quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

VASCULHAR O PASSADO

– Uma vez por mês Augusto Mesquita recorda-nos pessoas, monumentos, tradições usos e costumes de outros tempos.

                                    Montemorenses que ficaram na História  
                                       O fidalgo de barba rija, a virtuosa, e a benemérita

                                                                D. João de Sousa
Antes de mais, convém saber quem era D. João de Sousa. Trata-se do primogénito do fidalgo Rui de Sousa, valido muito estimado de D. João II e de D. Afonso V, que lhe doara o Reguengo de Montemor-o-Novo, em 14 de Maio de 1465, passado para o filho em 4 de Outubro de 1471
            Conta-se que quando D. João II esteve na Vila Notável, por ocasião da convocação das cortes, mandara meter os cavalos na estribaria de D. João de Sousa, nobre, brioso e valente cavaleiro desta vila, que então andava à caça, o qual sabendo isto, se foi à estribaria, e, soltando os cavalos do rei, os pôs na rua. D. João II o mandou chamar e lhe perguntou muito agastado, a razão porque praticara tal acto – ao que o fidalgo respondeu – “porque não queira Deus, que faça vossa alteza da casa de D. João, estribaria, e da casa de D. Fernando, paço”.
            D. João II achou esta resposta tão digna, que perdeu instantaneamente a cólera, e dali em diante sempre estimou e respeitou este fidalgo, fazendo-o depois seu embaixador em Castela.
            Conta-se que durante a estadia de D. João de Sousa, como embaixador em Castela, em uma corrida de touros, estando Fernando e Isabel no seu palanque, mandou esta vir D. João à sua presença, tendo ordenado que, quando o português atravessa-se a praça, soltassem um touro, o que se cumpriu. Vem o touro que, não vendo mais pessoa alguma na praça, investiu com D. João de Sousa que, atirando-lhe o capuz, desembainhou a espada e com uma só cutila separou a cabeça do touro. Tornou o capuz, limpou a espada na pele do touro, e foi direito ao palanque real, tão indiferente como se nada tivesse acontecido.
            A rainha disse-lhe: “Buena suerte hesieste, embajador!” ao que D. João respondeu imediatamente, com o ar da maior sinceridade: “qualquer português faz outro tanto”.

                                                 A saia da virtuosa Maria Fernandes
Em Novembro de 1553, ocorreu o casamento do príncipe eborense D. João, com a princesa D. Joana de Áustria. O pai do noivo, o monarca D. João III, quis fazer à custa do povo, esplêndidas festas, e para as realizar, lançou um prezado tributo ao povo. O enlace, que tantas glórias e venturas prometia a Portugal, só desgraças nos acarretou, pois o príncipe D. João morreu logo a 2 de Janeiro de 1554, 18 dias antes do nascimento de seu filho D. Sebastião. Depois da morte do “Desejado” na funesta Batalha de Alcácer Quibir em 1578, a Coroa de Portugal passou em 1581 para Filipe II de Espanha, I de Portugal, filho do Imperador Carlos V e de D. Isabel de Portugal.
Havia nesse tempo em Montemor-o-Novo uma mulher muito pobre e muito virtuosa, chamada Maria Fernandes, à qual haviam também lançado o tributo de um tostão, para as tais festas.
Indo os exactores a sua casa buscar o dinheiro, respondeu ela, que muito desejava servir sua majestade, mas que não lhe era possível arranjar semelhante quantia.
Os beleguins, sem atenderem aos profundos suspiros e abundantes lágrimas da desgraçada, lhe levaram a saia com que ia à missa.
Quando morreu o príncipe, teve a rainha D. Catarina de Áustria tão grande mágoa, que esteve às portas da morte. A rainha teve dez filhos e filhas – D. Afonso, D. Isabel, D. Brites, D. Manuel, D. Filipe, D. Dinis e D. António, que todos morreram de pouca idade – D. Maria, que foi mulher de Filipe II de Castela (pela qual veio a nossa desgraça), D. Duarte, que foi arcebispo de Braga e prior-mor de Santa Cruz – e D. João, que é de quem se trata no texto, e que não chegou a estar casado senão três meses. Na sua aflição, dizia ela: “oito filhos me levaste, Senhor, agora este, que era a luz dos meus olhos, para que mo arrebataste também? Que pecados tenho cometido contra Vós, meu Deus?”
O rei (que sabia a história do roubo da saia) lhe respondeu: - Senhora, não vos queixes de Deus; não foi Ele que matou o nosso filho, foi a saia de Maria Fernandes, de Montemor-o-Novo.
D. João III, que era eminentemente religioso, atribuía o castigo de Deus, pelas vexações que consentira se praticassem, para o cumprimento dos seus desejos de inútil ostentação, a morte prematura de seu filho.
               
               
                                                                        Uma benfeitora memorável
            Faleceu no dia 6 de Março de 1945, a Senhora D. Josefa Diniz Perdigão Bandinhas, de 75 anos de idade, abastada proprietária.
            Já por várias vezes – infelizmente poucas – se tem registado o gesto altruísta de ricos montemorenses deixarem avultados donativos às instituições de beneficência de Montemor-o-Novo.
            Contudo, deixar “todos os seus bens” avaliados nalgumas centenas de contos, às Casas de Caridade, é um caso de rara benemerência, que, precisamente por isso, merece um relevo muito especial.
            Pois foi esse acto de inexcedível generosidade, aquele que a falecida D. Josefa Diniz Perdigão Bandinhas concebeu em vida e se tornou público e definitivo, após a sua morte, pelo conhecimento da disposição da sua última vontade, que se transcreve:
            “Lego o usufruto das minhas propriedades a meu marido; e por morte de meu marido, estes bens passarão à posse definitiva das casas de beneficência que nessa ocasião existam na vila de Montemor-o-Novo – Misericórdia, Asilo de Infância e Asilo de Mendicidade, ou outras que se venham a fundar e que tenham vida regular e situação legal, e que não se possa supor que se fundaram para comparticipação na herança.
            Nomeio testamenteiros os provedores, presidentes ou seus representantes, das mesas ou direcções das Casas de Caridade a que couberem os bens imóveis”.
            A acção da falecida Senhora, é das que perduram na memória de todos aqueles que venham a auferir da sua muita generosidade.
            Todos, absolutamente todos, se curvarão em sentida homenagem, perante a evocação da veneranda falecida, cujas generosas intenções só muito raramente alguns têm adoptado, mas nenhum certamente igualou.
            Após a morte de seu marido, Nazareno Joaquim Canelas Bandinhas, ocorrida  a  2 de Junho de 1986 a Santa Casa da Misericórdia, o Abrigo dos Velhos Trabalhadores e o Lar dos Pequeninos tomaram posse das herdades por ela doada - as Herdades dos Solteiros e da Aldeia. Depois de um período de reflexão, resolveram vender as referidas herdades, dividindo o dinheiro pelas três associações.            
            Pelo menos, uma instituição não esqueceu esta nobre dávida. Na sequência da proposta que apresentei, a Assembleia Geral do Abrigo dos Velhos Trabalhadores, uma das instituições beneficiadas pela herança, homenageou a D. Josefa Diniz Perdigão Bandinhas, dando-lhe o seu nome à sala polivalente, anexa aos novos treze apartamentos para casais.

Montemor-o-Novo/ Janeiro/2017
Augusto Mesquita

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