Tiago Salgueiro, personalidade
sobejamente conhecida nos meios académicos da região, Ajudante de Conservador no Museu-Biblioteca
da Casa de Bragança em Vila Viçosa e com
uma vasta obra literária já publicada da qual destacamos « Fortificações Quinhentistas
de Vila Viçosa, Do Japão para Vila
Viçosa, Vila Viçosa: Idéias para o Futuro, Notáveis Calipolenses, entre outros,
é também um interessado em relembrar factos e lendas do passado.
Foi ao ler a história “ Das Quatro Cruzes”, por si dada a
conhecer, que lhe solicitei autorização para a compartilhar no Al Tejo. De
imediato o Tiago Salgueiro deu cabimento à minha solicitação, acrescentando: “Sinta-se à vontade para colocar no Al Tejo tudo o que
considere pertinente, sobre os textos que vão sendo publicados!”
Em face da sua autorização é com imensa
satisfação que a partir de agora este nosso espaço passa a contar com mais um
colaborador de excelência:
Chico Manuel
A trágica história das Quatro Cruzes...
Quase todos
os Calipolenses conhecem esta história, que se tornou lendária e com várias
versões. A que conto nestas linhas é da autoria do Padre Joaquim Espanca, que
viveu de perto estes trágicos acontecimentos…
Corria o ano
de 1838…
Por aqueles
dias, aquartelou-se no Castelo de Vila Viçosa o regimento de Infantaria 4º,
comandado pelo Tenente João Caldeira. Três soldados deste destacamento
começaram a dar uns passeios vespertinos até à Quinta da Fonte da Cebola de
Baixo, situada a oriente de Vila Viçosa. Tratava-se de um lugar inóspito e nada
convidativo a caminhadas.
O hortelão e
a sua mulher, por serem hospitaleiros, disponibilizavam merendas de frutos aos
referidos soldados, que ali se deslocavam quase diariamente. Havia portanto
entre os soldados e a família do hortelão um princípio de amizade.
No dia 19 de
Dezembro, o hortelão, chamado João Baptista Picanço, veio logo de manhã ao
mercado semanal de Vila Viçosa para vender quatro ou cinco porcos e assim poder
pagar ao senhorio a renda anual da quinta. A venda dos suínos era feita no
Rossio, onde foi visto pelos três soldados. Cumprimentaram-se e trocaram
algumas palavras. O hortelão demorou-se aqui até ao meio dia e, como não
conseguiu vender os porcos, ordenou ao seu filho que os levasse de volta a
casa.
José Vicente,
um dos três soldados, com a ganância de ficar com o dinheiro que João Baptista
Picanço tivesse arrecadado pela venda dos porcos, chamou os outros dois
camaradas de armas e engendrou um plano para que fossem nessa noite
assaltar-lhe a casa e roubar o dinheiro (que não realidade não existia). Como
eram todos da mesma laia, concordaram com o plano, que parecia fácil e
lucrativo.
Ao cair da
noite, vestidos com capotes de pano pardo e armados com baionetas e
espingardas, saíram pela Porta de Olivença (no Castelo), passaram pelos
ferragiais de São Domingos e pelo Pinhal de El Rei, para chegarem até à Quinta
da Fonte de Cebola de Baixo.
Seriam quase
oito da noite, o que em Dezembro significa noite cerrada.
O hortelão
daquelas paragens solitárias acabava de cear com a família, depois de terem
cerrado a porta logo ao anoitecer, como eram costume nas habitações dispersas
pelos montes que circundavam Vila Viçosa. Acercavam-se todos na chaminé,
regalando-se no pino do Inverno com um bom lume. Os homens conversavam e as
mulheres rezavam o terço.
No silêncio
da noite, eis que de repente, se ouve bater na porta da casa!
Toda a
família ficou assustada, pois naquelas paragens solitárias, fora de horas,
todas as aproximações são suspeitas.
- Quem é?
– pergunta o hortelão.
- Abra a porta!
- Eu não abro a minha porta de noite!
- Abra a porta, em nome da Rainha! – vocifera um dos bandidos engrossando a voz.
- Já disse! Não abro a minha porta fora de
horas!
