Uma vez por mês
o Prof,. Vitor Guita traz-nos à memória, recordações do passado
Tornou-se já um hábito aproveitarmos o tempo de férias para
desvendarmos outras Memórias, escutando vozes de outras terras e de outras
gentes
Em Vale de Madeiros, uma pequena aldeia entre Canas de Senhorim e
Caldas da Felgueira, fica a Quinta da Lagoa. O queijo que ali se produz ainda
faz lembrar o genuíno queijo da serra a que nos habituamos noutros tempos.
Este ano não nos limitámos a uma breve visita e a comprar os
produtos da Quinta. Convidamos Jorge Pais, pastor e produtor, para trocarmos
dois dedos de conversa. A palavra pastor, neste contexto, significa que tem
rebanho próprio.
Num fim de tarde quente do mês de Agosto, fomos recebidos pelo
produtor beirão, que, apesar dos afazeres, nos abriu as portas da sua casa,
mesmo ao lado da queijaria. A decoração, logo à entrada, fazia adivinhar uma
forte paixão por animais. Além da esperada dedicação às ovelhas, ficámos a
saber que o dono da Quinta te uma admiração especial por cavalos.
Entrámos e sentámo-nos numa das salas frescas do rés-do-chão. Ali
estivemos cerca de três horas num interessante diálogo que, em vários momentos,
fez a ponte entre a Beira Alta e o Alentejo.
Num tom pausado, paciente, Jorge Pais foi desfolhando algumas das
suas memórias.
Como acontecia com diversos pequenos agricultores da região, o pai
tinha um pequeno rebanho de ovinos. Tratava-se de umas escassas dezenas de
ovelhas da raça bordaleira, segundo entendemos.
Das ovelhas obtinha-se o estrume para fertilizar as terras e
tirava-se a lã, que, noutros tempos, valia bom dinheiro. A venda de borregos
constituía outra fonte de receita para a família e, em dias de festa, abatia-se
um dos melhores exemplares para ser servido à mesa.
Jorge Pais lembra-se de, lá em casa, guardarem os queijos dentro
das arcas de milho. Havia quem o fizesse, mas no centeio. Processo idêntico era
utilizado para conservar presuntos, enchidos, e até alguns frutos.
A produção queijeira não se destinava ao comércio.
Dava para gasto da casa ao longo do ano. O queijo velho que
chegava à nova época era de comer e gritar por mais.
Neste preciso momento da conversa, o nosso anfitrião não resistiu
a partilhar connosco algumas imagens marcantes que lhe ocorreram da sua avó
materna.
A idade tudo dá e tudo tira. Chegou uma altura em que os
fragilizados dentes da senhora ou a ausência deles não conseguiam entrar com a
consistência do queijo mais velho. Sentada ao lume, na cozinha de granito e
telha vã, a avó ia cortando nacos de queijo, que amolecia no calor das brasas
para comer com a saborosa broa de milho. Um verdadeiro manjar dos deuses!
Ficámos depois a saber que Jorge Pais ainda apanhou o tempo em
que, de Junho a finais de Agosto, se praticava anualmente a transumância. Esta
prática ancestral levava pastores e rebanhos a percorrer grandes distâncias,
por veredas e canadas em demanda dos melhores pastos.
Era na Póvoa de Santo António, terra natal do nosso interlocutor,
que se juntavam pastores das aldeias vizinhas, acompanhados dos rebanhos. Antes
de subirem à Serra, os guardadores vinham ali em romaria, à volta da capela,
pedirem ao santo padroeiro um ano bom de pasto e proteção para o gado. Os
animais traziam, nessa ocasião, os melhores chocalhos e muitos deles desfilavam
ornamentados com vistosas fitas. Dali deslocavam-se para a grande concentração
em Fragosela, perto de Viseu, de onde partiriam às centenas, para a serra.
Um verdadeiro turbilho de lã, de balidos, de ladrar de cães, de
tilintar de chocalhos, de gritos e assobios dos pastores.
O destino podia muito bem ser a Serra da Estrela, mas pastores e
rebanhos aqui na zona de Canas, procuravam muito frequentemente a Serra de
Montemuro. A montanha oferecia excelentes pastagens.
Há notícia de alguns rebanhos rumarem em direcção a outras regiões
do país, nomeadamente até ao Sul, muito provavelmente à procura do restolho do
trigo e de outros cereais.
