Terça, 01 Novembro 2016
Uma vez que a crónica vai para o ar no
dia de Todos-os-Santos, ocorreu-me que aqui estaria uma palavra também já caída
em certos usos no domínio da metáfora.
Os preceitos canónicos
dizem que, de morto a santo, têm de decorrer alguns anos, se bem que o prazo
tenha vindo a encolher com a velocidade furiosa pela qual os tempos
contemporâneos se pautam e, em menos de um ai, vi gente que foi da televisão ao
panteão.
Fora ou dentro da religião, o santo é e
será sempre sinónimo de puro, perfeito, incorruptível, verdadeiro, autêntico,
sincero, imaculado, impecável, perfeito, e por aí fora. E quer-me também
parecer que, ou se acumulam os adjectivos ou, tenham paciência (de santo até!)
e é-se apenas uma meia-dose de santo. Bem ou mal servida, vai depender do tempo
que convivamos com tal personagem e percebamos se essa parte não é compensada
por outra, a que cai no domínio oposto, e que talvez seja a dos endemoninhados.
Quando o termo se transforma em metáfora
vai por aí fora a dessacralizar-se até à banalidade e, por vezes, ganha até o
carinhoso diminutivo. E não se iludam porque quem chama outro ou outra de santo
ou santinha é porque o milagre – com muitas aspas – foi em seu benefício
próprio e não para bem da humanidade. Mais do que virtudes heroicas em geral, o
santinho fez-me foi um grande favor.
Claro que também aplicamos o termo às
crianças, sem modos interesseiros em princípio. Mas até aí quem de facto sai a
lucrar parece ser quem tem de conviver com esse tipo de cachopos. E aliás,
quando usado com ironia, chamar a um adulto santinho ou santinha é um tudo nada
insultuoso. Sendo que, no feminino, sobe, em certas circunstâncias, uns
escalões na régua do escárnio e maldizer.
Beatificação natural, diria, é a que no
entanto sucede quando os que nos são próximos e de quem gostamos mesmo muito
partem para sempre. Que, enfim, é muito tempo mas onde todos acabaremos por
chegar. É a beatificação da memória selectiva, a que é filtrada pelo coração
que é a parte do corpo onde guardamos todas as emoções e onde também guardamos
os corações que pararam. Para sempre. Sem ironias e com a dor que nos faz às
vezes esquecer que afinal é tudo só uma metáfora, isso do lugar que é o
coração.
Até para a semana.
Cláudia Sousa Pereira
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