quarta-feira, 3 de junho de 2015

MEMÓRIAS CURTAS - Uma rubrica mensal do Prof Vitor Guita

As Memórias de Maio saíram mais curtas do que é costume e fogem ao registo local/regional que tem sido o seu tom dominante.
As comemorações do Dia da Marinha e os flaches televisivos que passam diariamente na RTP, intitulados Memórias da Revolução, fizeram com que o azimute da nossa lembrança apontasse em direcção a Lisboa, para o mês de Maio de 1974. Prestávamos, então, serviço militar na Armada, mais precisamente na Força de Fuzileiros do Continente, unidade instalada no Alfeite.
Acontece também que o Diário de Notícias está a assinalar os seus 10 anos de existência, o que nos abriu o apetite de consultar um álbum que adquirimos há vários anos e que contem primeiras páginas do DN, desde a sua fundação (Dezembro de 1864) até ao ano de 1984.

Quisemos ver qual foi o tratamento jornalístico que o DN deu ao dia 1º de Maio de 1974 e acrescentar-lhe algumas imagens que temos na nossa memória.
Quando queremos revisitar, de uma forma rápida, a História contemporânea, socorremo-nos frequentemente desta e de outras compilações de jornais. Para lá da sua importância histórica, encontramos ali, de uma forma bem viva, a cor das diferentes épocas, desde a Monarquia Constitucional até à 2ª República, passando pela 1ª República e Estado Novo.
É curioso verificar como os jornais reflectem, com mais ou menos rigor, a vida quotidiana das cidades e dos países, com as suas grandezas e as suas misérias. Reler jornais acaba por ser um exercício de memória, misturando a actividade politica com as grandes catástrofes, os avanços científicos com os resultados desportivos, a sinistralidade com a grande corrupção e outro tipo de crimes. Consultar, por exemplo, as primeiras páginas do DN é passarmos em revista as Grandes Guerras Mundiais, mas também a prisão do Gungunhana betou a chegada do Homem à Lua. A par das grandes parangonas que noticiaram o 28 de Maio ou o 25 de Abril, surgem manchetes que falam da “Maldição de Macbeth”, que reduziu a escombros o Teatro D. Maria, ou as que exaltam as grandes vitórias europeias do Benfica.
Mas voltemos ao 1º de Maio de 1974. O Diário de Notícias do dia 3, sexta-feira, dava destaque à grande manifestação popular ocorrida na capital, utilizando frases como “ A Grande Lição do Povo” ou “Impressionante Demonstração de Civismo de Norte a Sul do País”.
No desenvolvimento da notícia, o DN dizia que o 1ºde Maio fora um teste ao novo regime saído do 25 de Abril e acrescentava que, contrariando certos slogans que falavam de um Maio vermelho e sangrento, a jornada foi de alegria e de esperança. Segundo aquele jornal, o povo português acabara de dar, de norte a sul do país, uma prova inequívoca de maturidade política. O Dia do Trabalhador tinha sido comemorado em liberdade, com grandeza, dignidade e um civismo que gerou admiração.
Como tivemos oportunidade de atrás referir, nessa altura prestávamos serviço militar na Marinha, que nos permitiu acompanhar de perto muito daquilo que ía acontecendo num e noutro lado do Tejo. Nesse dia 1º de Maio, estávamos em Lisboa. Pudemo-nos aperceber do ambiente que se respirava na capital e testemunhar o que foi aquela impressionante manifestação. Ficamos com a sensação de ter presenciado um desses episódios raros que ficam registados para sempre na História.
De um modo geral, as pessoas estavam felizes, solidárias. Aqui e ali, vislumbrava-se um sentimento de incredulidade perante auilo que estava a acontecer.
Das janelas dos velhos prédios da Almirante Reis e dos andares das modernas avenidas choviam flores, muitas flores. O vermelho era a cor dominante. Das portas e das janelas do ré-do-chão, ofereciam-se generosamente garrafas e copos de água a quem passava mais sequioso.
Naquela tarde soalheira de Maio, um mar de gente veio para a rua expressar o  seu entusiamo e respirar toda aquela atmosfera de esperança. Uns empunhavam cartazes ou bandeiras. Muitos ostentavam cravos vermelhos ao peito. Viam-se também muitas dessas rubras flores nas mãos de mulheres e crianças. Outras vezes os cravos serviam de ornamento aos automóveis u surgiam enfiados nos canos das espingardas dos militares.
Independentemente do posicionamento político de cada um, uma coisa parece saltar à vista: o 1º de Maio de 1974 foi daqueles dias que dificilmente se repetirá na História do nosso país.
A mesma página do Diário de Notícias dava conta da amnistia para desertores e refractários, que tinha sido determinada pela Junta de Salvação Nacional.
Este assunto é-nos particularmente caro, já que o cargo que desempenhávamos na Marinha tinha a ver com a resolução de problemas de ordem disciplinar, incluindo situações de ausência ou deserção.
DE vários cantos do mundo, especialmente de países europeus, começaram a apresentar-se homens, parte deles muito jovens que tinham decidido “dar o salto” para o lado de lá da fronteira. Uns por não quererem participar na guerra de África; outros, pelas mais diversas razões. Alguns deles tinham trabalho e família constituída no estrangeiro.
Às dezenas, iam-se amontoando às portas dos gabinetes, ou dispersavam-se pela parada, á espera que lhe resolvessem a situação militar. Com frequência deparávamo-nos com gente jovem de barba e cabelos compridos, calças à boca-de-sino e outra indumentária pouco ortodoxa numa unidade militar.
Para os serviços da Marinha foram longas e árduas semanas a dar andamento a processo, de modo a possibilitar a passagem à vida civil daquele “exército” de gente.
Foram tempos de mudança, com todas as dificuldades que as mudanças implicam. Dentro dos Quartéis cresciam as reivindicações do pessoal militar, em particular dos grumetes e marinheiros. Pretendia-se esbater regalias entre oficiais, sargentos e praças. Houve momentos de alguma tensão e mesmo alguma violência.
Ao saber-se da anunciada amnistia, no interior das prisões militares fervilhava o desejo de sair dali para fora. O ambiente prisional era difícil. Aos presos por deserção, juntavam-se outros reclusos detidos pelos mais diversos tipos de delinquência. A mistura dos mais veteranos com alguns ainda imberbes era pouco salutar. Quem ainda não tinha a escola, ficava a sabê-la toda, no pior dos sentidos.
Como o estimado leitor pode imaginar, há aqui matéria que dava pano para mangas. Talvez um dia possamos voltar a este tema com mais detalhe.
Até breve
Vitor Guita – Maio 2015
Publicado in “Montemorense” – maio 2015 – transcrição autorizada pelo Autor


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