quarta-feira, 19 de outubro de 2016

UMA DEFERÊNCIA DO A.C.

Um colega e amigo, sabendo-me amante das letras, como ele, enviou-me este pequeno conto com pedido de comentário, pois ainda não se sente seguro do modo como a escrita lhe sai. Em particular encorajei-o, mas logo me ocorreu a ideia de o submeter a um grupo mais vasto de leitores. Ficas assim, amigo Chico, com o pedido da sua publicação no concorrido blog “Al Tejo” e a missão de me fazeres chegar opiniões, boas ou más, dos ilustres e exigentes assíduos dessa página.
Sem outro assunto, agradeço toda a atenção e envio um abraço com elevada estima e consideração.
Teu amigo
AC

               Uns Comprimidos para Acalmar...
Um dia destes fui procurado pela mulher do Zé Spinafre, meu cliente e amigo desde que abri consultório na vila, já lá vão vinte anos.
Maria Rosa, que fez este ano sessenta e cinco primaveras, é mais nova que o marido, embora aparente mais idade.
Diz ela sempre que leva a conversa ao seu moinho:
«Quem tem as canseiras todas desta vida são as mulheres!: quem faz a lida da casa, quem trata da roupa e quem prepara o comer?..., e os filhos, quem cuida deles e se rala nas aflições?».
Fiz um gesto com a cabeça em sinal de concordância, pensando arrumar o assunto, mas Maria Rosa tinha-lhe dado corda.
«Eu vejo pelo meu homem; se tivesse que parir a perna de um gaiato, que fosse, estava dez anos para se recompor.»
«A caminho da taberna não se cansa, homem dum raio que não sei como o vinho não dá cabo dele.»
Bem, se uma pessoa não a interrompe, Maria Rosa é capaz de estar uma tarde inteira a desancar no marido.
Ele, esguio, ainda bem tapado de cabelo que mantém o mesmo tom castanho claro, embora salpicado de alguns brancos, não parece ter mais seis anos que a patroa.
E pensa que o vinho não só não deu cabo dele, praga que tantas vezes ela lhe rogou, como o tem ajudado a afastar, com algum resultado, o peso dos anos.
Quando quer pôr a Maria Rosa ao rubro o Zé Spinafre conhece-lhe o ponto fraco: -ó D. Maria Rosa ainda consegue mirar-se inteirinha no espelho do guarda-fato?
Esta frase é sempre dita em sítio propício a fuga que evite ser atingido com o que quer que seja que a mulher tenha à mão.
E, já de longe, atazana -lhe mais o juízo com a habitual máxima que tanto a irrita: -se beberes um copinho, minguarás o teu corpinho!
Quando nesse dia fui atender o toque persistente da campainha do consultório, ainda meio ensonado de uma pequena sesta que inadvertidamente fizera encostado ao tampo da secretária, e dei de caras com a Maria Rosa especada na minha frente, lembrei-me que se o espelho do guarda-fato tivesse as medidas daquela porta o Zé Spinafre tinha razão.
Cerrei os dentes para conter o riso que quase se desenhou nos lábios.
O semblante da visitante, não parecendo ser de doença, anunciava timidez e pouco à vontade, pois lançou-me uma “boa tarde senhor doutor” a gaguejar, em contradição com a sua desenvoltura e desembaraço habituais.
-Ora viva Maria Rosa!, -cumprimentei efusivamente, abafando ainda um pequeno esgar que não contive ao vê-la ultrapassar a entrada do consultório de esguelha. E o Zé por onde anda ele? – larguei à pressa, para disfarçar.
«A estas horas… adivinhe lá o senhor doutor onde o trangalhadanças pára!... não é difícil adi…vinhar, pois não?» – alvitrou com desdém.
-Mas não é pelo Zé que me vem visitar, calculo… – sugeri de imediato para evitar ouvir o rol de lamentações habituais sobre as tibiezas do desgraçado – a senhora não me parece doente, embora seja claro que algo a apoquenta… – deixei a frase no ar, com o propósito de a pôr à vontade.
«Aí é que o senhor doutor se engana. É mesmo pelo meu Zé que eu cá venho – fez uma pausa no discurso e depois continuou – ...e também por mim que ando com ele pelos cabelos!»
Maria Rosa estava vermelha que nem um pimentão, sentada à minha frente do outro lado da secretária, com a voz e as mãos trémulas de um nervosismo que não lhe conhecia.
-Acalme-se mulher que só a morte nesta vida não tem remédio – argumentei em jeito de consolo e compreensão, procurando transmitir confiança. Mas é assim tão grave o problema que vocês têm?... …que eu saiba saúde não vos falta e os filhos estão criados e arrumados, o que é um grande descanso.
O Zé de vez em quando entorna uns copos, é verdade, mas, com a idade dele, se mal não lhe fez, mal já não lhe fará!
«Quando o Zé entorna uns copos quem paga sou eu, senhor doutor» – frisou em surdina, inclinada na minha direção e sondando os quatro cantos do consultório, denunciando receio em ser ouvida.
«Olhe Dr. Joaquim, o senhor sabe muito bem o que acontece às mulheres na minha idade – afirmou com os olhos pregados no tampo da secretária –  quando à noite me deito na minha cama é para dormir e descansar do muito que ainda trabalho durante o dia; mas o desavergonhado do Zé quando recolhe à noite com o grão na asa, o que acontece com alguma frequência, vem com ideias malucas da taberna e o que quer é paródia, não me deixando sossegar… estou-me a fazer entender, não estou senhor doutor?» – ultrapassada a barreira inicial do desabafo, mostrava-se agora calma e segura de si.
Eu ouvia atentamente, não fazendo qualquer comentário, mas já prevendo o fim daquela “consulta”.
«Preciso da sua ajuda para o acalmar – sublinhou com um timbre de voz em crescendo e fixando-me nos olhos – o senhor terá, com certeza, para aí uns comprimidos que lhe cortem esse efeito endiabrado que o vinho lhe provoca e que não me deixa pregar olho.»
«Garanto-lhe que ele não saberá de nada…» – sussurrou desta vez com voz quase inaudível, ainda assim não fosse o marido estar a ouvi-la.
Foi então a minha vez de olhar fixamente o tampo da secretária, cogitando como me iria safar da embrulhada que viera ter comigo, naquele princípio de tarde calma, mas que tão inesperadamente animada se tornara.
-Esses comprimidos não se podem receitar sem mais nem menos e a qualquer pessoa – afirmei com ar austero e profissional, de quem domina o assunto com à vontade.
E insisti, com aparência de preocupação para sugerir alguma cautela e receio:
-Por vezes o seu efeito com o álcool pode ser contraproducente e desastroso…
…tenho que pensar bem no caso e apanhar o Zé a jeito de lhe mandar analisar o sangue – fui dizendo ao mesmo tempo que me levantava da cadeira em direção à porta, dando a entender que a “consulta” terminara.
Maria Rosa saiu sorridente, confiante no meu interesse e competência em encontrar remédio eficaz para a sua “preocupação”.
Quando fechei a porta suspirei de alívio e sorri, em silêncio, com o desejo de paródia que a vinhaça provocava no meu amigo Zé Sspinafre.
 Paródia inocente…, com certeza!



