Terça, 16 Fevereiro 2016
A discussão sobre a eutanásia ou o suicídio assistido é um
assunto fracturante, tanto na esfera pública da sociedade como no lugar mais
íntimo da consciência do indivíduo.
E como acontece com todos os temas fracturantes, quer-me parecer
que requer, mais ainda do que nos outros, que se pesem os prós e os contras nas
implicações de legislar sobre o assunto. Apesar de já ter a minha opinião
formada e segura, pareceu-me bem reflectir com os que me ouvem e lêem sobre
algumas hipóteses para argumentar sem alimentar ódios nem acusações de parte a
parte, que é o que as campanhas para os referendos acabam por acicatar na
guerra das audiências e dos shares.
Para começar a reflexão
precisamos de perceber que não se está a avaliar entre uma coisa boa e outra
má, mas entre duas coisas más. Tratar-se-á por isso de uma escolha da qual se
pode, eventualmente e sem ânimo leve, permitir a menos má. Depois é preciso
percebermos que se trata de lidar com a Vida e de como a pensamos do princípio
ao fim, passando pelo meio. Perceber como pensamos a Vida na relação da nossa
com a dos outros, para além do seu valor absoluto que ideologias ou crenças nos
ensinam e constroem enquanto pessoas. Trata-se ainda de permitir, sem promover,
que se escolha fazer um dos caminhos para chegar a um mau sítio, de uma maneira
ou de outra. Um sítio inevitável, de que temos consciência desde quando
começamos a usá-la para nos pensarmos, o que não acontece com mais nenhum
animal. E como os há, aos animais, que reagem instintivamente, ora lutando contra
o fim quando pressentem o perigo, ora em situação idêntica, por exemplo matando
as suas próprias crias. Padrões de comportamentos naturais.
Depois, teremos de perceber que só estamos a colocar esta opção
porque é a mesma ciência que nos permite prolongar a Vida que nos permitirá
interrompê-la, de forma apesar de tudo mais civilizada do que levar um velho às
costas até às montanhas (uma lenda retratada num filme japonês de culto
intitulado A Balada de Narayma).
O mesmo gesto contra a natureza que nos empurra do início ao fim. Não será, no
entanto, de estranhar que quem se dedicou, pela ciência, a salvar vidas objecte
a pôr-lhes fim. Não o fará pela ciência mas pela fé, que é outra maneira de
usar a consciência e ficar de bem com ela.
Finalmente, e ponto que me parece ser o mais importante para uma
decisão a aplicar em assunto fracturante no âmbito da sociedade, o facto de se
legislar despenalizando e dando condições, neste como noutros casos em que a
ética porque se trata da Vida está implicada, não obriga ninguém a optar pela
situação despenalizada.
Vergílio Ferreira, quando iniciou a escrita do romance Para Sempre, escreveu no seu
diário: «Salvar a vida, até onde é possível, mesmo à custa da morte. É o acto
do suicida.» E é em nome de uma dignidade que se encontre em determinada
situação ao não prolongar uma inevitabilidade para além dos limites que se
deseje, porque o sofrimento não é um hino à Vida, que eu concordo em que
pôr-lhe fim conscientemente será, para alguns, esse único acto de dignidade que
se conquista e que, graças à evolução da civilização, se lhes pode permitir.
Por muito que me custe e doa lembrar os que, antes do Tempo, foram arrancados à
Vida.
Até para a semana.
Cláudia Sousa Pereira
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