- Abra a porta ou deitamo-la abaixo!
E começaram
os bandidos a dar coronhadas na porta.
O camponês
estremeceu de susto. Ocorreu-lhe então que pudessem ser soldados a fazer alguma
diligência e disse para a sua mulher:
- É a tropa! Vou abrir!
A mulher,
como que adivinhando a catástrofe que os esperava, rogou ao marido para que
este não abrisse a porta. Mas os de fora instavam também, de forma mais
agressiva e determinada:
- Abra a porta em nome da Rainha!
João Baptista
Picanço levanta-se e destranca a porta, pega na chave e dá-lhe meia volta para
a abrir. Enquanto fez isto, levantou-se também da chaminé o seu sobrinho José
Joaquim Picanço, que achou prudente não assistir àquela visita domiciliária tão
suspeita. Era melhor opção recolher-se mais cedo para o palheiro onde costumava
dormir, juntando-se ao criado Daniel Boquinhas, que já lá se encontrava.
Essa saída
foi feita por um buraco rasteiro da casa e que dava passagem para o palheiro e
para a cavalariça. Este procedimento era muito utilizado nos montes
alentejanos, a fim de poderem ser trancadas por dentro as portas das
cavalariças e deste modo ficarem mais seguras.
Quando o
hortelão abriu a porta da casa, logo o bandido lhe infligiu um golpe tão
violento na cabeça, que lhe enterrou os fechos no crânio, fazendo-o cair de
costas, morto…
À vista deste
triste cenário, levanta-se a mulher em prantos e aos gritos de socorro,
sustentando nos braços um filho de três anos, que afagava enquanto se aqueciam
na chaminé. E logo o segundo bandido lhe deita as mãos às orelhas, para lhe
roubar os brincos… Assim que os retirou, os bandidos trespassaram-na a golpes
de baioneta, deixando-a estendida ao pé do cadáver agonizante do marido. Também
o filho mais novo sofreu o mesmo destino…
Eram já três
os cadáveres que se encontravam no meio da casa. Restava uma filha com vida, já
mulher feita e um seu irmão mais novo, ainda adolescente. Enquanto os bandidos
José Nascimento e José Cotovio perpetravam as mortes referidas, o chefe dos
bandidos, José Vicente, guardava a porta da rua, para que ninguém passasse por
ela.
Nem uma
perdiz que se encontrava numa gaiola no interior da casa escapou à fúria dos
assaltantes. Os bandidos decidiram então não executar a filha e o filho, a fim
de saberem onde se encontrava o dinheiro da venda dos porcos e mais algum valor
que pudessem encontrar.
Como estes
responderam que a venda dos porcos não se havia concretizado, ordenaram à filha
que esta abrisse as arcas onde apenas estavam uns vestidos de chita e outras
roupas de escasso valor.
Porém, neste
instante, o seu irmão, tremendo de susto e de horror, deixa cair da mão a
candeia com que alumiava as ditas arcas. No meio da escuridão, o rapaz teve o
feliz pensamento de esgueirar-se pelo buraco que dava acesso ao palheiro,
escapando assim dos facínoras, juntando-se assim ao primo José Joaquim. O
criado Daniel Boquinhas já não se encontrava no local, por ter fugido. É um
mistério como o bandido José Vicente, à porta da casa, não deu por esse
movimento…
Acendida de
novo a candeia, perguntavam os bandidos pelo rapaz, de nome José da Conceição,
que já ali não se encontrava.
Foram até à
porta, perguntando ao chefe José Vicente o que tinha acontecido sobre a fuga do
moço. Este jurou que não tinha fugido pela porta. No meio da discussão,
acabaram por assassinar a donzela. Houve quem afirmasse que tinha sido violada,
antes do homicídio.
No entanto,
os meliantes, em vez de se preocuparem em gastar o tempo em vãs disputas , com
acusações mútuas sobre quem teria deixado escapar o rapaz da família
martirizada, não verificaram a outra porta da cavalariça e do palheiro, onde o
mesmo se tinha escondido.
Em vez disso,
arrumaram a trouxa e puseram-se a caminho do Castelo.