5 comentários:

Anónimo disse...

Dr. Joaquim:

Transmita ao homem seu amigo e colega que vá em frente, que continue a passar receitas do mesmo, ou outras parecidas.

O enfermo,

MJ

Anónimo disse...

É comum dizer-se: «Criticar é fácil»
Mas eu, que nestas coisas não alinho muito com os lugares comuns, digo que criticar só é fácil quando o lema é deitar abaixo. Pois bem, nesta crítica, assumidamente crítica, e porque o AC quer crítica franca, a fim de a comunicar ao amigo, vou dar-lhe duas ou três pistas, vindas da minha qualidade de leitor (e aqui quero fazer uma declaração de interesse): Desde já confesso que sou incapaz de alinhar uma narrativa como aquela que nos é apresentada, mas, como sou um leitor insaciável e compulsivo, supondo eu que já li quase tudo o havia para ler - passe o enorme exagero, está bem de ver - ainda hoje me sinto preso por inibições que me impedem de escrever tudo aquilo que a vontade me pede. Mas, e era aqui que eu queria chegar, o facto de não ser capaz de escrever (e não faltaram tentativas, posso garantir), não deve impedir-me de criticar o que os outros escrevem.
A literatura portuguesa está cheia de obras de muito valor, vindas da pena de médicos: Júlio Diniz, Fernando Namora, Miguel Torga, António Lobo Antunes. Estes são alguns exemplos apenas. Estou até em crer que ainda está por fazer a ligação dos médicos à literatura portuguesa. Alguém com a suficiente capacidade deveria meter mãos à obra. Até já um dia desafiei um médico meu amigo, que simultaneamente é um bom escritor, para o fazer. Estou à espera que ele assuma esse trabalho.

No que ao presente conto diz respeito, apenas meia dúzia de palavras: Está estruturalmente perfeito. Conta-nos com singeleza uma história de médico de província, com muita simplicidade e malícia. Acreditamos que o escritor pode ir mais além, acreditamos que terá outras histórias merecedoras de serem contadas. É uma história ligeira, mais próxima do "João Semana", do que do dramatismo dos "Retalhos..." do Fernando Namora. Em suma, AC, diga ao seu amigo para continuar a escrever.
Nós cá ficaremos à espera para o ler.
Cumprimentos
JR

Anónimo disse...

"É uma história ligeira, mais próxima do João Semana".
Esta a frase que ressalta da crítica do JR, com a qual estou em desacordo.
Neste pequeno conto vive-se um drama social, se atendermos a que "nem só de pão vive o homem", salpicado de ironia e humor.
Numa vilória do "Portugal profundo", um médico, com paciência para ouvir, tem pela frente um caso que não consegue resolver.
Percebe-se que entre Zé Espinafre e Maria Rosa o amor já era. Ela engordou, parece que aos limites da pele humana, perdeu o atrativo feminino de outros tempos: Zé Espinafre atira-lhe que a sua imagem já não cabe no espelho do guarda-fato. Ele enveredou pelos copos: quando se entorna vê a imagem da Maria Rosa do antigamente, mais apetitosa que o mel.
Concordo que o Dr. Joaquim veste a casaca do "João Semana", e não tem mesinha para este drama (repetitivamente caseiro), a não ser ouvir a Maria Rosa e rir-se da paródia equívoca do Zé Espinafre.
Um abraço para o amigo do Ac

Anónimo disse...

O conto do amigo do AC está a sair da primeira página, sendo possível que esta troca de impressões fique por aqui, mas, nunca é tarde para dar a mão à palmatória, como se dizia noutros tempos, e é isso, dar a mão à palmatória, o que eu faço nesta hora.
A observação do comentador das 20:29 fez-me reconsiderar. E não é que tem razão!?
Retiro, com humildade, a "historia ligeira".
Mas continuo a pedir que o amigo do AC nos mande outras histórias
Cumprimentos.
JR

Anónimo disse...

Este conto do amigo do AC augura que o Al Tejo possa ter descoberto outro colaborar para a página.
O conto, muito simples e em discurso direto, introduz-nos na complicada vida de três personagens de uma "vilória do Portugal profundo".
Os comentários estão ao nível, sendo de sublinhar a honestidade intelectual do JR (que já conhecíamos).

Parabéns ao Al Tejo.