem uma palavra, nem uma impaciência, nenhuma brusquidão. Levava nisso
quinze minutos, metia os sacos no bolso, partia.
Deixei passar o resto do Outono. AS folhas caiam,
vieram as primeiras chuvas, a praça fica vazia, um raro par de namorados, os
pombos, o velho às terças e sextas, já de sobretudo, os sacos, o ritual.
Ataquei então em força. Milho verde americano, três
quilos de Califórnia espalhados na praça antes do velho aparecer com sacos
cheios de pão e fruta moída. Meia hora depois outro quilo. Em casa preparei um
grogue quente, pus no gira discos o concerto em dó maior para flauta ou violino
ou oboé, cordas e baixo contínuo de Jean-Marie Leclaire. Fiquei na janela à espera. À hora habitual,
protegendo-se do frio com um sobretudo e um chapéu igualmente puídos, chega o
meu velho e os seus sacos. Desaperta o cordel que os fechava, com gestos
tremidos.
Condicionado pelo hábito, os pombos acercavam-se e ele
começou a sua distribuição de miolo de pão seco. Uns ainda debicaram, outros
nem isso, saciados pela excelência do meu milho verde americano, caríssimo, o
melhor que há. Alçaram para a protecção do poeta sifilítico, voaram para as
árvores, voltaram costas à perplexidade, à aflição atónita, ao desespero
incrédulo, à incompreensão dorida, à agitação dos passos que enfim dava, dos
apelos que enfim lançava. Temi que não resistisse. Um gesto de timidez ou
cobardia fê-lo olhar em volta, enfim receoso do ridículo, e então, destroçado,
agarrar nos sacos de plástico e ir embora.
Isso foi na terça. Na quarta e quinta fui dar-lhe
milho por três vezes, sexta reforcei a dose. Mal se podiam mexer, de
empanturrados que estavam. Eu voltei à minha janela, à espera.
E ele lá apareceu, combativo, apesar de perceptível
hesitação no esforço de parecer natural, idêntico às dezenas de vezes que ali
viera.
Desta vez os pombos nem se mexeram, nem um saltou para
os braços benfeitores, nem um quis pão seco e fruta moída.
Gostava de ver o que o poeta sifilítico escreveria
sobre a dor absurdamente dolorosa que o velho deixava transparecer na boca
aberta e nos olhos vazios, na cabeça e nos braços vencidos.
Largou o saco na base da estátua, um ainda fechado, o
outro a entornar-se, e ele arrastou-se até um banco, a primeira vez que se
sentava no jardim fronteiro à ‘minha casa.
Acreditem que soluçava, não era do vento ou da chuva,
era m uivo calado, milénios de sofrimento que desaguavam num banco público de
pedra, durou o tempo de eu IR acabar o cigarro e por a tocar uma cantada de
Bach, soturna, compassiva, tão necessária para equilibrar a juvenil alegria do
meu rosto.
Veio o Natal, e foi, veio Janeiro. Aparentemente o
velho dos sacos percebera a ideia geral, deixou de aparecer, eu deixei de
comprar milho verde e os pombos faziam pela vida.
Aparentemente o velho percebera. Eu é que não.
Uma tarde qualquer, mas não era terça ou sexta, vi-o
surgir de novo, com novos sacos de plástico, vi-o vir com alguma ternura, mas
também com irritação e cansaço. Parecia mais novo, enérgico, cumprimentou à
esquerda e à direita, afagou os cabelos de uma menina que mal se equilibrava
nas pernas, abriu os sacos e começou a lançar pão e fruta com movimentos
precisos, largos, os pombos num corrupio, num restolhar excitado, uns iam-lhe à
mão, outros aos ombros, ao cabelo, o velho atirava miolos ao ar, fez uma pequena
pausa, sorriu em volta aos que tinham parado de jogar ás cartas e lhe sorriam,
tirou um pão do saco e começou ele próprio a comer com apetite, sentado aos pés
do poeta de amores impossíveis, a comer e a sorrir.
Os primeiros a cair foram os pombos que tinham subido
para a poética cabeça da estátua. Caíram redondos, plof. Depois os outros, das
árvores, dos candeeiros, foram caindo como pedras ou em cachos, fulminados,
plo, plof, plof, numa cadência demencial. Vários bateram nas pessoas especadas
e que gritavam, uns ainda estrebuchavam no chão enquanto outros tentavam
desastradamente erguer no ar os seus ossos cheios de veneno. O velho torcia-se
e ria, acabou por ser o último a morrer, rebolando por cima dos cadáveres que
enchiam o chão do jardim e caindo com a cabeça dentro de um saco amarelo de
plástico, plof,.”
Para aqueles que pensam que João Carlos Alfacinha da
Silva, vivendo em Lisboa estava distanciado de Montemor, deixo-vos estimados
leitores, com um pequeno excerto da sua autoria, inserto na edição comemorativa
do 2º aniversário da Livraria Fonte de Letras, em 2002.
……(…) Era Setembro, Lembro: amoras, uvas, figos e
gamboas roubadas à inda e vinda da Pintada ou do Pego do Poço; lerpa noctívaga
da Pedrista, King vespertino na frescura do Rádio Cine, incansáveis desafios no
Rossio (muda aos 6 acaba aos 12), hóquei patinado à sombra de Adrião e
Livramento no rudimentar ring lá de
casa, sprints ciclísticos á pala do Corvo, do Peixoto e do Perna Coelho, épicos
cinco níques e saltos kamikaze na inteira-
caganeira, fisgas de precisão futurista nas muralhas do castelo(…)
(…) E o gozo de engolir o Furia e o Bonanza (ave, Joe
Pequeno) no preto e branco dos catatónicos televisores das sociedades
recreativas. E a maravilha de mergulhar na Esplanada do Monte Alentejano a ver
o nocturno ecran e o céu estrelado
encherem-se das lágrimas do Miguel Stogroff, da gadelha aparada de Sansão, do
tiroteio planetário de Yul Bryner, da gritaria pirómana de Tarzan, da coragem
fundadora de Kirk Douglas (I´m Spartacus). E no céu planarem as mamas
estrondosas Da Sophia Loren, os gorjeios salpicantes da Marisol, os langores
desgraçados de Sissi, os desatinos canoros de Joselito.
Em fundo, ao fundo, alguém trabalha a terra, aguem
governa o sangue da terra enquanto o meu pai passeia olhos de fim de tarde
pelos amores-perfeitos do jardim e eu me divirto a dar banho ao cão e a minha
mãe ciranda pela casa toda. Setembro está quase a acabar. Setembro vai
recomeçar.”
E pronto. Vamos ter de ficar por aqui. Tanto quanto
sabemos, está a ser preparada uma sessão evocativa do escritor Alface, no
próximo 8 de Março. Justo tributo a este montemorense e homem de letras.
Até breve
Vitor
Guita
In Montemorense – Fevereiro 2017
Transcrição autorizada pelo Autor
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