Findo o período da transumância, era o regresso a casa. Dentro de
algum tempo viria a época do alavão, de começar a fabricação do queijo. Eram
precisos quatro litros e meio de leite de ovelha, às vezes mais, para fabricar
um só Queijo da Serra.
Quanto à flor do cardo, tão necessária para coalhar o leite, vinha
do Alentejo. Ainda hoje, alguns produtores aguardam ansiosamente o coagulante
natural que há-de chegar de terras transtaganas.
A conversa mudou de rumo durante alguns momentos, quando o amigo
Jorge virou a página dos queijos e passou a um outro tema, que,
surpreendentemente, nos conduziu de novo ao Alentejo.
Já lá vão uns anos, o agora proprietário da Quinta da Lagoa
trabalhou na Companhia de Fornos Electricos instalada em Canas de Senhorim.
Produziam-se ali grandes quantidades de carboneto de cálcio, que em contacto
com a água, dava origem ao acetileno, muito usado em soldadura nos gasómetros
dos mineiros. Muitos dos nossos leitores lembrar-se-ão também dos gasómetros
que iluminavam as barracas da feira e do cheiro desagradável que exalavam.
Para obter o carboneto de cálcio, era necessária cal, que vinha da
zona de Cantanhede, e carvão, muito carvão, que chegava às carradas do
Alentejo.
A energia electrica necessária para a elaboração dos fornos
provinha da barragem da Lagoa Comprida, na Serra da Estrela.
Nas últimas décadas, a subida do preço da eletricidade e outros factores
levaram à paragem dos fornos. Sensivelmente na mesma altura, encerraram as
minas de urânio da Urgeiriça.
O que iria ser de Canas de Senhorim? – Interrogavam-se as gentes.
Centenas de trabalhadores no desemprego, muitos deles especializados. Esperava-se
o pior.
Não foi assim que aconteceu. Uns passaram à reforma; outros
encontraram de novo trabalho. Começaram a surgir diversas industrias no
Concelho de Nelas, algumas estrangeiras, tirando partido do saber e da
experiência de alguns dos melhores soldadores do país e e outro pessoal
qualificado. Um número significativo montou os seus próprios negócios, vindo a
ser, em diversos casos, empresários de sucesso.
Jorge Pais foi um dos trabalhadores que saiu nesta fornada. Embora
nunca tivesse tido problemas com quem mandava, pensou em não mais voltar a ter
patrões. O negócio das ovelhas e do queijo parecia uma boa saída. A
cumplicidade da sua mulher, a D. Palmira, foi certamente importante.
Natural de Vale de Medeiros, a D. Palmira foi professora na
aldeia, e o negócio que se perspetivava não lhe era completamente estranho. O
pai criava vacas leiteiras e fazia distribuição do leite pelas redondezas.
Segundo nos contou Jorge Pais, tudo começou com quinze ovelhas de
raça bordaleira ou, como agora é mais frequente dizer-se, raça Serra da
Estrela. Hoje a Quinta da Lagoa abastece de queijo e outros produtos alguns dos
melhores estabelecimentos da região e não só, marcando presença nas grandes
feiras de queijo do país. A visão moderna, o espírito dinâmico da geração mais
nova tem contribuído para o sucesso da empresa.
Mas nem tudo são rosas. Exigências comunitárias apertadas,
encargos e papelada de toda a ordem tornam a tarefa difícil. A juntar a tudo
isto, há que resistir a uma certa concorrência, que, em vez de se cingir ao
leite das raças autóctones, utiliza leites de outras raças com maior produção
leiteira.
A ponta final da nossa conversa foi acompanhada de uma prova de
queijos.
A voz autorizada de Jorge Pais, pastor e produtor empenhado na
defesa do Queijo da Serra da Estrela, D.O.P. , foi revelando alguns segredos do
famoso produto, que, tal como o vinho e o amor, parece ter também os seus
mistérios. Vamos tentar guardar algumas dessas dicas.
E pronto. Despedimo-nos por hoje, com um pedido de desculpas a
todos os amigos leitores que não gostam do cheiro nem do sabor do queijo, nem
sequer de vê-lo á sua frente.
Até um dia destes
Vitor Guita
In: "O Montemorense" - Setembro 2016 - Transcrição
autorizada pelo Autor
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