Quinta, 20 Outubro 2016
Em Outubro de 1536 institui-se
oficialmente em Évora a Inquisição portuguesa. Época terrível de intolerância,
perseguições religiosas, tortura, autos de fé e outros mimos aplicados a todos
os que fossem denunciados como não cumprindo os preceitos morais pregados pela
Igreja Católica.
Passados estes 480 anos ficou entre nós o gostinho pela denúncia, pela
delação anónima ou assumida que se reflecte no correio electrónico enviado às
autoridades competentes, para denunciar a marquise ilegal do vizinho, o muro
com mais vinte centímetros ou a suspeita de que qualquer coisa de errado se
passa por causa de “um certo ar suspeito”.
Esta herança de delação é hoje assumida
como “acto de cidadania”, legitimada, tal como naqueles tempos sombrios, pelo
conforto de estar a fazer o que é certo e a ténue esperança de uma qualquer
redenção terrena ou celeste.
Hoje, as fogueiras onde ardem os ímpios
e heréticos são fisicamente mais suportáveis mas não deixam de ser,
simbolicamente, formas de execução. Homicídios de carácter perpetrados por uma
turba entusiasmada que segue acriticamente um título de jornal, uma frase, um
qualquer gesto comunicacional que se torna viral em poucos segundos.
Diz-se, com a mesma intenção, “vou para
a televisão denunciar-te”, como se da Mesa do Santo Ofício se tratasse.
É neste contexto que tivemos nos últimos
dias um desfilar de inquisidores, defensores da cartilha neoliberal, pelas
rádios e televisões pregando o seu evangelho contra a proposta de Orçamento de
Estado, apresentada na Assembleia da República.
Baralhando, confundindo, manipulando,
apagando da memória medidas de outros Orçamentos.
Escondem, no essencial, tudo o que possa
ter de positivo, de recuperação de rendimentos do trabalho. Por vontade deles,
e apesar desta proposta de Orçamento ficar muito aquém do que seria possível e
desejável, não haveria qualquer dúvida que o seu fim seria o cadafalso ou a
fogueira no final destas verdadeiras sessões de tortura, que pretendem que o
pobre documento confesse todos os seus crimes.
Vale tudo, incluindo um senhor apresentado
como “fiscalista” a confundir impostos com taxas e tarifas, muito indignado
porque a carga fiscal não diminui “apenas” se deslocou e é isso que o incomoda.
Como já disse este é um orçamento que
poderia e deveria ir mais longe se libertado dos constrangimentos impostos pela
presença de Portugal nesta União Europeia de voz única e em desagregação.
O que se exigia era um debate sério em
torno das medidas mais significativas, com o contraditório a substituir o coro
dos inquisidores destes tempos em que, parafraseando o poeta, o fogo arde sem
se ver.
Por falar em poetas e escritores
deixem-me assumir aqui que gostei que um poeta que escreve canções fosse
nomeado para um prémio de prestígio, fugindo do coro dos que acham que um poema
dito a cantar não merece entrar no palácio real da poesia.
E mesmo correndo o risco de ser
denunciado por esta heresia, estou a gostar muito da ideia de que neste mundo
em que todos sabem tudo sobre todos, incluindo a sua localização, a Academia
Sueca não consiga dar uma palavrinha ao senhor Zimmerman.
Até para a semana
Eduardo Luciano
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