Terça, 26 Abril 201
Recordarei hoje o
registo que, na sua Conta Corrente, com a memória dos dias que
pensava e escrevia, Vergílio Ferreira recebeu a notícia da Revolução dos
Cravos.
«Às sete da manhã, um amigo telefona-me: “Ouça a rádio.” Ouço sem entender:
rebentou a Revolução. A Revolução? Que Revolução? Por fim lá vou compreendendo.
Toda a manhã a rádio nos vai esclarecendo com notícias. Passámos o dia à
escuta. Será possível?» E no dia seguinte: «Vitória. Embrulha-se-me o pensar.
Não sei o que dizer. Uma emoção violentíssima. Como é possível? Quase cinquenta
anos de fascismo, a vida inteira deformada pelo medo. A Polícia. A Censura. Vai
acabar a guerra. Vai acabar a PIDE. Tudo isto é fantástico. Vou serenar para
reflectir. Tudo isto é excessivo para a minha capacidade de pensar e sentir.»
E como, um ano depois,
num comício do Partido Socialista, onde a Sophia e o Torga também estavam, leu
à multidão na praça pública ainda que sem o sistema de som ligado, porque teria
sido sabotado:
DIZER NÃO
Diz NÃO à liberdade
que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a
liberdade que é tua não passa pelo decreto arbitrário dos outros.
Diz NÃO à ordem das
ruas, se ela é só a ordem do terror. Porque ela tem de nascer de ti, da paz da
tua consciência, e não há ordem mais perfeita do que a ordem dos cemitérios.
Diz NÃO à cultura com
que queiram promover-te, se a cultura for apenas um prolongamento da polícia.
Porque a cultura não tem que ver com a ordem policial mas com a inteira
liberdade de ti, não é um modo de se descer mas de se subir, não é um luxo de
“elitismo”, mas um modo de seres humano em toda a tua plenitude.
Diz NÃO até ao pão com
que pretendem alimentar-te, se tiveres de pagá-lo com a renúncia de ti mesmo.
Porque não há uma só forma de to negarem negando-to, mas infligindo-te como
preço a tua humilhação.
Diz NÃO à justiça com
que queiram redimir-te, se ela é apenas um modo de se redimir o redentor.
Porque ela não passa nunca por um código, antes de passar pela certeza do que
tu sabes ser justo.
Diz NÃO à unidade que
te impõem, se ela é apenas essa imposição. Porque a unidade é apenas a
necessidade irreprimível de nos reconhecermos irmãos.
Diz NÃO a todo o
partido que te queiram pregar, se ele é apenas a promoção de uma ordem de
rebanho. Porque sermos todos irmãos não é ordenarmo-nos em gado sob o comando
de um pastor.
Diz NÃO ao ódio e à
violência com que te queiram legitimar uma luta fraticida. Porque a justiça
há-de nascer de uma consciência iluminada para a verdade e o amor, e o que se
semeia no ódio é ódio até ao fim e só dá frutos de sangue.
Diz NÃO mesmo à
igualdade, se ela é apenas um modo de te nivelarem pelo mais baixo e não pelo
mais alto que existe também em ti. Porque ser igual na miséria e em toda a
espécie de degradação não é ser promovido a homem mas despromovido a animal.
E é do NÃO ao que te
limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade.»
Até para a semana.
Cláudia Sousa Pereira
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