quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

MEMÓRIAS CURTAS


Uma vez por mês o Prof,. Vitor Guita traz-nos à memória, recordações do passado...

A tradição está na moda.
Depois do fado, do cante alentejano, do chocalho das Alcáçovas, da louça preta de Bisalhães e de mais umas quantas distinções, chegou a vez se a Unesco reconhecer a falcoaria portuguesa como património da Humanidade.
A arte de criar e treinar falcões e outras aves de rapina para a caça tem milhares de anos. Em Portugal, há notícia da existência desta actividade desde o século XII, isto é, desde a fundação da nacionalidade. São utilizadas, ainda hoje, técnicas milenares. Na opinião de muitos, a beleza desta modalidade cinegética reside mais no lance da caça e não tanto na captura da presa. Também é sabido que a falcoaria é muito frequentemente associada à classe da nobreza.
Mas, estimado leitor, não é de falcões, falcoeiros nem de aristocracia que nos vamos ocupar. Escolhemos ir até ao velho e modesto monte do Patalim, a que nos ligam laços familiares e onde, sempre que ali vamos colhemos ensinamentos acerca da natureza e de inúmeras práticas ancestrais.
Além disso, o tempo invernoso que se tem feito sentir trouxe-nos à lembrança um fenómeno extraordinário a que nos habituámos desde a infância e a que nunca conseguimos ficar indiferentes. Referimo-nos às compactas nuvens de pombos bravos que costumavam cruzar os ares na nossa região. Em certas alturas, era difícil, num só olhar, abarcar a frente do bando e a sua traseira, tal era o gigantismo da mancha negra.
Em Patalim, já por diversas vezes nos sentimos tentados a meter conversa com o vizinho Luís, quando esta anda ocupado a tratar dos seus pombos ou a treiná-los para servirem de negaça. Acostumamo-nos a Vê-lo sentado no poial, à porta da casa, ou junto ao velho pombal a fazer exercícios circenses com as aves e a observar-lhes atentamente os movimentos. Ao ser arremessado na vertical, cada pombo faz um breve esvoaçar até voltar a pousar no champil, na extremidade da vara. O comportamento das patas é importante e é preciso saber escolher as aves menos ariscas. Pombo manso facilita o treino e o seu “trabalhar” durante a caça.
Quanto ao treinador, exige-se uma grande dose de paciência e um certo jeito natural para exercitar a pombaria. Há quem lhe chame uma arte.
O vizinho Luís chegou a ter, segundo ele nos disse, dezasseis pombos aptos para negaça. Quanto a equipamentos, vai-se servindo de algumas varas de metal, à mistura com outras de madeira bem mais artesanais, com champil tosco de cortiça.
Quisemos aprofundar um pouco mais a conversa com Luís Casquinha, toda a vida um doente por pombos e por caça em geral. Mesmo sem negaça, tentámos apanhar-lhe algumas memórias. A princípio, o seu ar sisudo e desconfiado não prometia grande coisa, mas não tardaram a sair cá para fora bandos de recordações.
A primeira arma que teve foi feita a partir de uma espingarda de carregar pela boca. A modificação da arma foi executada por Feliciano Alface, um conhecido espingardeiro residente na Pintada e considerado um artista na matéria. Mais tarde, o Luís de Patalim  viria a adquirir, em Évora, espingardas de melhor qualidade. Uma Liége, na Rua de Alconchel, custou-lhe uma mão cheia de contos.
A partir dos dezasseis ou dezassete anos, sentiu-se tão deslumbrado a caçar, que nunca mais perdeu essa paixão. Com os seus pombos de vara, chegou, segundo nos disse, a fazer pousar bandos inteiros de pombos bravos e a matar cerca de duas dezenas com dois tiros. Palavra de caçador! Os cerca de noventa anos é que já não o deixam manter o andamento de outros tempos.
Isto de caçar pombos à negaça tem que se lhe diga! É preciso muito calo! – desabafou o vizinho
Luís, que se orgulha de ter iniciado muita gente nessa arte.
A partir de meados de Outubro, era altura dos pombos bravos começarem a chegar, só emigrando lá mais para o fim de Fevereiro, princípio de Março. Passavam aos milhares por cima de Patalim e dos campos em redor. Alguns “esbandalhavam-se” e ficavam por cá. Serviam depois para chamar os seus congéneres. Os pombo falam uns com os outros como os fossem pessoas.  Tentou convencer-nos o vizinho Luís.
A experiência de caçador diz-lhe que há sítios por onde nunca passou um pombo. Porem, Vale de Migalhas, Pero Mogo, Moita, Sousa, Cabido, Pégoras,  Carrascalinho ou então Murteira são herdades onde eles procuravam comida. Luís Casquinha lembra-se de ver muitas dessas propriedades tapadinhas de pombos. Chegou ali a matar dezenas deles, especialmente quando caçava à espanhola.
Houve um tempo em que a caça ra vendida a um negociante de Guadalupe. Depois passou a vendê-la à beira da estrada. Era um bom tacho. – Não escondeu o vizinho Luís. Ao mesmo tempo que foi lamentando – Hoje não há pombos como havia antigamente! Está tudo diferente.
Noutros tempos, as varas eram metidas no interior das árvores, em posição horizontal. O pombo que servia de negaça era encarapuçado e fixo no champil de cortiça, na ponta saliente da vara. Era preciso saber jogar com o vento. Existe mesmo uma e expressão na gíria dos caçadores e que se aplica aos pombos quando estes vêm de “bico ao vento”.
Um dos inconvenientes daquele processo ea a reduzida visibilidade provocada pelas abas das árvores e a dificuldade em manobrar.
Entretanto, foram aparecendo equipamentos mais elaborados, até chegar às varas metálicas extensíveis e outras modernices que vieram permitir a montagem vertical, sem necessidade de subir às árvores. A instalação passou a ser feita a partir do solo, passando a vara através dos ramos. O pombo treinado e colocado no champil e transportado até ao cimo das árvores onde irá “trabalhar”. Ganha-se em visibilidade e controla-se melhor o vento.
Porem, nada disto serve, se os pombos não estiverem bem treinados. Já aqui se disse que a escolha deve recair sobre aves mansas e, já agora, que sejam o mais parecidas possível com os pombos bravos. Há torcazes, sobretudo os mais velhos e experientes, eu não vão em contos de sereia que lhes podem ser fatais. Eles conhecem muito bem as diferenças entre os da sua igualha e aqueles que são amestrados.
Quando pensávamos que já estava tudo dito, o vizinho Luís veio com mais uns quantos ensinamentos acerca desta arte de caçar. É que as armações que servem de abrigo aos caçadores também têm os seus segredos. Hoje, aposta-se muito nos camuflados, mas quando as barracas são feitas com rama das árvores, o lado escuro das folhas deve ficar para fora. Diz a experiência do vizinho Luís que, nas folhas clras, os pombos não lhe pegam. Vá-se lá entender estas coisas!
Ficaríamos aqui mais umas quantas linhas a saborear muitas outras histórias que nos foram contadas. Porem é tempo de acabar.
Bem! O que agora vinha a calhar era uma canja quentinha de pombo bravo! Mas, com a crise da caça que anda por aì, tudo não passa de uma miragem. Limitamo-nos a seguir aquela máxima de Camões no canto IX dos Lusíadas, quando falava na Ilha dos Amores: ”Melhor é experimentá-lo que julgá-lo – Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo”.