No regresso,
o criado Daniel Boquinhas, escondido no meio de um sobreiro, oculto na
espessura da ramagem, viu-os passar e ouviu a discussão entre os três bandidos,
que se acusavam mutuamente sobre a fuga do mancebo José da Conceição.
- O rapaz vai ser a nossa perdição! – dizia um deles.
E assim
seguiram caminho, lastimando na retirada para o Castelo os factos ocorridos, o
remorso dos crimes e o temor dos castigos.
Depois de se
terem afastado o suficiente, o criado Daniel desceu da árvore e aproximou-se da
casa do seu amo, para certificar-se da tragédia. Chegando à porta da
cavalariça, bateu e chamou por José Joaquim. Este, reconhecendo-lhe a
voz, não hesitou em abrir-lhe a porta.
Reunidos os
três que tinham escapado (o filho José da Conceição, o sobrinho José Joaquim e
o criado Daniel), entraram pelo buraco que fazia a passagem da cavalariça para
a casa principal e ai se depararam com um cenário de horror: todos jaziam já
cadáveres.
Quatro corpos
ensanguentados, poças de sangue, um filho que sobreviveu, afogado em prantos e
em suspiros, um sobrinho soluçando e um criado lastimando a cruel sorte dos
seus amos.
Todos à luz
mortiça de uma triste candeia já entornada e prestes a apagar-se numa fria
noite de Inverno.
Num acto
determinado, resolve José da Conceição deixar o monte e sair com Daniel, para
darem parte do sucedido ao seu Tio Cipriano José Picanço, rendeiro da Quinta do
Mocho, não muito distante dali. Ficou José Joaquim acompanhando os cadáveres
que tinham ficado no chão.
Quando
começou a raiar o dia, partia Cipriano da Quinta do Mocho para a Fonte de
Cebola de Baixo, seguindo depois para Vila Viçosa. Vinha queixar-se ao administrador
do Concelho, Domingos Alves Torres, dos roubos e das mortes daquela fatídica
noite.
Vila Viçosa
fica em sobressalto. Cipriano grita pelas ruas, como um louco:
- Justiça! Justiça!
Muitos correm
ao lugar do sinistro. O Administrador do Concelho promove a marcha imediata de
uma escolta para guardar a quinta, até que as autoridades judiciais redigissem
o auto inicial do delito. Foi já cerca do meio-dia que as ditas autoridades
chegaram ao local, para examinarem os cadáveres.
Vivia-se, na
época, um clima de desconfiança entre Liberais e Absolutistas (a Guerra Civil
havia terminado em 1834) e suspeitou-se que tivessem sido os Miguelistas os
responsáveis por tão horrendo crime.
- Aqui está o que fazem os Miguéis! – proferiu o Tenente João Caldeira, que integrava o
corpo das autoridades judiciais.
Todos os
presentes pareceram concordar com esta acusação, quando José da Conceição, o
filho sobrevivente de João Baptista Picanço, ouvindo o diálogo entre as
autoridades, retorquiu ao Tenente, dizendo-lhe:
- Não, senhor, não foram esses homens que
mataram os meus pais e os meus irmãos. Foram esses soldados que vossemecê ai
trás.
João Caldeira
ficou estupefacto, olhando para o Juiz Ordinário e para o Subdelegado. Todos
ficaram surpreendidos, mas logo o Tenente, melindrado com aquela acusação e
querendo mostrar-se imparcial, pergunta ao rapaz:
- Tu conheces os soldados?
- Conheço sim, porque eles até vinham dantes à
nossa casa!
- Pois vem aqui ver se é algum destes! – prosseguiu João Caldeira, mandando formar a escolta.
O rapaz olhou para todos e concluiu que não era nenhum daqueles.
Concluído o
auto do corpo de delito, foi montado José da Conceição num jumento e levado
para o Castelo, onde se formou todo o destacamento de infantaria nº 4, para que
pudessem ser reconhecidos os três facínoras.
- Aqui está o primeiro – disse ele, percorrendo as fileiras com o Tenente; - e aqui está o segundo!
Porém, quanto
ao terceiro, hesitou na acusação, designando um soldado conhecido como
“Calvário”, que logo após o dedo acusador, clamou pela sua inocência.
- Rapaz, vê bem que não fui eu! Estou inocente!
Interveio
então o Tenente, dizendo:
- Bem, bem, pelos dois eu já tiro o terceiro!
Qual é o número do que falta aqui?
- Está no quartel, doente!
- Pois que venha! Vai chamá-lo!
Vindo pois o
tal Cotovio, mostrando-se muito doente e avistando-o José da Conceição ao
descer a escada para a praça de armas, gritou logo:
- É este mesmo! Não há dúvida!
E o Calvário
começou logo a respirar mais tranquilo.
José Cotovio
mostrava sinais evidentes do crime: o capote estava ensanguentado e a baioneta,
apesar de ter sido limpa, mostrava ainda sinais de sangue. Quando tirou o
chapéu da cabeça, logo lhe caíram os brincos que tinha roubado à mulher do
hortelão.
Descobertos
os assassinos, logo veio uma escolta para os acompanhar até à cadeia civil,
onde não tardaram a confessar o seu crime
, declarando onde estavam as trouxas de roupa que tinham roubado e que se encontravam no interior da Fortaleza- Artilheira.
, declarando onde estavam as trouxas de roupa que tinham roubado e que se encontravam no interior da Fortaleza- Artilheira.
Enquanto
isso, dava entrada no Rossio, em direção ao cemitério de São José (onde se
encontra atualmente a Mata Municipal), uma carroça conduzindo os quatro
cadáveres. O chefe da desventurada família tinha o braço esquerdo levantado
para o ar, o que fez dizer a muitos que pedia aos céus vingança!
Os acusados
foram declarados culpados das mortes da Família Picanço e foram condenados à
pena de morte por fuzilamento, por serem militares. No entanto, a pena foi
comutada para José do Nascimento e José Cotovio. Apenas José Vicente, o
cabecilha, foi executado no Carrascal, junto da Igreja da Lapa, em Agosto de
1839. Foi sepultado no cemitério de São José, onde jazia a família Picanço.
Os outros
dois bandidos foram condenados ao degredo para os presídios em África. Contudo,
não sobreviveram muito tempo ao chefe. Um morreu assassinado numa prisão em
Lisboa, antes de embarcar e o outro, pouco depois de chegar a África, morreu
com febres…
Esta história
sinistra ainda hoje perdura na memória dos Calipolenses. Já no final do século
XIX era contada pelo Padre Espanca, que ainda não era nascido quando ocorreram
os factos. Os seus pais relataram-na vezes sem conta, segundo afirmou. Ainda
conheceu Cipriano José Picanço, irmão do infeliz João Baptista. Os sobrinhos
José da Conceição e José Joaquim, que figuram na tragédia, morreram ainda
moços.
Foram eles
que mandaram colocar a placa indicativa, no sítio que é hoje conhecido
como Cruzes dos Picanços, ou as Quatro Cruzes.
3 comentários:
Obrigado pelas palavras e pela partilha do texto! Agradeço o interesse nesta história e parabéns pelo trabalho de divulgação do blogue!
Um forte abraço e continuação de bom trabalho!
Conheço o local mas desconhecia os factos. Muito obrigado por divulgar estas coisas do passado
Nuno Pica
Já tarde li ontem a "Tragédia da Quinta da Fonte da Cebola de Baixo".
Embora conhecedor de parte da obra do erudito Padre Joaquim Espanca, e tendo vivido alguns anos em Vila Viçosa, desconhecia estes macabros assassinatos sucedidos nos arredores da Vila, em 1838.
A leitura foi acompanhada pelo som do temporal que desabou por estas bandas, ambiente propício à concentração para recriar mentalmente o que se ia passando naquela terrível noite.
Gostaria de saber se a narrativa é mesmo do Padre Espanca. Dado que ele nasceu logo no ano a seguir (1839), e ouvindo-a contar muitas vezes, é natural que seja quase decalcada da realidade..., o próprio texto não tem pormenores que nos façam pensar em acrescentos, versão trabalhada para impressionar, etc.... (ficcionada).
Um abraço para o Tiago Salgueiro.
AC
Enviar um comentário