Até breve e Boas Festas
Vitor Guita – Dezembro 2016
In . O Montemorense- transcrição permitida pelo Autor


1 comentário:

Helder Salgado disse...

Esta bonita descrição do Prof. Vitor Guita recordou-me alguns episódios de caça aos pombos.
Ainda em Terena criei pombos cinzentos de uma raça que o Miguel Neves me dera um casal.
Treinei-os, levando-os muitas vezes na carrinha, largando-os. Soltos subiam, davam uma ou duas voltas e dirigiam-se para Terena. Chegavam sempre primeiro que nós.
Um dia, o meu pai e Nunes resolveram ir à herdade do Mourão haver se apareciam os pombos.
Estava uma geada de estalar e um frio de rachar. Escolhido o sítio estratégico, esperámos a vinda dos pombos. Não aguentámos muito tempo dentro do aguardo, que era um espesso e sombrio montão de carrascos.
- Vamos para a abrigada daquela azinheira - disse o meu pai. Era um árvore de tronco grande e o Sol batia lá. A espingarda ficou no aguardo, mas o pombo, já de caparrão, veio comigo. De repente surge um bando de pombos.
- Aventa o pombo, ordena o meu pai - assim fiz e a espingarda nos carrascos. O sol tinha nascido há pouco tempo, era cedo e os pombos tinham fome. Pudemos observar de muito perto como as aves procediam para se alimentar. Pousados na azinheira batiam com as asas e logo baixavam para engolir as bolotas, assim estiveram neste vaivém até que um tiro do Nunes os fez levantar.
O Nunes não matou nenhum pombo e quando chegou ao pé de nós, claro perguntou porque não se atirou.
Doutra ocasião, já caçador dei uma volta à caça, sempre com o pombo (era sempre o mesmo). Na serra da Sina surge um bando de pombos, largo a negaça, pousam. Desta vez pude observar as aves no chão. Ave bonita de andar elegante, cor cinzenta a sobressair a "gravatinha" vermelha no pescoço. Atiro, errei. (até me pareceu que tinha pena de acertar)
Quando vim para Almada, ainda caçador?!! trouxe o pombo. Um dia foi até ao Infantado dar uma volta. Surge um atalho de pombos seixas, jogo o pombo, que dava uma volta e voltava para perto de mim. Os bravos, pombos pequeninos pareciam setas, espingarda à cara, pombos desaparecidos. Devo confessar que algumas vezes não atirava receando atingir a negaça. E, como o prof. Vitor disse "Palavra de caçador"
Durante os anos que caçei que me lembre trouxe três pombos para casa. E, Foram estes "êxitos" que me levaram a deixar de caçar.
Helder Salgado